terça-feira, 23 de março de 2010

Habeas corpus para tanto excesso

Freud chamou de 'pobreza psicológica' a vinculação entre sujeitos em um grupo quando os laços que os unem são de identificação, sem a promoção das diferenças em cada sujeito. E citou os Estados Unidos no rol dos 'países pobres'...
Me pergunto se é ou não pobreza. Mas coloquemos os fatos - tanto o ocorrido quanto o narrado.
Annie Levitz, 16 anos, teve que ser operada por causa de um problema localizado num músculo entre a mão e o antebraço, conhecido como síndrome do túnel carpal. Foi uma lesão causada por esforço repetitivo: enviar mais de quatro mil mensagens de celular por mês. O que equivale a 133 mensagens por dia; se considerarmos que ela dorme por 7 horas ao dia, temos 7 mensagens por hora, ou seja, uma mensagem a cada 8 minutos em que estiver acordada. Mensagns cujos conteúdos eram da estirpe de:
- "What's up?"
- "What's up?"
- "Nothing" (Grifo meu)
Trocando em miúdos, escreve-se nada, fala-se nada, conversa-se nada (na afirmativa - não quero dizer que elas não conversam nada).
O que aconteceu é que Annie, de tanto segurar o celular para enviar mensagens (pra quem tantas mensagens?), não conseguia mais segurar outros objetos, como copos, pratos, que caíam (slipped away from) de suas mãos. Aí, ela passou a estranhar a situação.
A mãe, mesmo ciente dessa quantidade de mensagens, não quis tirar o telefone de Annie, porque o telefone "é toda a vida social dela" (fonte: http://abcnews.go.com/Technology/video/texting-teen-carpal-tunnel-syndrome-10148475 - grifo meu). Isso é algo digno de nota. Essa mãe está dizendo que, sem o celular, a garota não terá social life, o que se petrifica como "não há social life sem celular". E, já que não se sai disso, não há para essa mãe como evitar que a filha continue enviando mensagens.
Após a operação, parece que a garota aprendeu sua lição: agora são apenas 2.000 mensagens ao dia! (Deve ser porque agora ela deve estar usando apenas uma mão...)
O que eu quero supor é que há uma paralização na capacidade de des-ser nesse caso. A filha não consegue não ser alguém que manda mensagens até estourar o braço; a mãe, não consegue não ser alguém que limita toda a possibilidade de vida social da filha ao uso de mensagens de texto por celular. O ser está instalado (entalado, enlatado) nesses corpos com uma pega sintomática da maior força, mais do que os corpos podem suportar (dar suporte). E essa incapacidade de equivocar seus princípios as leva ao seus fins. O síndrome é sintoma das duas (pois a mãe também investe economicamente nesse sintoma, já que paga a conta de telefone), apenas fisicamente se manifestando em um dos corpos.
Ora, por quê será que Annie não pôde conter seu mental a ponto de pelo menos poupar o seu físico? Por quê sua mãe se mostrou tão refratária aos equívocos (efeitos) do significante, ao petrificar signicamente seus princípios? 
Quero lembrar que uma característica marcante na psicose é exatamente essa não tolerância aos efeitos de equívoco do significante. Como é que uma mãe baseia o cagaço de 'castrar' a filha do celular ao dizer que dessa forma castraria TODA a vida social da filha? Que tipo de lógica hemiplégica (aleijada) é essa, que desconsidera radicalmente a Possibilidade que o Inconsciente oferece, de overcome as sobredeterminações simbólicas ao fazer referência ao real dessa possibilidade de Outra-coisa? O problema é que também a neurose não quer tolerar o equívoco, o vazio que preenchemos com nossas bobajadas quotidianas, imundanas. 
Não vou aqui discutir se é excessivo ou não mandar uma mensagem vazia a cada 8 minutos. Todos nos excedemos, de um modo ou de outro; há modos que não arrebentam com o corpo, e há modos que sim. À medida que conseguirmos adequar nosso fóssil (é assim que muitos biólogos se referem) corporal aos nossos modos de gozo, via techné, talvez não tenhamos a mesma opinião sobre o que é excessivo. Então não direi que a sociedade americana é psicótica ou neurótica, porém nota-se neste e em vários outros de seus sintomas que há uma dificuldade de dialetização em suas formações. Por isso, mais do que a filha enviar esse tanto de mensagens, quem me espantou foi a mãe, por ter reduzido a interação social, simbólica da garota ao  literal do aparelho de telefone.
Quanta diferença para com os pais de meio século atrás!: rigorosos, severos; hoje, frouxos e permissivos. Nem melhor, nem pior: no entanto, não será dos pais (parece que não há pai em sua casa) que a menina herdará sua capacidade de simbolizar perdas para obter outros ganhos, quer dizer, dialetizar. Ela terá que buscar isso - se algum dia precisar - em outro lugar; coisa que é bem possível. 
Freud colocava o Pai como a referência dessa função de simbolização, ou seja, de perda e troca de objetos. Porém, Lacan diz que há várias formas de se acionar a função do Pai, e não necessariamente via genitor, visto que a configuração familiar se mostra irreconhecível para os mais velhos. E talvez hojendia seja um momento em que ainda não se sabe muito bem como fazer função paterna sem Pai; porque, neste caso aqui citado, a mãe não a faz. Mas muitas mães por aí ocupam essa função, que talvez algum dia deixe de se chamar paterna (já que o pai é dispensável, importando somente a função - não importa quem a faça). A questão que fica é: como fazer cada vez mais referência a essa função, que permite maiores possibilidades simbólicas aos seres falantes? Segundo MD Magno, o Pai é uma invenção do período neolítico, quando o homem parou de ser vagabundo (nômade), fixando lar; com sua falência, devemos (eticamente) arranjar meios de não perder a função que outrora fora exercida majoritariamente pelo Pai, porque senão vamos arrebentar a boca do balão que nos sustenta no físico, tal como Annie; não dará tempo de inventarmos um corpo que nos suporte...

sexta-feira, 19 de março de 2010

He, She... It? May Well Be...

O Governo do estado de New South Wales, na Austrália, emitiu uma certidão de "Gênero não-específico" a Norrie May-Welby (foto), 48. Esta é a primeira pessoa no mundo a ser reconhecida como tendo um sexo que não seja masculino ou feminino. Norrie nasceu com pênis na Escócia e aos 23 anos passou por uma cirurgia para "reassignment" sexual, além de tomar hormônios; na Austrália foi registrada como mulher. Insatisfeito com a cirurgia, dois anos depois Norrie parou de tomar os hormônios e assumiu a identidade "andrógina", chegando mesmo a dizer "neutra". Em suas próprias palavras: "Esses conceitos, homem e mulher, simplesmente não se adequam a mim, não são minha realidade, e se aplicados a mim, são ficção[...]
"Se eu precisar de mostrar documentos de identidade, certamente não quero que sejam falsos, pois isso só causará problemas quando os oficiais perceberem que eu não correspondo aos meus documentos. Se meu passaporte, por exemplo, afirma que eu sou uma mulher, posso ser detida durante uma viagem se a jurisdição local me classificar com base no gênero atribuído no nascimento ou se meu atributos masculinos, notáveis (por exemplo, meu pomo-de-Adão ou meu peitoral amplo), forem percebidos. Se o passaporte afirmar homem, novamente há uma dissonância para com minha forma física, com a castração tendo efeitos feminizantes, e eu geralmente ando e falo de uma maneira feminina. Afirmar que meu sexo é homem ou mulher falsifica a afirmação, o que é inaceitável para uma documentação de identidade legal, e me coloca em risco de detenção e violação."
Norrie conseguiu um atestado médico que também afirma a neutralidade de seu sexo, tanto genitalmente, como hormonalmente. E fez palestras que intentavam atacar o que chama de "gênero polarizado": apenas haver homens ou mulheres, sem possibilidade de uma terceira categoria.

O que é o homem? O que é uma mulher? Será que, como afirma Norrie, existe um terceiro sexo, para além das oposições male/female?

Cito MD Magno: "Lacan, em emulação com Aristóteles, procura construir uma lógica da psicanálise com fundamento na castração. Como sabem, Aristóteles diz que, 'se existe caneta', quando pudermos dizer 'toda e qualquer caneta' e funda-se um universal, que é 'existe caneta'. Lacan, por sua vez, diz que a lógica da psicanálise não pode ser esta, pois não é a generalização da existência que para ela põe o universal. Para ele, a lógica da psicanálise é a lógica da castração tal como Freud a colocou. Voltando à historinha do menino-tem-pipi/menina-não-tem-pipi, esta lógica da castração se imporia em função de os homens - e é assim mesmo que Lacan o diz - serem aqueles que têm medo da castração. Como têm o famigerado pintinho e morrem de medo que lhe arranquem, eles acham que 'existe pelo menos um que diz não à função fálica', ou seja, ao seu tesão, e consequentemente à sua masturbação. Como têm o pipi e o papai diz 'se você continuar com a mão aí, eu o corto fora', existe pelo menos um que diz 'não' para que todos possam usar o tesão à vontade, mas dentro desta lei de proibição. Eles passam a vida inteira com medo disto e só se cria o universal todo (A) x é função fálica (Ax . Φx) porque existe pelo menos um x que diz não a esta função (Ex .  ~Φx). E para as mulheres, não existe ninguém que diga não (~Ex ~Φx), com a consequência de que o universal não existe, é negado, não todo é função fálica (~Ax . Φx). Assim, A Mulher não existe, só existem mulheres, no plural. Não podemos dizer A Mulher porque as mulheres não fazem um universal."
Nota-se que para Freud, Lacan e Magno que a sexualidade não está adscrita à genitalidade imaginária dos corpos, porém a uma pura lógica da relação do sujeito com a castração. 
Lacan definiu as posições sexuais dos falantes a partir da lógica aristotélica aliada à lógica do significante, o que ele chamou de fórmulas quânticas da sexuação. Os conceitos de homem e mulher foram determinados na relação que o sujeito tem com o significante fálico, que por sua vez é o significante que porta os efeitos de significação (Die Bedeutung des Phallus - Escritos) e que não significa coisa alguma (Seminário 20). 
Pois bem, o que Lacan coloca é que só há dois modos de posicionamento sexual. O que ele chama de homem é a posição do sujeito referenciada ao gozo fálico, ao gozo do significante, do limite. Se há algum limite, então podemos dizer que há um todo, um conjunto fechado demarcando esse limite; tudo o que estiver dentro dos limites é o todo. O significante faz um limite ao gozo-do-Outro instaurando aí a falicidade do gozo masculino. Quer dizer, homem e mulher são nada mais do que as relações do falante com seu gozo. Então o gozo do homem se faz ao colocar-se um limite à função fálica, ou seja, fazer função de Nome-do-Pai, fazer sentido (já que a metáfora paterna é o que dá sentido). "O todo repousa, aqui, na exceção colocada" (Sem 20). O homem se define enquanto colocando limite no significante. "Uma propriedade Φ só pode fundar um todo ligado [...] pela referência a um limite construtível, isto é, uma existência que faça exceção a Φ" (MD Magno - Grande Ser Tão Veredas). Por consequência, temos "Ax . Φx" - toda variável se inscreve dentro de um limite com referência ao falo, este estando excluído como o limite do universal de todas as variáveis: e essa é a função fálica. Ao excluir o falo, homem nega que não haja significado do falo, já que o falo é "entre todos os significantes, esse significante do qual não há significado, e que quanto a sentido, simboliza seu fracasso" (Sem. 20); ao negar o não senso, dá-lhe sentido, limitando assim o uso do significante, função do Nome-do-Pai. O Homem funda a ordem do que é universal, do que faz todo, fechado e com um resto lá fora.
Já a mulher não se aferra ao limite (que ela sabe ser um mito, já que nem tudo é significante): a mulher visa um gozo suplementar ao fálico, um gozo difuso por não ser referenciado ao limite. É aquela famosa dúvida de Freud "Was will das Weib?", 'o que quer uma mulher?' O homem precisa do significante para sê-lo; uma mulher vai além do significante sem-sentido (o falo) e visa o significante que não há no Outro (S de A barrado) na tentativa de inscrever-se fora da função fálica, o que é impossível, pois a única via de inscrição é a do significante. "~Ex . ~Φx". Não existe a negação do significante fálico (freudianamente, é o fato de não ameaçarem cortar o pipi da menina fora, porque ela não tem pipi), o que implica que não existe o limite com o qual se constrói o todo. O todo só pode ser construído pelo limite: essa é a lógica da castração. Em outras palavras, não há o todo; em outras palavras ainda, há o não-todo. A consequência é que "~Ax . Φx"; não é todo x que se inscreve na função fálica de x. Se não existe algum que nega o falo (~Ex . ~Φx), temos uma negação do todo (~Ax . Φx), ou seja, a mulher não nega que o falo não significa  nada, o que explica a loucura delas: seu gozo não é todo fálico. A referência delas é apenas o impossível, é apenas a negação da função fálica, requerendo apenas o significante que falta ao Outro (que, precisamente por ser não-todo, não existe). Aí também fica impossível definir o que a mulher é, em termos de significante. Uma mulher aponta para o que extrapola o campo do significante: que o Outro não se fecha, a não ser imaginariamente, sintomaticamente, masculinamente. Por isso as mulheres se alinham com o Real e com o insuportável.
No caso de Norrie, o paradigma vigente em psicanálise lacaniana é que ele é provavelmente psicótico, por não conseguir simplesmente simbolizar sua opção sexual e manter o corpo que Deus lhe deu intacto, sem levar a sua opção simbólica ao literal desse corpo. Mas será que podemos conceber a possibilidade de isso não ser necessariamente uma psicose? Será que no dia em que as tecnologias permitirem alterar o corpo de formas muito mais avançadas e seguras, não vamos "nós", neuróticos, também procurar outros corpos mais adequados àquilo que pensamos ser? Freud já dizia que somos 'deuses de próteses', o que se reflete na velha anedota de que 'a tecnologia veio pra solucionar problemas que não tínhamos até o seu advento'. Será que nesse dia não escolheremos uma cor de pele azul ou mudar a cor dos olhos para ir a uma festa, ou mesmo pra ficar assim durante o dia, ou o mês, ou o ano, ou a vida toda? Vinícius de Morais dizia ser o branco mais preto do Brasil. Vai que nesse dia conjecturado aqui um outro branco queira virar preto por ter nascido no gueto... 
Outra coisa que me parece interessante no caso de Norrie é que ela convoca o Outro a outorgar-lhe sua sexualidade. Ela registra isso perante o Outro, fazendo laço com ele (uma vez que lhe foi concedida sua opção sexual), coisa que não me parece muito psicótica, e nem querelante.
No final de sua vida, de seu ensino, especificamente no seminário 26, Lacan se pergunta se não há um terceiro sexo. Seis anos antes, ele afirmava categoricamente existirem apenas dois. Depois, vacila, equivoca. Mas nada chegou a ser formulado por ele. No entanto, é algo a se pensar. Lembremos Lacan no seminário 20: 'homem' e 'mulher' são apenas significantes. Mas qual é o sexo do sujeito, aquele que habita entre os significantes?
Quem definiu um sexo para além das oposições H/M foi MD Magno. Para ele, o terceiro sexo é angélico... A diferença sexual para Lacan tem como precondição a existência ou não de limite. Se existe limite, quer dizer, exceção (um excesso paralém do limite) há todo, há homem; se não (senão), há mulher, ou seja, a inclusão do excesso no campo, que apaga as margens do limite. Mas aí entra uma outra lógica: aquilo que o homem nega pra fundar o todo (Ex . ~Φx), e que a mulher diz não existir enquanto negação (~Ex . ~Φx) é, antes de ser negado (homem) e antes de negar essa negação (o que a mulher nega é a referência fálica), é afirmado pura e simplesmente (Ex . Φx). O falo se afirma para ambos, e cada um faz algo com ele: o homem colocando-o de fora, mas em estrita referência a ele, e a mulher indo além dele rumo ao Gozo-do-Outro, rumo àquele significante que não há (S de A barrado), assim denegando a função fálica, que para ela também comparece: por exemplo, quando ela diz que seu pipi vai crescer, ou ela vai comprar, ou ganhar da mãe, etc. Mas nenhum deles pode anular por inteiro a existência do falo; obviamente que o homem não pode, já que o falo, mesmo negado, é sua referência de todo; e a mulher também não consegue negá-lo totalmente, visto que o Gozo-do-Outro é impossível, por não haver S de A barrado, o que a faz recair no gozo fálico, mas não-toda. Por isso Lacan vai dizer que a mulher é não toda, nem no gozo fálico, nem no Gozo-do-Outro. Ou seja, diante da afirmação absoluta do falo (Ex . Φx), para ambos os sexos, a função fálica pode ser negada, mas não-toda (~Ax . ~Φx). Quer dizer, temos aí uma outra fórmula, que mantém relação com o falo, porém nem como homem (sustentando-o de fora:  Ex . ~Φx), nem como mulher (rechaçando-o [quase foracluindo: daí a afinidade entre a mulher e a loucura] em prol do gozo-do-Outro: ~Ex . ~Φx). Aqui então desenha-se um terceiro sexo, um terceiro modo de relação, entre a oposição homem/mulher (como um sujeito que habita entre esses mesmos significantes), porém sem ser inteiramente um, nem inteiramente a outra; é outra coisa em relação aos outros dois. O limite não é inteiramente construtível, mas também não é inteiramente negável, tal como não são discerníveis o dentro e o fora numa banda de Möebius, tal como não se pode negar a dar sentindo às coisas, porém podendo equivocá-las, na rememoração da neutralidade fálica (Ex . Φx). Esse sexo é o que MD Magno chama de anfi-sexo no que permite transitividade entre a posição masculina e a feminina, apenas importando o gozo que se pode extrair de cada um dos sexos: e esta é uma neutralidade do sexo, não como se ele não existsse, porém como sendo existente e indiferente ao modo de gozo, tal como a pulsão não tem sexo. Ou melhor, tem, só que neutralizado, aquém ainda de se tornar masculino ou feminino (enquanto significantes), que são suas derivações, seus modos.
Vemos assim como Norrie tenta se posicionar nesse mesmo lugar angélico, e como nas suas próprias palavras, sair da 'polarização de gênero' para referir-se à insuficiência dos conceitos de homem e mulher ao situar-se em um corpo que transita muito bem-dita-mente (pra ficar com a referência ética de Lacan) no entressexo - sexo do sujeito reduzido ao intervalo (neutro) entre os significantes que o representam como homem ou mulher (vel da alienação)... Sexo-equívoco - precisamente o que se espera da psicanálise: a equivocação do sexo. MD Magno: "Se é verdade que, enquanto falanjos, somos determinados pelo simbólico, então somos, nãotodos, do terceiro sexo: uma barra [entre significantes]... Porque o sexo do falante é Real. Além de masculino ou feminino, no simbólico. E ou Macho ou Fêmeo no Imaginário."
E uma coisa que impressiona nesse caso é que Norrie equivoca seu próprio nome para mostrar como equivoca seu sexo: seu sobrenome May-Welby é homofônico a "may well be", "pode ser" em português: pode ser homem, pode ser mulher; como ela diz, "depende do dia", mas o que ela é no real não cabe em nenhum deles...
Lacan disse que não há relação sexual, o que é vero; que tudo o que se enuncia de discurso é semblante; e que é preciso dispensar o pai, porém com a condição de se fazer uso dele como semblante. Está na cara que Norrie usa seus sexos como semblantes (como e quando lhe convir) de seu Sexo de origem: neutro, pois ninguém nasce homem ou mulher, nasce querendo gozar de ambos os jeitos. Uma psicanálise deseja (como desejo do analista) ir para além do Outro, mas fazendo um uso-equívoco dele, um uso meramente de semblante, disponível às (in)diferenças. É isso que Norrie faz.
A língua inglesa tem uma outra possibilidade interessante para escrever (do real) esse equívoco na forma de pronome: "S/He". Esse sintagma, usado por alguns noticiários internacionais, contém ambas as palavras, She e He, porém com uma barra exatamente onde os modos específicos de seus gozos se dividem: a barra da não-relação sexual (entre 'S' de She e o 'H' de He). Acrescentando mais um pouquinho de delírio, vemos também que uma mulher tem uma letra a mais que o homem: o S do suplementar de 'seu' Gozo-do-Outro, além do 'H' de He, do 'H' de Homem. Vemos também que o que há de comum tanto a homens quanto a mulheres, ou seja, o que lhes é indiferente, é o "e", de equívoco, que só pode ser essa neutralização entre She e He; aquilo que, por pertencer a ambos, é diferente de cada um deles. O específico do Homem (He) é ser aquele que não tem 'S' de She, põe o 'S' de fora de seu limite; o específico da mulher é querer ser o S(uplementar) sem He, sem referência fálica, o que não dá, não forma She; e a especificidade de "e" é não ser específico de nenhum deles justamente por pertencer a ambos, quer dizer, o "e" não é o que especifica o sexo, mas ao contrário, ele É o Sexo, enquanto não-específico, como consta na nova carteira de Norrie, e que pode pertencer a ambos os sexos, porém com a barra que separa as demais letras a alternar, a transar, a transitar entre os sexos (uma vez que não há relação sexual). O "e" é o fato de que existe falo, para ambos os sexos, pois ele não pode ser negado por inteiro (ele pode ser negado na medida da especificidade de cada sexo - o S ou o H: um pode negar o específico do outro, mas nenhum deles pode negar "e"), nem pelo He e nem pela She.
Nietzsche clamava o "para além do bem e do mal" como essa mesma tentativa de sair do jogo de oposições simbólicas e aproximar-se do real, como nos ensina também MD Magno, seguindo indicações do último Lacan. Norrie assim dá um passo (um passe) que mostra ao Outro da lei o equívoco de seu saber suposto apenas na oposição de gênero, dessa forma abrindo caminho para a legalização do equívoco sexual.
Onde passa boi, passa boiada...

PS:
Reportagem de um site australiano que noticiou sobre a certidão de Norrie (em inglês): http://www.thescavenger.net/glbsgdq/sex-not-specified-australia-leads-the-way-in-legal-document-756345.html

PS-2:
Diante de um assunto tão difícil (a formulação lógica da sexualidade em Lacan e MD Magno), agradeço àqueles que apontarem equívocos em algum ponto da minha argumentação. Espero ter aberto a discussão e causado interesse maior na obra de MD Magno.

PS-3:
Qual é o sexo do psicótico? Será ex-sexo mesmo?

segunda-feira, 8 de março de 2010

Para bom entendedor...

No final de seu ensino, Lacan poliu a conceituação ética da psicanálise através de sua enodação ao que era (im)possível de saber do inconsciente. Ele dizia que a verdade não se pode dizer toda, pois que a lei do equívoco significante e seu real neutro impedem que haja um todo do conjunto significante (S de A/). Por isso, a verdade só pode ser meio-dita, o que implica só haver meias-verdades: tudo o que se diz se contamina de engano (L'une-Bévue).
E é a partir das meias-verdades que Lacan estatui sua ética psicanalítica: se não se pode dizer o real por inteiro, é necessário Bem-dizê-lo. E isso é estar em constante referência ao saber inconsciente, na medida de seu possível, e não em seu rechaço, o que Lacan considera uma covardia moral. Ou seja, uma vez que saber tudo é impossível, que se faça desse impossível de dizer um dizer possível sobre o não sentido do saber. E saber-fazer esse bendizer (ou bendizer esse saber-fazer) é sempre se referir ao "saber de não-sentido" promovido por Lacan, quer dizer, ao equívoco do inconsciente, à divisão do sujeito. Divisão essa que sabemos ser entre um significante que o representa junto a outro significante, o sujeito habitando esse intervalo; ou melhor, o sujeito é o intervalo mesmo, o que está no-meio de um e outro nome de seu gozo: e por isso é melhor dar um bom nome a esse gozo para que o sintoma recrudesça e passe a outros modos (simbólicos) de seu real. Lacan chega mesmo a dizer que "só há ética do bem dizer", o que me leva a supor que paralém (ou paraquém) dessa ética há apenas moral (civilizada ou não).
MD Magno, em sua Est'Ética da Psicanálise (Seminário 89), diz que a ética da psicanálise é a do bom entendedor: meia palavra basta, no que o significante se equivoca  (meia-palavra) e evoca outro significante. Mas quero aqui subverter o sintagma, visto que é a boa palavra (quase diria palavra plena, segundo o primeiro Lacan) que divide o sujeito e o confronta com sua falta (de consistência) constituinte; uma ética que se diga psicanalítica deve seguir esse expediente: para meio entendedor ($), boa palavra basta (para bendizer a maldi(c)ção sintomática).

quarta-feira, 3 de março de 2010

Ah, bruta flor do quereres...

Caetano Veloso pode ser o que as pessoas quiserem, visto que há opiniões completamente simétricas sobre ele: um chato, um pedante, um musiquinho, um intelectual, um grande músico, e etc. No entanto, sendo ele tudo isso, ou independente disso, Caetano pode nos transmitir psicanálise, no entanto, sem ensiná-la. 
É que a canção "O Quereres" (que na minha opinião é uma das mais criativas e lúcidas já produzidas) descreve com muita clareza a lógica do inconsciente, no que a lei do significante se articula à pulsão. Toda a canção lida com jogos de palavras em oposição. Mas ele determina a oposição entre uma palavra e outra simplesmente pelo sentido que dá a elas. Acompanhemos:

"Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres 'não'

Onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
Onde queres o chão minh'alma salta
E ganha liberdade na amplidão"

Caetano joga o tempo inteiro opondo uma palavra a outra. Mas há palavras que ele usa que não têm significação oposta no seu uso comum. Um revólver não é um oposto de coqueiro: essas palavras não têm antônimos! Como é que a arte faz então? Ela diz que 'revólver' é a mesma coisa que 'guerra' e coqueiro é o mesmo que 'paz'; aí, sim, há uma relação de oposição. É o famoso 'sentido figurado', o sentido metafórico das palavras... Com isso, Caetano mostra que é possível opor qualquer palavra a qualquer palavra, com a condição de se manejar com precisão lógica os sentidos com que se as dotam, com os sentidos que se adotam...
Só que o que a psicanálise descobriu é que nenhuma palavra em si tem sentido, a não ser em uma relação com outra. É o que Lacan chamava de relação simbólica, relação de identidade de algo por sua alteridade, pela sua Outridade. O trabalho do sonho, por exemplo, ou o trabalho do sintoma, eram a formação de sentido a partir de dois significantes que tinham que se significar mutuamente, mas esses significantes podem significar uma miríade de sentidos, o que leva a supor que o sentido que se os dá depende apenas de seu uso na relação simbólica, não tendo antes desse uso sentido algum. 
Sabemos pela psicanálise, também, que o imaginário insiste em dar unidade às coisas, em supor que haja 'propósito', 'destino', ou qualquer sentido. E os sentidos se fixam nos corpos, formando sintomas deles, quer dizer, formações estacionárias que só querem se manter, se repetir (como automaton sintomático). Mas o Real vem para abolir o sentido em prol de Outro. E o Real é a própria demonstração de que há outro sentido para qualquer relação de significação. E Lacan é textual: "Eu garanto que, numa frase, se possa fazer com que qualquer palavra venha dizer qualquer sentido". É uma frase de impacto! É apenas pela via da neutralização do sentido que a palavra perde consistência. E é precisamente o que Caetano faz. Esvazia o sentido de 'revólver' e injeta-lhe 'guerra'; da mesma forma, de 'coqueiro' passa-se a 'paz'. Então, isso tudo implica que só há sentido figurado, porque se qualquer palavra pode ser qualquer outra (por ser vazia), sempre é necessário dar sentido (ou seja, fazer metáfora) aos significantes para dizer algo. O que ma leva a supor que o sentido literal é não-sentido. Literal é x=x. Como disse Gertrude Stein: "Uma rosa é uma rosa é uma rosa". Ora, o princípio da identidade é derrogado na lógica do significante, uma vez que só a alteridade pode fazer sentido, fazer metáfora, significar outra coisa além (ou aquém) de si mesma. 
Toda relação simbólica é relação de oposição. S1 e S2 não têm conteúdo. O que interessa é que há um vazio e outro vazio, há uma diferença pura, relação que poderíamos chamar de x e -x. Poderíamos chamar também de esquerda ou direita. Ou de revólver e coqueiro. Posso dar o nome que eu quiser a essa oposição, a essa diferença entre uma coisa e outra, o que conta é que essas duas coisas não são a mesma. E são opostas porque, se não for 'uma coisa', obviamente será a 'não-uma-coisa', o seu negativo, oposto, a "outra coisa". Ou seja, como nos mostra Caetano, 'revólver' é oposto de 'coqueiro'. E Caetano mostra que, na estrutura, paralém dos conteúdos que damos às palavras, o que resta é a relação de oposição, visto que em todas as linhas ele dá os sentidos das palavras para que elas tenham um 'sentido figurado' de oposição. Da mesma forma, dinheiro (que compra as coisas) e a paixão (que não pode ser comprada); desejo (incansável até ser realizado) e o descanso; o desejo (afirmação do desejado) e o não (negação do desejado); e etc.

"Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão

Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês eu não vislumbro razão
Onde queres o louco, eu sou irmão,
E onde queres caubói, eu sou chinês

Ah, bruta flor do querer"

A estrutura básica do texto é que, diante do desejo do Outro (Lacan), só se consegue ser o oposto desse desejo: 'Onde queres uma coisa, sou seu oposto'. O desejo do Outro nunca é atingido; porque se 'o desejo do homem é o desejo do Outro' como disse Lacan, e o desejo desse homem está submetido à lei do significante, isto é, à lei da interpretação, do equívoco, só se deseja o que se interpreta que o Outro deseja. Interpretar o que o Outro deseja só pode ser falho porque o que se supõe (e só pode-se supor pela linguagem) de Seu desejo pode ser equivocado. Ou seja, nunca interpretamos corretamente o desejo do Outro e assim não podemos evitar ser exatamente o contrário desse desejo. Quando supomos algum significante como significante do desejo do Outro esquecemos (recalcamos) que esse significante é passível de auto-diferença, que cai em sua oposição. E é exatamente lá que residem as singularidades de cada sujeito: não se fazer o objeto literal do desejo do Outro, mas sim opor-se a ele, porém numa relação (simbólica) com ele. 
Volto a ressaltar que a poesia do texto de Caetano está em que ele cria relação de oposição com palavras que não têm antônimos ao equivocar os sentidos dessas palavras. Leblon não é o oposto de Pernambuco, porém Caetano mostra que é, sim, já que Leblon é chique, sofisticado e Pernambuco é rústico e tosco; a cultura chinesa é tão diferente da de um caubói americano que elas se opões simplesmente por não terem nada a ver uma com a outra.

"Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher


Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói


Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor


Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és"


A estrutura da pulsão é catóptrica (katoptron, grego: 'espelho'), ela requer apenas o seu oposto, que é não existir mais, não viver mais, não ser mais pulsão. Mas isso ela não consegue, a não ser na 'morte' (apesar de que isso não existe - mas é assunto pra depois), por isso Freud a chamou de Pulsão de morte - aliás, a única que há. Como o significante também se catoptriza, nenhum significante que se coloca como lugar do objeto da pulsão é absoluto, sempre recaindo no seu oposto, como está nas duas últimas frases: o Outro não me quer como sou e nem se quer como é. Quer dizer, nem o que sou, nem o que és são o objeto do desejo (do homem e do Outro): tudo o que é não é objeto. Nada é objeto.

"Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock’n roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio


Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus


O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim


Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim"


Com essa letra de música, Caetano nos transmite a lógica do significante sem precisar de explicar uma palavra de psicanálise (isso eu que tive que fazer). "O quereres e o estares sempre a fim do que em mim é de mim tão desigual " é simplesmente a condição do sujeito, representado de significante a significante, diante do Outro, que só deseja o que não é, só deseja Outro significante, porque nenhum significante é completo, em si mesmo (S de A barrado).

Pra finalizar, o título. "O quereres" mostra que os vários 'desejos' que temos, resumem-se, na verdade, ao desejo sempre frustrado que a pulsão tem de desaparecer; e como ela não consegue, surgem vários significantes que tentam ocupar esse lugar de ser O objeto. O artigo definido "O" refere-se a esse único desejo que há: de morte. E o "quereres" diz dos gozos possíveis pela via do significante.
Mas já que não dá pra sumir ("mé funai", diria Édipo), gozemos com o que quer que haja por aí mesmo...

segunda-feira, 1 de março de 2010

Ninguém aprende a falar

Você aprendeu a falar? Será que você consegue dizer tudo o que você quiser? Tudo o que pensa? Penso que não.
Freud descobriu que as pessoas não sabem o que dizem, porque elas não sabiam porque sofriam. Tentavam dizê-lo, mas fracassavam; ou diziam outras coisas ou diziam "não sei". Mas Freud não o aceitava: tinha que haver uma causa para o sofrimento. Como só-depois de algum tempo elas conseguiam saber as causas de seus sintomas, Freud chamou esse (não-)saber de Unbewusst - inconsciente. Mas descobriu que L'une-Bévue tinha um buraco, um-bigo, impossível de abordagem (topologicamente falando), impossível de s'escrever, vazio que se faz objeto de nosso desejo. Lacan chamou isso de objeto a, o objeto do qual não se tem ideia (A Terceira), indizível, porém causa de desejo. Tudo o que se diz é para tentar dizê-lo e Lacan funda sobre isso toda uma ética da psicanálise, na qual parte-se do princípio que o inconsciente não pode dizer-se todo. Se o inconsciente pudesse dizer-se por completo, haveria o objeto a, e seríamos alguma coisa... mas o objeto-não-.
O objeto a é o objeto da pulsão, é o objeto do desejo (LACAN, Seminário 11, p. 229). Se pudéssemos dizer tudo, a pulsão teria (também no sentido de possuir o) objeto. Todos os objetos parciais que a pulsão rela (Lacan diria contorna) são relativos, e não absolutos; quando se o rela, ele passa pra Outro. Nenhum deles são objetos do desejo da pulsão, mas sim de seu gozo. Só Um objeto do desejo: "que não haja". Enunciação fantasmática que só quer o impossível, mesmo que o impossível não haja. Tudo o que todo mundo deseja é que não haja (desejo). Isso é a Pulsão de morte, que Freud achava ser uma tentativa de retorno ao inanimado, mas não é nem um retorno e nem ao inanimado. Era pra ser uma ida sem volta, porém sempre se frustra; o que retorna é a existência, o Haver (conceituado por MD Magno), o próprio movimento pulsional. A Pulsão não deseja existência, apenas goza dela (porque não há Não-Haver pra ela ir, não há outra coisa do que gozar; só se goza de 'dentro' do Haver).
Em sendo impossível dizer tudo (ou seja, dizer o Haver e o Não-Haver [que já é impossível de saída]), Lacan afirma que é necessário então Bem-Dizer o Haver. Mas isso não significa conseguir dizer todo o Haver. Bem-Dizer o Haver é produzir o que o francês chamou de "saber de não sentido" (o qual ele ainda afirma ser o único que há - "Televisão"), o equívoco que constitui a lei do significante, e o saber que emerge por intermédio desse equívoco. Quer dizer, o Haver não é todo dizível: "o Bem-Dizer não diz onde está o Bem" (Ibid.). Nada é tudo na lógica do significante. É sempre possível dizer algo que não se sabia, e se a análise serve pra algo, é para isso. Nosso acesso ao real é dublado pelo simbólico, que o fragmenta em significantes, cuja lógica não faz o Um real.
Por isso é sempre possível criar coisas que até então não foram ditas, seja individualmente, seja culturalmente. Por isso nenhuma língua está acabada: ela vai se dizendo, criando gírias, ditos populares, etc.
As pessoas fingem (sem-blante) que sabem falar, especialmente com os outros. Mas bota ela deitada pra falar de "si": gagueja e engasga. E ela não sabe o que diz. Por isso, ninguém aprende a falar: sempre erramos nas escolhas das palavras.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Poesia da Relatividade


1905 é considerado um ano milagroso com relação à nossa compreensão de nossa existência. É o Annus Mirabilis, em que Albert Einstein produziu pelo menos três grandes artigos para a revista Annalen der Physik, principal publicação científica da europa à época. Os artigos abordaram diversos segmentos da física: o efeito fotoelétrico (a propriedade corpuscular da luz), abrindo caminho para física quântica; o movimento browniano, produzindo evidências empíricas do real do átomo; e a célebre relatividade especial, definindo a estrutura básica do espaço-tempo. Estes foram escritos pioneiros no desenvolvimento da física contemporânea, tendo uma importância histórica fora do comum; Einstein (Umapedra, em alemão) ganhou o prêmio Nobel em 1921 pelo trabalho sobre a luz, e a sua Teoria da Relatividade é tão famosa que lhe rendeu fama o suficiente para tornar-se pesonagem de história em quadrinhos.
Uma das passagens mais interessantes de sua carreira sem dúvida é sua concepção (parto) da Teoria da Relatividade, tanto Especial quanto Geral. Mas o que foi que Einstein fez para revolucionar nossa compreensão e o próprio universo, na medida em que as implicações de sua descoberta podem intervir no físico? Como se dá esse processo de abrir uma fechadura do mundo físico com o uso da linguagem?
Dois insights, como dizem, foram os determinantes que abriram comportas do universo.
O primeiro diz respeito à velocidade da luz. O dinamarquês Ole Roemer mediu a velocidade da luz. It begs the question: como isso foi possível, e ainda em 1676? "Se você observar as luas de Júpiter [com um telescópio], perceberá de tempos em tempos que elas desaparecem do campo de visão porque passam por trás do planeta gigante. Estes eclipses das luas de Júpiter deveriam ocorrer a intervalos regulares [velocidade de órbita constante], mas Roemer observou que os eclipses nem mesmo eram homogeneamente espaçados. As luas de alguma forma se aceleravam e desaceleravam em suas órbitas? Ele tinha uma outra explicação. Se a luz viajasse a uma velocidade infinita, então nós, na Terra, veríamos os eclipses a intervalos regularea, exatamente ao mesmo tempo em que ocorressem como os tique-taques de um relógio cósmico. Já que a luz atravessaria qualquer distância instantaneamente, esta situação não se alteraria caso Júpiter se movesse mais para perto ou para longe da Terra."
"Imaginemos, agora, que a luz se desloca a uma velocidade finita. Neste caso, veremos cada eclipse algum tempo depois que tiver ocorrido. Este atraso dependo da velocidade da luz e da distância de Júpiter até a Terra. Se Júpiter não alterasse sua distância em relação à Terra, o atraso seria igual para todo eclipse. Entretanto, Júpiter às vezes se move mais para perto da Terra. Em tais casos, o "sinal" de cada eclipse sucessivo tem uma distância cada vez menor a percorrer e, portanto, chega progressivamente mais cedo do que se Júpiter tivesse permanecido a uma distância constante. Por razões análogas, quando Júpiter está se afastando da Terra, vemos os eclipses progressivamente mais tarde. O grau desta chegada e atrasada depende da velocidade da luz e isto nos permite medi-la. Foi o que Roemer fez. Ele percebeu que os eclipses de uma das luas surgia mais cedo nas épocas do ano em que a Terra estava se aproximando e mais tarde nas épocas em que a Terra estava se afastando, e ele usou esta diferença para calcular a velocidade da luz." (HAWKING, Stephen. Uma Nova História do Tempo) Este foi o procedimento para se medir a velocidade da luz.
Duzentos anos depois, James Clerk Maxwell descobriu que há um vínculo entre as forças elétrica e magnética ao qual deu o nome de força eletromagnética, porque "cada carga e corrente elétrica cria um campo no espaço circundante que exerce uma força sobre toda outra carga e corrente localizada nesse espaço" (Ibid.), ou seja, magnetismo e eletricidade são dois aspectos da mesma força. E suas equações previram ondas no campo eletromagnético que se deslocariam a uma velocidade fixa: a velocidade da luz! Concluiu-se assim que a luz é uma onda eletromagnética de comprimento de onda (distância entre dois pontos mais altos) específico, assim como as ondas de rádio, raios X, etc.
Mas o fato de uma onda eletromagnética ter uma velocidade fixa não se ajustava com a física newtoniana, o pão nosso de cada dia: as velocidades dos objetos são relativas, dependem do referencial. Por exemplo, se estou andando a 5 km/h dentro de um trem se movimentando a 100 km/h, para um observador fora e que vê o trem passar, minha velocidade será de 105 km/h - a soma das velocidades. Mas para um observador lá dentro a velocidade é de 5 km/h, já que ele também se movimenta com o trem. Qual é então a minha velocidade: 5 ou 105 km/h? Assim, de acordo com as famosas leis de Newton, a velocidade depende do sistema de referência em que é medida: de dentro ou de fora do trem. Então ficou um problema: a velocidade da luz variava, como queria Newton, ou era fixa, como queria Maxwell?
Para resolver a questão, foi suposto que, como toda onda, a luz deveria ter um meio de propagação, tal como ondas do mar, ou ondas no ar, por onde a fala se transmite. Chamaram-na éter. E sua velocidade variaria caso de dentro do éter alguém se aproximasse da luz. Mas ela permaneceria fixa com relação ao meio, o éter. Para testar a existência desse meio, em 1887, mediram a velocidade da luz num ponto da órbita em que a Terra se aproximava do sol e em outro em que a Terra se afastava do sol. Descobriram que a velocidade era a mesma! Como poderia ser? Isso contraria o pão nosso de cada dia. No experimento do trem, a velocidade é relativa. Mas se a velocidade da luz for fixa isso implica que se eu observo uma lanterna apontando pra frente, dentro do trem e cujo feixe é paralelo à linha, não se somam as velocidades da luz da lanterna e a do trem. A velocidade continua a ser a da luz. Isso arruinava a teoria do éter, que vários cientistas tentaram salvar, sem sucesso, e dava força à ideia de Maxwell.
Então houve o evento Einstein; ele rechaça definitivamente o conceito de éter. Seu postulado fundamental, que reverteu completamente a cabeça dos físicos foi de que as leis da ciência deveriam ser as mesmas para todos os observadores que estivessem se movimentando livremente, sem importar a sua velocidade. Isso já era conhecido desde Newton; porém Einstein ampliou o postulado para incluir a teoria de Maxwell. Isso quer dizer que é necessário que a velocidade da luz seja fixa, no lugar em que 'leis da ciência' ocupa no enunciado do postulado; todas as pessoas têm que medir a mesma velocidade da luz.
Dentro do trem (na experiência), se um jogador de basquete quicar uma bola para cima e para baixo, um observador a seu lado não verá deslocamento da bola, enquanto que para um observador externo a ver o trem passar verá a bola se deslocar o que o trem andou enquanto ela estava no ar. As distância entre os observadores também discordam. Lembrando Newton, a distância percorrida é igual à velocidade vezes o tempo. A única maneira de manter a velocidade da luz constante, para ambos os observadors (postulado fundamental) numa variação da distância (tal como acontece com a bola de basquete) é variando o tempo. Em outras palavras, Enstein trocou a relatividade da velocidade em Newton por uma relatividade no tempo, devido ao absolutismo experimentalmente demonstrado da velocidade da luz. Isso implica que o espaço e o tempo dependem entre si reciprocamente, uma vez que podemos medir distâncias com o tempo que a luz leva de um ponto a outro do espaço; é o princípio daquele sistema de medida que chamamos ano-luz. Outra consequência é a seguinte: nada pode se movimentar à velocidade da luz, exceto as ondas eletromagnéticas, que não têm massa, no vácuo. Isso porque, de acordo com a equivalência entre massa e energia (E=mc2 significa a quantidade de energia produzida se matéria fosse convertida em radiação eletromagnética), a energia cinética oriunda do aumento da velocidade aumentaria a massa do corpo à medida em que ele recebesse mais energia cinética. Dessa forma nenhum objeto com massa pode atingir a velocidade da luz porque, segundo os cálculos, sua massa se tornaria infinita, o que demandaria infinita energia para atingir tal ponto. Por isso, nada pode se mover mais rápido do que a velocidade da luz.
Assim, este foi o primeiro golpe de Einstein: relativizar o que era absoluto (o tempo) ao absolutizar o que era relativo (a velocidade [da luz] newtoniana).
Esta é a teoria especial da Relatividade. Especial porque ainda não estava completamente acabada: Einstein precisava demonstrar como conciliar a relatividade - ou seja o fato de que a maior velocidade possível é limitada e fixa - e a gravidade newtoniana, que afirmava que a atração entre os corpos é instantânea. Por exemplo, se o sol desaparecesse de repente, para Einstein a Terra só poderia sentir qualquer efeito desse desaparecimento após o tempo necessário para que esse efeito cruzasse a distância entre os dois corpos. Como nada pode se movimentar mais rápido do que a luz, isso levaria cerca de oito minutos. Mas, para Newton, a força de atração entre a Terra e o sol desapareceria instantaneamente, ou seja, a velocidade da transmissão da informação do desaparecimento do sol seria infinita. Isso contrariava a teoria, pois a teoria de Einstein impedia que algo pudesse viajar mais rápido que a luz.
Após uma longa busca, dez anos depois Einstein atingiu seu ápice. Ele conseguiu conciliar a relatividade e a gravidade, porém irremediavelmente subvertendo seu ídolo Isaac Newton. A Teoria da Relatividade Geral foi que deu o golpe de misericórdia nas concepções tradicionais do universo. Surge o segundo evento de genialidade do físico.
Segundo rumores, Einstein olhava pela janela do seu escritório de patentes (onde trabalhava), de frente para um prédio, quando se deu conta de algo absolutamente impressionante. Ele imaginou um homem caindo do prédio que  observava, e percebeu que o homem não estaria sentindo seu próprio peso. Em seguida, imaginou este homem caindo, porém dentro de um elevador que também caía com ele, à mesma taxa. E entendeu que o homem estaria flutuando dentro do elevador, como se a gravidade houvesse sido desligada.
Imagine que há uma pessoa flutuando dentro de uma caixa cúbica no espaço sideral, onde não há gravidade, longe de qualquer campo gravitacional. Desse ponto de vista, não há em cima, em baixo, etc, pois está-se longe de qualquer referencial. Suponha então que de repente, a caixa (pode ser um elevador, um foguete) comece a acelerar constantemente (não se sabe pra qual lado, pois não há referência). Essa pessoa será empurrada pela aceleração - tal como somos 'puxados' em um carro que arranca - e 'cairá'. Esse puxão a levará para um dos lados da caixa e ela continuará caída lá se a aceleração continuar. Se essa pessoa ficar em pé, ela ficará presa àquela parte da caixa; e se soltar de sua mão uma maçã, essa maçã também será puxada para o mesmo lado da caixa em que a pessoa está em pé, tal como se ela estivesse parada dentro de sua casa na Terra e deixando a maçã cair. Isso quer dizer que há uma equivalência entre estar em aceleração constante e estar sob o efeito de um campo gravitacional constante! Em outras palavras, se você estiver em pé sobre uma caixa totalmente fechada na qual não se pode ver o que está fora dela, é impossível saber se se está em repouso num campo gravitacional, como a gravidade da Terra, ou em aceleração em um lugar com gravidade zero, no espaço sideral onde não há nenhum outro objeto que possa fazer gravidade (ver imagem). Se isso for verdade, há equivalência entre massa inercial (a massa na segunda lei de Newton, 'ação e reação', que determina o quanto se acelera em resposta a uma força) e a massa gravitacional (a massa na equação da gravidade que determina quanta força gravitacional se sente). "O motivo disto é que, se os dois tipos de massa forem iguais, então todos os objetos num campo gravitacional cairão à mesma taxa, não importando qual a sua massa. Se esta equivalência não fosse verdadeira, então, sobre a influência da gravidade,  alguns objetos cairiam mais rapidamente que outros, o que implicaria que você poderia distinguir entre atração da gravidade e aceleração uniforme, em que tudo cai realmente com a mesma taxa." (HAWKING, ibid).
Mas o que causa essa aceleração? Como a gravidade empurra as massas? A aceleração precisa de que algo exerça força sobre o corpo. Aí vem a genialidade dedutiva de Einstein: é o próprio espaço! A massa de qualquer objeto deforma o espaço à sua volta e o espaço empurra o objeto, dando-lhe aceleração. Uma certa quantidade de matéria em uma determinada região do espaço curva-o, e ele causa a aceleração da matéria. Quer dizer, a gravidade não é uma força, mas a curvatura do espaço-tempo que produz a 'queda' dos corpos no que os acelera.
Einstein, naquele momento em que observava o prédio, imaginou um homem caindo. Dentro do elevador ele flutuava da mesma forma como se estivesse no espaço, fora do elevador. O princípio de equivalência foi o principal determinante da Teoria da Relatividade Geral; ele implicava que, além do espaço, o próprio tempo sofreria ação da gravidade.
Imagine um foguete em repouso no espaço sideral (não há aceleração e nem graviadade), e por comodidade, esse foguete tem o comprimento tal que a luz leva um segundo para ir de seu topo até a base. Há um observador no topo (OT) e um na base (OB), cada qual com seu relógio, os quais clicam a cada segundo. A cada clique do relógio, OT pisca sua lanterna, imediatamente. Quando OT pisca, OB recebe a luz um segundo depois (de acordo com o relógio de OT). Neste momento OT pisca outra vez. OB, em seu relógio, recebe o segundo sinal um segundo após receber o primeiro.
Imagine agora o mesmo foguete no espaço, porém em uma aceleração constante, se movendo 'para cima' (apenas por convenção, pois não há referência). Como o foguete se move, quando o observador do topo piscar, a luz levará menos de um segundo para chegar ao da base, por ter que percorrer menor distância. Um segundo após ter piscado, OT pisca de novo, e como o foguete está mais rápido (pela aceleração), a luz chegará ainda mais rápido a OB do que antes (para ambos os relógios). Ou seja, OB medirá menos de um segundo entre as piscadas que recebeu de OT, apesar de OT ter enviado os sinais no intervalo de um segundo. Até aí não há surpresas, porque o foguete se movimenta com aceleração.
No entanto, o princípio de equivalência propõe que não há diferença entre aceleração e gravidade. Então se tomarmos a mesma situação, porém com o foguete parado na superfície do planeta, o princípio prevê que o mesmo efeito ocorrerá! Eis a consequência da operação mental de Einstein: quanto mais forte a massa gravitacional, maior será o efeito de distorção temporal acarretado por ela. Em outras palavras, a função do tempo (e a de espaço) é adscrita à intensidade de campos gravitacionais. Isso generaliza a relatividade para todo o âmbito do espaço-tempo, inclusive o gravitacional, daí seu nome. Em 1962 ela foi confirmada por um experimento com relógios de alta precisão localizados no topo e na base de uma torre de água.
O que realmente aqui nos interessa nessa ótima história são simplesmente os dois princípios fundamentais, que determinaram (atenção a essa palavra) o acesso a um real da estrutura do universo.
Kant se perguntou “o que dá pra saber?” e deu uma resposta bem filosófica, o que não nos é importante no momento. Mas a pergunta é interessante, pois como é que Einstein pôde saber os seus dois postulados? Como eles puderam ser formulados e ainda agir sobre a natureza?
A resposta de Lacan é que se nos adequa mais, por levar em conta a descoberta dos fatos do inconsciente: “nada que não tenha a estrutura da linguagem, de todo modo, donde resulta que até onde irei dentro desse limite é uma questão de lógica”. Lógica aqui é para ser definida de acordo com o pensamento de Lacan: “o inconsciente decorre do puro lógico, em outros termos, do significante”, o que me leva a supor que a lógica é a própria lei do significante, ou seja, que real, simbólico e imaginário são os três registros que fundamentam o que é lógico. MD Magno adscreve esses registros à lógica da superfície de Möebius, em que o direito e o avesso (o Um e o Outro significante) podem interagir sem passar por uma borda. Mas passa-se por uma neutralidade, onde é indiscernível se se está no direito ou no avesso, que foi chamada de ponto bífido ou revirão, ponto este que conduz à orientação oposta.
Então, quero, junto com Lacan e Magno, definir o real como essa neutralidade em que o significante perde momentaneamente o sentido, porém imediatamente caindo no seu oposto, o Outro significante, assim avessando o sentido dotado àquele significante até então. É isso que se pede de uma psicanálise.
O Simbólico (do grego sym bálou, lançar junto) é “aquilo que chamei de Sexus, força explosiva (de cisão, Spaltung), do real em seu Retorno, fundadora de bifididade” (MAGNO, Escólios.) É a separação entre o um e o outro, o fato de existirem diferenças – vale lembrar que Lacan definia a lei do simbólico como a lei da diferença, pois cada significante é um significante somente na medida em que vale para um outro. Só há diferença a partir de uma oposição.
O Imaginário é essa vontade de ajuntar tudo numa coincidentia oppositorum, de condensar os opostos em uma coisa só; força implosiva, erótica, do real, e que forma os sintomas (tal como Freud dizia que o sintoma era uma formação de compromisso entre dois instintos opostos). O sintoma vem imaginariamente ocupar a neutralidade do significante ao doar-lhe sentido pela sua articulação simbólica.
E o Sintoma é qualquer formação sobredeterminada e consistida pela interação dos três registros: a partir de uma neutralidade que equivoca um significante (real), esse significante opõe-se a si mesmo, passa a Outro (simbólico) e deposita seu sentido lá (imaginário). O sintoma é uma configuração simbólico-imaginária do real.
Repetindo: o que aconteceu com Einstein e que o levou a formular dois dos mais importantes princípios de que se tem notícia?
Lacan o disse com todas as letras: “Nós precisamos do equívoco. É a definição da análise” (Seminário 25 – O Momento de Concluir, 1ª aula). É isso que visa uma interpretação psicanalítica: desconstruir o sentido do sintoma através da sua neutralização; levar o sintoma ao indizível do nonsense para que o espaço para um novo sentido a esse sintoma irrompa e faça com que o inconsciente seja responsável pela redução do sintoma (LACAN, Seminário 22 – R.S.I., 1ª aula).
Freud afirmava categoricamente a sobredeterminação do sintoma. Lacan também, no que os significantes o determinavam, chegando a mesmo dizer: “nenhum acaso existe senão em uma determinação de linguagem, e isso, sob qualquer aspecto que o conjuguemos, de automatismo ou de casualidade” (Escritos, p. 907). Ora, o equívoco se dá ‘por acaso’, e é por isso que não se faz análise apenas em divã; pode-se estar sentado num buteco e equivocar um sintoma com o qual se debate há muito tempo no consultório, como já me ocorreu. Mas isso soa paradoxal: o acaso é determinado? O dicionário diz que acaso é o indeterminado. Como podemos dizer que o acaso se determina?
MD Magno se pergunta como pode ser possível escapar da sobredeterminação do sintoma, quer dizer, como podemos reduzi-lo pelo próprio inconsciente. “A única saída, se houver, é trazer um significante novo, ou seja escapar da sobredetrminação trazendo de volta para dentro do campo da determinação um determinante novo que, de novo, o sobredetermina” (De Mysterio Magno). É uma resposta genial. Mas como isso ocorre? “Toda e qualquer determinação está inscrita em uma ordem opositiva [tal como o direito e o avesso da banda de Möebius]. O terceiro [a neutralidade, paralém das oposições, do revirão] não tem marca da sobredeterminação. Trata-se então de uma re-combinatória pela introdução, no campo da sobredeterminação, de um determinante que lá não estava, e que o sujeito não inventou. Ele apenas fez o expediente de, pressionado justamente para o lugar do tal determinante – que era, vamos dizer assim, ex-cêntrico à sua questão – ir à sua posição terceira e retornar com o avessamento dele – o que cria outra vez duas possibilidades de significação” (Ibid.). Essa inserção de uma nova determinação no campo da sobredeterminação é o que Magno chamou de Hiperdeterminação, a referência à neutralidade que retorna para o seio das oposições como o oposto do que foi hiperdeterminado. “E, com esta referência, na indiferenciação das ‘internalidades’ opositivas [...], temos condição de passar a conceber, se não mesmo perceber, o que para nós não estava presente para o entendimento de nossa história – pelo menos isso” (A Psicanálise, Novamente).
Quero, então, supor que o ato de postulação dos dois princípios da relatividade – o princípio da constância da velocidade da luz e o princípio de equivalência – são atos psicanalíticos, que subvertem as significações comuns em vigor num certo campo de sobredeterminação quando de sua referência hiperdeterminante. Einstein faz POESIA com o postulado newtoniano de que as leis da ciência devem ser válidas para todos. Ora, se a velocidade da luz é uma lei da ciência, tal como foi observado, é necessário submeter o tempo ao equívoco, quer dizer, relativizá-lo (tanto enquanto significante quanto fisicamente), dando-lhe assim um novo sentido. Isso é da mesma ordem de uma interpretação, pois Einstein teve que esburacar a noção comum de tempo para poder introduzir-lhe um significante novo. “A interpretação, emiti, não é interpretação de sentido, mas jogo com o equívoco” (LACAN, A Terceira).
Isso fica ainda mais claro no princípio de equivalência, que é realmente um exemplo princeps do que deve ser uma interpretação. Durante a observação do prédio, em algum ponto daquela cadeia de raciocínio, Einstein neutraliza a significação newtoniana da gravidade para imediatamente dar-lhe o sentido de aceleração. E esse acaso suposto na fortuidade de seu insight é o uso que Einstein faz do recurso disponível (mas não obrigatório) da Hiperdeterminação da sobredeterminação da significância da gravidade, que a avessa em aceleração, assim reconfigurando radicalmente esse campo de sobredeterminação até então vigente no pensamento mundial: Einstein interpretou o mundo todo, tal como o fizeram Copérnico, Darwin, Freud, e etc. Todos os cientistas concordam que o maior raciocínio de Einstein foi o ato do princípio da equivalência; um verdadeiro milagre para a humanidade.
Esse ato, essa ruptura que roça momentaneamente a indiferença, é da ordem da poesia, e Miller nos diz porque: “O último ensino de Lacan tende a aproximar a psicanálise da poesia, ou seja, de um jogo sobre os sentidos sempre duplos do significante. Sentido próprio e sentido figurado, sentido léxico e sentido contextual, isso é o que a poesia explora para, como diz Lacan, fazer violência ao uso comum da língua” (O Último Ensino de Lacan – Opção Lacaniana no. 35). Lembrando que só há passagem de um sentido a outro, quer dizer, só há poesia quando da ação do real, cuja função é, pela via da neutralidade instantânea, produzir a recombinatória que hiperdetermina a sobredeterminação. 
Einstein dizia que uma descoberta científica se devia a 1% de inspiração (de poesia) e 99% de transpiração (fundamentar matematicamente postulados como esses não deve ser fácil!). Mas esse único porcento de inspiração dá uma aula de poesia e de psicanálise a quem tiver ouvidos para as ressonâncias de sua arte.
Misteriosos são os caminhos do universo. E, no meio do caminho, tinha Einstein. Tinha Einstein no meio do caminho.