quinta-feira, 21 de março de 2013

Por uma Comissão de Direitos Inumanos


Está havendo no Brasil um grande conflito político-social, que tem gerado intensas manifestações populares (a ponto das pessoas realmente saírem do ‘sofá’) e vem chacoalhando diversos setores políticos e midiáticos. A indicação do pastor Marco Feliciano para o cargo de presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados inflamou o segmento social LGBT e todos os simpatizantes dos chamados ‘direitos humanos’. Pois as declarações já feitas por Feliciano (consideradas homofóbicas, racistas e misóginas) irritaram profundamente o público alvo de suas palavras. Feliciano alega que está apenas no seu direito de se expressar e tem o apoio do segmento social evangélico, que tem crescido cada vez mais no país devido à grande difusão que têm tido nos veículos de comunicação em massa (que por sua vez, cedem seu espaço às igrejas devido ao alto preço que elas lhes pagam). Assim, constituem-se os dois polos do conflito: de um lado LGBT, negros, mulheres (não evangélicas, suponho), e simpatizantes dos ‘direitos humanos’; de outro, os cada vez mais numerosos evangélicos, que desejam um estado mais voltado aos ensinamentos da Bíblia (estado esse que até já tem um nome: ‘Jesuscracia’).

As críticas que os LGBT fazem aos evangélicos é a de que estes últimos, ao dizerem coisas como “o reto não foi feito para ser penetrado”, estão naturalizando coisas que não tem essência em si mesmas; o uso do reto é algo condicionado pela contingência, não é nem feito para ser quanto para não ser penetrado, e cabe a cada um, cada indivíduo, fazer seu próprio uso do reto. Assim, o liberalismo, tão característico das sociedades capitalistas, é o preconizado aqui, em oposição ao fundamentalismo naturalista que a bancada evangélica tenta ‘impor’ à sociedade liberal-democrática.

No entanto, se seguirmos os passos de Zizek aqui, veremos que esse próprio fundamentalismo é, ele mesmo, fruto da própria democracia liberal-capitalista. O filósofo nos diz que a vida pública, por cada vez mais estar sendo exposta à vida privada devido aos diversos meios de comunicação (especialmente as redes sociais), é o que está de fato se perdendo na sociedade, em prol das idiossincrasias que cada vez mais invadem seu espaço, assim re-naturalizando esse espaço público como um espaço privado, em que os interesses individuais têm que se sobrepor aos coletivos: cada um pode escolher se as coisas entram ou saem do reto, isso não cabe a governo nenhum. “Todas as grandes ‘questões públicas’ são agora traduzidas em atitudes para uma regulação de idiossincrasias ‘naturais’ ou ‘pessoais’” (ZIZEK).

Assim, vemos que ambos os polos do conflito são naturalizantes, e não apenas os evangélicos. Mas os LGBT pregam que cada um deve ter a liberdade de escolha sobre o sentido do seu próprio reto: entrar ou sair. A liberdade de escolha é bandeira fundamental desse segmento. A oposição se constitui da seguinte maneira: de um lado, LGBT defendendo a expressão livre da sexualidade, incluindo a liberdade de se mostrar, se expor e até mesmo de incomodar os evangélicos; do outro lado, os religiosos tentando suprimir ou controlar essa ameaça. Zizek nos lembra da proibição na França de que as alunas usem burkas, o que estaria simbolizando uma permissão para que as muçulmanas possam exprimir sua sexualidade e dispor de seus corpos como quiserem. “Mas, também, pode-se dizer que o verdadeiro ponto traumático para os críticos do “fundamentalismo” muçulmano foi o fato de que há mulheres que não participaram do jogo de deixar seus corpos disponíveis para sedução sexual, ou para a circulação e trocas sociais envolvidas nisso” (ZIZEK). Ora, não se pode dizer o mesmo sobre os evangélicos? Eles são pessoas que não querem disponibilizar seus retos para o prazer sexual, e isso também aterroriza os liberais, da mesma maneira que os evangélicos se aterrorizam com essa ‘promiscuidade’: a posição de um implica a exclusão da posição do outro - tanto que a França proibiu que mesmo quem concordasse a usar a burka não poderia, pois isso chocaria os costumes liberais. Ainda se referindo à oposição Ocidente-liberal versus Oriente-fundamentalista, Zizek pontua que “Ambos os lados, por certo, mistificam ideológica e moralmente suas posições. Para o Ocidente, o direito das mulheres a se expor de forma provocativa ao desejo masculino é legitimado como seu direito de desfrutar de seus corpos como bem entendem. Para o Islã, o controle sobre a sexualidade feminina é legitimado pela defesa da dignidade da mulher em oposição à sua redução a objetos de exploração masculina.” (ZIZEK). O que ocorre é que os dois lados têm seus próprios modos de regulamentação da sexualidade: se isso é evidente no lado evangélico, no lado liberal é necessária uma regulação do excesso de sexualidade, até mesmo para conter o assédio. E esse é um ponto crucial, pois o liberalismo, que prega a tolerância para com o outro, tem nuances mais sombrias. Sim, você pode expressar sua sexualidade livremente, com a condição de não se aproximar demais do outro, que pode se sentir invadido pelo seu gozo. Assim, não se pode ser tão liberal assim, há que regular sua proximidade para com o outro de modo a respeitar seu direito de não ser assediado pela sua liberalidade. “Em suma, o outro é acolhido na medida em que sua presença não é intrusiva, na medida em que não seja, na verdade, o outro. A tolerância, portanto, coincide com o seu oposto. Meu dever de ser tolerante para com os outros significa, na verdade, que não devo chegar muito próximo a ele ou ela, não me introduzir em seu espaço – em suma, que devo respeitar sua intolerância em relação ao meu excesso de proximidade. Isto está emergindo cada vez mais como direito humano central da sociedade capitalista avançada: o direito a não ser assediado, isto é, a se manter a uma distância segura dos outros.”(ZIZEK). Isso é, em termos crus, um direito à intolerância, na forma desse direito de não ser assediado. Nesse aspecto, ambos os lados do conflito funcionam da mesma maneira; cada um deles dizendo que têm seu direito ao seu modo de ser: liberal ou evangélico; e cada um na sua. É a intolerância saindo pela culatra da tolerância.

E, mais ainda, os liberais têm dito que “o pastor Feliciano não me representa”; pode até ser, mas o fato é que há muita gente sendo representada por ele, e elas têm esse direito; têm direito à uma ‘Jesuscracia’. Mas o cheiro que fica dos liberais é que eles pensam que eles é que têm razão, já que naturalizaram a esfera pública como o domínio das preferências pessoais. A sociedade brasileira foi re-naturalizada como liberal. De modo que, assim como a nomeação de Feliciano foi uma manobra política para o segmento evangélico ganhar poder, os liberais começaram a se articular para depor o presidente. “Em nossas democracias liberais seculares, as pessoas que mantém uma fidelidade religiosa substancial estão em posições subordinadas: sua fé é “tolerada” por ser sua própria escolha pessoal, mas no momento em que a apresentam publicamente como o que a fé é para elas – uma questão de pertencimento substancial – são acusadas de “fundamentalismo”. Obviamente, o “tema da livre escolha”, no sentido “tolerante”, multicultural, pode apenas emergir como resultado de um processo extremamente violento de desenraizamento do mundo e da vida particular de cada um” (ZIZEK). Não é exatamente isso o que está acontecendo no seio desse conflito? Nesse sentido, os evangélicos têm razão de reclamarem que estão sendo tolhidos em sua liberdade de expressão. De modo que, manobra política por manobra política, não há diferença alguma entre os polos. Ambos buscando suas maneiras de estar no poder, cada qual com os seus interesses. Dessa forma, não há nenhuma instância superior, absoluta, que legitime que minha posição é A que representa o povo brasileiro; nem o Liberalismo (com as idiossincrasias de seus indivíduos se sobrepondo à esfera política), nem Deus (que proíbe todas as pessoas de usarem o reto de forma torta) – não há ‘grande Outro’ que afirme a correção ou o erro de minha posição.

O que é que sobra, então? Pura e simples guerra de poder. Sem aval de nenhum Outro. É isso que precisa ser entendido; não se pode naturalizar nem a prevalência da heteronormatividade, nem a da homonormatividade, pois nenhuma posição política pode ser encarada como natural. E isso, ao seu nível mais extremo, o de direitos ‘humanos’, que aparece como algo para além da querela 'meramente' política. “Na sociedade humana, a política é o princípio estrutural que a tudo engloba, assim, qualquer neutralização de algum conteúdo parcial indicando-o como “apolítico” é um gesto político par excellence” (ZIZEK). Que se saiba, então, que a própria definição de ‘humano’, enquanto política, não pode ser confundida com uma suposta naturalidade de sua definição. Se o reto é feito pra que se penetre ou se escoe depende de uma posição política, pois nada há de natural nas suas funções (nem mesmo o excremento!). E é essa posição política que define o ‘humano’ enquanto tal; “em um plano ainda mais geral, poderíamos problematizar a oposição entre os direitos humanos universais (pré-políticos), possuídos por qualquer ser humano “enquanto tal”, e os direitos políticos específicos de um cidadão ou membro de uma comunidade política particular. Neste sentido, Balibar (2004, p. 320-321) argumenta pela ‘reversão da relação teórica e histórica entre “homem” e “cidadão”’ que prossegue ‘explicando como o homem é formado pela cidadania e não a cidadania pelo homem’.” (ZIZEK). Isso é só outra maneira de dizer que não há humanidade enquanto tal; ou seja, cada representante que ocupar a cadeira da presidência da comissão de direitos humanos dará sua versão do que seja ‘humano’, para servir aos seus próprios interesses (ou melhor, os interesses de seus representados...); em outras palavras, a essencialidade do humano é não ter essencialidade alguma. Inclusive, toda a noção de direitos humanos tem que ser repensada a partir disso, pois é aí que surge o verdadeiro 'humano' enquanto tal: no inumano. “O “homem”, o portador dos direitos humanos, é gerado por um conjunto de práticas políticas que materializam a cidadania; os “direitos humanos” são, enquanto tais, uma falsa universalidade ideológica” (ZIZEK). Se lembrarmos da invasão do Iraque pelos EUA, a justificativa foi a de ‘libertar’ aquele sofrido povo dos abusos aos direitos ‘humanos’ cometidos pelo ‘grande ditador’, e que não teve nada a ver com ‘política’ (esse termo sujo, pernicioso...). “Assim, para colocar na forma leninista: hoje, o que os “direitos humanos de vítimas sofredoras do Terceiro Mundo” efetivamente significam, no discurso dominante, é o direito das próprias potências do Ocidente de intervir política, econômica, cultural e militarmente em países do Terceiro Mundo de sua escolha, em nome da defesa dos direitos humanos.”(ZIZEK). No entanto, não é porque não há essencialidade, universalidade (pelo menos em termos de conteúdo) no ser humano que não é possível haver direitos humanos universais; isso só é possível em sua radicalidade, na qual a “universalidade surge “por si mesma” somente quando os indivíduos não mais identificam completamente o âmago de seu ser com a sua situação particular; somente na medida em que se experimentam como “deslocados” para sempre dela. A existência concreta da universalidade é, desta maneira, o indivíduo sem um lugar adequado no edifício social.” (ZIZEK). A política é justamente a incessante construção de naturalizações que definam a humanidade do humano; mas o surgimento da universalidade da humanidade como tal (ou seja, o surgimento do inumano) se dá no momento em que essas construções falham e mostram esses deslocamentos do humano no tocante à sua humanidade. “Os ‘direitos humanos universais’ designam o espaço preciso da politização propriamente dita, eles equivalem ao direito de universalidade como tal – o direito de um agente político em declarar sua não-coincidência radical consigo mesmo (na sua identidade particular), para postular a si mesmo como o “supra-numerário”, aquele sem lugar adequado no edifício social; e, portanto, como um agente da universalidade do social em si” (ZIZEK). A universalidade de direitos humanos é condicionada dessa forma à universalidade da inumanidade; é a partir dessa última que pode começar a haver uma ‘polética’, que escape da armadilha da tolerância (que é sempre zero, e moralista) e abra espaço para o que MD Magno chamou de ‘diferocracia’, na qual, é pela indiferença (expressa na inumanidade) que se acolhem (e não se toleram) mais e mais diferenças (mais e mais humanidades).

Mas enquanto a sociedade humana não consegue se encontrar na sua inumanidade (talvez isso nunca aconteça), continuará a haver a pura e simples guerra de gosto, guerra pelo poder, não interessa o quão ‘nobres’ sejam os interesses; sejam eles liberais, sejam eles fundamentalistas – até porque aos olhos de Deus, nada está acima de nada (Deus é completamente indiferente). Assim, cada um, de acordo com sua posição (humana) na (in)humanidade tentará ocupar aquela cadeira da presidência – com isso dando sua versão de humanidade e tentando sustenta-la, assim se constituindo no poder. MD Magno observa que a guerra é o pressuposto implicado em toda relação de poder. E o poder é apenas a manutenção (seja em grande ou pequena escala) de uma versão do humano. “Em outros termos, todo vínculo (ou ordem política) sendo expressão de uma relação de dominação qualquer, contém, como sua condição, o conflito” (ALONSO) – psíquico ou social.

De modo que há que saber guerrear, não pelo seu ‘direito humano', mas pela sua posição no mundo, quer dizer, o seu direito de ser inumano, ou seja, de ser humano à sua maneira.  Mas é possível guerrear sem violência? Depende do que se entenda por tal. Se manobras políticas forem violência, não é possível. “Os insights de Hanna Arendt são cruciais aqui, ao enfatizar a distinção entre o poder político e o mero exercício da violência. As organizações dirigidas por uma autoridade apolítica direta – Exército, Igreja, escola – representam exemplos de violência (Gewalt), e não de poder político no sentido estrito do termo (ARENDT, 1970). Neste ponto, entretanto, temos que recordar a distinção entre a lei pública simbólica e os seus complementos obscenos. A noção deste duplo complemento obsceno de poder implica que não há poder sem violência. O espaço político nunca é “puro”, mas sempre implica algum tipo de confiança na violência pré-política. Por certo, a relação entre poder político e violência pré-política é de implicação mútua. A violência não é apenas o complemento necessário do poder, mas o próprio poder já está sempre na raiz de toda relação aparentemente “apolítica” de violência. A violência aceita e a relação direta de subordinação no interior do Exército, da Igreja, da família e de outras formas sociais “apolíticas” são, em si mesmas, a reificação de certa luta ético-política. A tarefa das análises críticas é perceber o processo político oculto que sustenta todos essas relações “a” ou “pré” políticas” (ZIZEK). Assim fica a lição: sempre manter uma posição de suspensão e suspeição dos processos políticos em conflito, mesmo quanto àquelas posições das quais se é partidário (no meu caso, pró LGBT). Colocar-se antes como ‘terceiro excluído’ da oposição do conflito para aí sim, só depois, descer para o nível mais baixo da efetiva escolha de uma das posições (a mais indiferente, a mais suspensiva possível). 

REFERENCIAS:

Zizek, Slavoj. Contra os direitos Humanos!. Disponível em:  http://blogdaboitempo.com.br/2013/03/14/contra-os-direitos-humanos-artigo-de-slavoj-zizek/

Alonso, Aristides, et. al. Temas da Nova Psicanálise. Disponível em: http://www.tranz.org.br/1_edicao/pdf/temas_da_nova_psicanalise.pdf