sábado, 25 de maio de 2013

Reflexões do (Contra)-Tempo

Falar de alguma música, especialmente instrumental, não é tarefa fácil. Isso porque o dizer da música não é dito em palavras; e o perigo reside justamente em colocar palavras na boca da música, acaba sendo uma dublagem - e com grandes tendências ao delírio. A música sempre vem antes das palavras, as quais, por sua vez, tentam falar o que a música quer dizer. Mas isso não significa que as palavras estejam erradas quando são pronunciadas; quer dizer apenas que elas não dizem tudo o que se pode dizer de uma música: uma música não esgota seu sentido em palavras. Sempre ficará por dizer... Mas tudo o que se diga sobre uma música é verdadeiro, porque toda interpretação de alguma coisa foi produzida pela coisa que está sendo interpretada, e denota (não 'conota') algo sobre a própria coisa. Só há fatos, não há interpretações.

De modo que arriscaremos aqui dublar uma música de Tigran Hamasyan, pianista 'de jazz' armênio, em seu álbum "Red Hail". Mais especificamente, a faixa "The Glass-Hearted Queen", a terceira do disco. E, mais especificamente ainda, nosso alvo é a arquitetura esquelética da bateria nessa música. Sabemos que tradicionalmente a bateria é considerada a ossatura de uma música, como uma estrutura de vigas que dá a sustentação daquele ritmo. Em inglês ela é conhecida por 'backbone', a espinha dorsal. De modo que ela pode ter um papel crucial no desenvolvimento de uma música, por exemplo, determinando onde é seu tempo e o contratempo; ou pode dar diversas texturas à música, desde um céu estrelado de pratos a um terremoto de surdos e bumbos...

A faixa de Tigran, em seu conjunto, é muito simples. Os instrumentos são baixo e piano em uníssono, fazendo um ritmo meio latino-torto, e a bateria apenas acompanhando essa latinidade armena. O compasso é de nove colcheias. A melodia, por sua vez, é completamente o oposto de algo latino: sax soprano e voz feminina tocam um tema para o qual é difícil achar adjetivo. Mas me parece ser realmente algo mais para o lado do oriente médio, o que mostra como a mistura é inusitada: ritmo e harmonia "latina" com melodia armênia.

O tema se repete duas vezes, com a harmonia repetindo suas nove colcheias incessantemente. Em seguida, ao baixo e piano se acresce uma guitarra com distorção, e, com uma pequena variação, a harmonia se repete com o piano, baixo e a guitarra transformando-a em um heavy-metal (!).

No entanto, esse heavy-metal tem suas peculiaridades: o seu compasso é em nove colcheias, e não em quatro semínimas como vemos na grande maioria dos casos; sua circularidade é mais extensa, digamos assim. Além disso, não tem 'melodia', quer dizer, alguém lá gritando igual ao Max Cavalera. Porém, o mais impressionante aqui é a bateria. Pense o seguinte: a música toda é uma repetição dessa frase em nove, que na parte pesada nem tem melodia, o que reforça ainda mais a sensação de repetição. E isso corre um risco danado de ficar chato: ficar três minutos escutando dezenas de vezes a mesma frase musical. No entanto, é aí que entra o papel genial da bateria nessa música: ela meio que faz as vezes da melodia, introduzindo variações nessa parte da música. Classicamente, as baterias de heavy-metal têm o prato tocando todas as semínimas ou todas as colcheias de um compasso (que geralmente é de quatro semínimas, ou oito colcheias), e tocando a caixa nos tempos pares, nas semínimas pares (nomeadamente a 2 e a 4), enquanto o bumbo se ajusta ao resto do ritmo a partir dos espaços entre as batidas na caixa. Dentro desse esquema há geralmente poucas variações, apenas em viradas, e tal. Pois bem, o que o baterista do Tigran fez foi dilatar esse esquema que ocupa um espaço de quatro semínimas para encaixá-lo em nove colcheias - ele colocou um heavy metal num compasso bastante incomum pra esse estilo. Para tal, o prato, que geralmente toca nas semínimas, passa a tocar a cada uma colcheia e meia (uma colcheia pontuada), ou seja, uma colcheia mais uma semi-colcheia, totalizando seis toques em nove colcheias (que é o tamanho do compasso), ao invés dos tradicionais quatro toques em oito colcheias. Perceba que na comparação, a música de Tigran aumentou apenas uma colcheia enquanto o número de batidas aumentou para duas a mais do que em oito colcheias. Isso dá uma maior sensação de dinamismo para um heavy-metal, ou seja, não fica tão heavy assim: ele anda mais rápido, apesar dos outros instrumentos estarem mais devagar que a bateria - a bateria acelera a música sem aumentar sua velocidade (seu pulso)...

E enquanto isso, o esquema de Metal é mantido na caixa, mas também dilatado para o compasso ímpar. Assim, nas batidas pares do prato (2, 4 e 6 nomeadamente) a caixa também toca. A diferença para o tradicional é que, como o prato toca a cada semínima e meia, seus toques pares são toques em semi-colcheias no compasso, ou seja, um contra-tempo de colcheia. Então os toques do prato são tempo, contratempo, tempo, contratempo, tempo, contratempo. Porém, como a caixa toca a cada dois toques de prato, a impressão geral é a de uma batida binária: tipo "tum-pá, tum-pá, tum-pá", ou seja, algo como seis semínimas no compasso, ao invés de nove colcheias. Como eu disse, é pegar aquele "tum-pá, tum-pá" em quatro do heavy-metal e esticá-lo para ele caber como seis semínimas em um compasso de nove colcheias.

Enquanto isso, o bumbo se articula à caixa (que só toca em contratempos, ou seja, em semi-colcheias) criando ritmos completamente alheios ao heavy-metal. É muito difícil dar um nome para que ritmo se cria aí, mas pelos contra-tempos, associo alguns momentos ao maracatu. Claro que também é harmônico com o heavy-metal em si, porém o metal raramente usa contratempos de semicolcheias como batida de base na bateria, até mesmo para continuar sendo heavy, já que o contratempo sempre tende a dar a sensação de sair do chão (que o tempo representa), oposto ao heavy metal que é como fortes pisadas no chão.

Bom, esse cenário se repete por quatro compassos, e uma virada sutil introduz uma mudança na substância da música. O prato, que até então tocava a cada colcheia e meia, agora toca semínimas, apenas. Agora sim, a música se torna mais próxima do heavy-metal tradicional, tocando as semínimas e a caixa também continua tocando nos pares, que são semínimas agora: a música se torna muito mais heavy. O bumbo continua concordando com o ritmo, e se organizando ao redor da caixa.

Em seguida, a bateria repete o esquema anterior por quatro vezes e passa a repetir o esquema seguinte, porém com os pratos batendo as colcheias, preenchendo mais a música. Preparando o final dessa sequência, o prato então muda subitamente para os contra-tempos das colcheias junto com a caixa aparecendo a cada três dessas batidas: é como se os contratempos estivessem sendo tratados como tempos, de colcheia. Daí, há uma sequenciazinha de viradas, e os pratos retomam o ritmo de semínimas, começando pelo contratempo (ou seja, pelas semínimas pares). Isso faz com que a cada compasso de nove colcheias, as batidas de semínimas passam de contra-tempo a tempo e a contra-tempo, etc. E a caixa sempre no esquema metal: uma semínima sim, outra não, marcando "o dois".

Mas após três compassos assim, surge o mais radical da bateria. A última nota do prato antes da mudança não é uma semínima, mas uma colcheia pontuada, o que faz a nota seguinte (a primeira que introduz a mudança) ser no lugar de uma semicolcheia com relação à anterior, o que desloca o centro de gravidade da música para o avesso do avesso da semínima: a semicolcheia (um contra-tempo), que passa a ter o valor de tempo. Quer dizer, as batidas de semínimas, que estavam marcando tempos, como típico do metal, foram deslocadas em um quarto de sua posição anterior - após a colcheia pontuada, as semínimas retornam. A sensação que isso causa é de avessamento do chão do pulso, que empurra a escuta para outra dimensão espacial. É como alguém dentro de uma caixa no espaço sideral, onde não há gravidade: e se eu empurrar a caixa (a 9 m/s/s, velocidade da gravidade da Terra) em uma direção qualquer (cima, baixo, esquerda, direita, frente ou trás) a gravidade surge como o empuxo causado pela aceleração, e você pode ficar em pé na caixa na parte da caixa contrária à direção que se empurra. Mas se nesse trajeto, de repente mudo a direção do empurrão, você sentirá a gravidade na parte da caixa oposta à que estou empurrando agora, de modo que a gravidade muda de lugar dentro da caixa. É exatamente isso que o deslocamento de um quarto das semínimas da bateria causa na música como um todo: a guitarra e o baixo passam também a ser "vistos" como tendo seu centro de gravidade (relativo ao tempo) deslocado para o contra-tempo. Em resumo, a bateria toca em síncopa e puxa o resto dos instrumentos para a sensação de que o sincopado é que é o tempo. Isso mostra aquilo que Argus Montenegro chamou de "instabilidade do tempo forte", quando há uma inversão (se não mesmo reversão) da relação tempo/contra-tempo. 

Essa reversão é da ordem da função topológica do espelho, que é a de avessamento do se coloca em sua frente. E é precisamente essa função que, de acordo com o pensamento da psicanálise, produz o ato-poético, o ato analítico. "a obra de arte é a construção de um espelho. Aonde vige o ato poético, o poeta conseguiu ou terá conseguido construir um espelho", diz o psicanalista MD Magno. "Não se trata da superfície material, mas de repetir a lógica do espelho (...). Por isso que a obra de arte ocupa o mesmo lugar que tenta ocupar o analista, razão pela qual não se pode fazer psicanálise de uma obra de arte e sim ser analisando diante dela". É precisamente o que estou fazendo enquanto escrevo este texto: me analisando. Talvez alguém que esteja lendo possa recolher alguma s'obra de arte do que escrevo...

Mas, retomando o raciocínio, podemos pensar que a bateria, no momento chave a que me referi, introduz o espelho na música, avessando radicalmente o sentido topológico (ou seja, a imagem) que a música tinha até então. De modo que digo que há um ato poético do baterista em particular (ou de quem quer que tenha concebido essa bateria) nessa canção. Ele cria, a partir da introdução do espelho, uma imagem avessada da música. Mas seu ato é colocação de espelho; a imagem revertida que surge é apenas a consequência de introduzir espelho lá. "É preciso não confundir, porque quando a obra aponta para o espelho o imbecil olha para a imagem. (...) O poeta constrói esse espelho. É para ele que temos que olhar, e tentar desfazer as imagens". Repito: a bateria, ao revirar o sentido topológico da música, desfaz a imagem que havia nela (de tempo forte) para mostrar como o espelho causa a "instabilidade" dessa imagem - e o que se evidencia aí é o surgimento do espelho: o tempo forte se reflete em contra-tempo.

Faço esse destaque aqui no texto porque não é lá muito comum associarmos uma batida de bateria, especialmente uma inspirada em Heavy Metal, com poesia: isso geralmente cabe aos instrumentos harmônicos, como piano, violão, etc. Por isso, achei que merecia ser comentado em suas minúcias. Poesia é algo que pode acontecer em qualquer lugar, em qualquer profissão, em qualquer prática. Por isso, psicanálise (enquanto ato poético, ato psicanalítico) é algo que ocorre não apenas dentro de consultórios, mas por aí, mundo afora. No entanto, é algo raro. É preciso estar atento para não deixar momentos assim escaparem. Sabendo escutar (ou ver, ou saborear, ou tocar, ou cheirar) esses momentos, temos mais chances de produzi-los. 

Eis a música - o momento chave está em 2:59 - 3:00. Quando a música se avessa, ela dá o fade, mostrando que é seu fim - até porque depois desse revirão, só resta dizer o que um analista diz quando arrisca um ato: "ficamos por aqui", tipo assim: vai dormir com essa - reflita!


REFERÊNCIA: MD Magno, "Psicanálise e polética" p. 250-1

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Nomeio da pedra

Para Raquel 


Tinha um caminho no meio da pedra
No meio da pedra tinha um caminho
Tinha um caminho
No meio da pedra tinha um caminho.

Sempre me lembrarei desse acontecimento
Na morte de minhas retinas tão fustigadas.
Sempre me lembrarei que no meio da pedra
Tinha um caminho
Tinha um caminho no meio da pedra
No meio da pedra tinha um caminho.

Do retorno a Freud ao retorno DE Freud

Freud existe há 157 anos hoje. A importância que ele têm para as profundas transformações que ocorreram no século 20 é gigantesca, tendo influenciado largamente o que se chama de cultura ocidental; na pintura, na poesia, na ciência, nas relações sociais, todos conhecem suas expressões, como 'inconsciente', 'complexo de édipo' e, principalmente, 'recalque' - hoje em dia é comum ouvir na novela que fulana tá 'recalcada'.

Isso no entanto não quer dizer que se entenda o que ele realmente queria dizer com tais conceitos... muitas vezes nem ele sabia assim tão bem. Mas à época de suas descobertas, no início do século passado, foi o pensamento mais de ponta que havia - junto com a física quântica. Até hoje, há imensas discordâncias sobre o que seus conceitos realmente significam.

Foi por isso que no meio do século passado veio um Jacques LAcan, um francês, e, diante da pletora de 'compreensões' da obra do austríaco veio propor um "retorno a Freud", ou seja, sentar e reler tudo o que ele disse, mas a partir do paradigma da linguagem. A estrutura do inconsciente freudiano é a própria estrutura da linguagem, ou seja, um sistema de significação. Esse passo dado por Lacan esclarece muito, facilita (apesar da complexidade) entender a lógica do inconsciente.

Mas mesmo Lacan percebeu que isso não explicava tudo; ficou seus últimos anos tentando entender o inconsciente a partir da matemática e da topologia (ramo da matemática que estuda superfícies). No final de seu ensino, era uma zorra: ficou mais confuso do que esclarecido - por isso é que ele dissolveu a escola que ele próprio havia fundado para começar outra, para a qual selecionou apenas alguns 'afortunados'. Isso para que as pessoas começassem a pensar por si sós e parassem de repetir as fórmulas lacanianas sem entender o que estavam dizendo.

Desde então, não houve uma grande revolução do pensamento psicanalítico... é o que dizem. Mas há um brasileiro, que foi aluno de Lacan nos últimos anos de seu ensino, que fundou uma das primeiras escolas de psicanálise lacaniana do Brasil (o colégio freudiano RJ), e desde a morte do mestre francês, põe a cara a tapa para reformular e unificar todo o pensamento da linhagem freud-lacaniana. MD Magno propõe não um retorno a Freud, nem um retorno a Lacan (que é um fenômeno que parece despontar aqui no país), mas sim um retorno DE Freud, da postura freudiana de, arrisco a dizer, redescoberta do inconsciente. Dizer que o inconsciente é estruturado pelo complexo de édipo acabou quando Lacan disse que o inconsciente é estruturado como linguagem. Mas, como o próprio lacan o fez, dizer isso ainda não basta. Especialmente após sua morte, que foi há trinta anos, o que é que significa dizer 'a linguagem'? Muita coisa mudou em todos os campos do saber e uma definição lacaniana como essa já não se sustenta há muito tempo. No entanto, ensina-se lacanismo nas universidades como 'um museu de grandes novidades'. Triste, pois 'o tempo não para'.

Ora, o que Lacan fez foi simplesmente dar a seus alunos todas as condições de se desvencilharem da repetição de dogmas lacanianos para pensarem a partir do que ele ofereceu - não pra ficar repetindo. E isso, MD Magno fez e faz: desde 1975 ele se apresenta quinzenalmente para quem quiser ouvir seu modo de entender a psicanálise - servindo-se de Lacan para dispensá-lo. Nada mais analítico que isso: o analista deve ser capaz de re-produzir a psicanálise também teoricamente. Caso não saibam, MD Magno está vivo e produzindo sua teoria, que é um work in progress, assim como a análise - ela é infinita. Esse trabalho é importante, porque a teoria que se adota pra uma prática clínica tem peso sintomático que atrapalha o próprio movimento analítico. Quanto menos sintomática for a teoria, menos se torna a clínica. E vice-versa.

Se Freud é alguém que inicia o século XX - com a sua Interpretação dos Sonhos  - Lacan é quem encerra esse século. Isso porque o século XXI se inicia justamente na década em que ele morreu: a crise dos fundamentos, iniciada lá mesmo com Freud, ganha novo ímpeto a partir da revolução tecnológica que ocorre com os anos 80 e da qual cada vez mais colhemos os efeitos (é só ver por exemplo como a internet muda nossa maneira de lidar com a informação, com a politica, com a sexualidade, etc.). Lacan não tinha uma teoria para dar conta dos efeitos dissolventes da tecnologia. Esses efeitos dissolvem, só pra ficar com os pontos mais importantes e também polêmicos, a distinção entre natureza e cultura, entre físico e psíquico, e entre homem e máquina. Sim, é forte falar isso, né? É virulento! Como a peste que Freud anunciava no início do século passado pra falar da descoberta do inconsciente. É precisamente disso que a psicanálise precisa hoje: redescobrir a si mesma. Nisso, Magno é mais freudiano que Freud e mais lacaniano que Lacan: leva às últimas consequências todo o trabalho desses dois gênios. Por isso é que sua atitude representa um retorno DE Freud, da postura de redescobrir o pensamento freudiano, porque esse pensamento "é o mais perpetuamente aberto à revisão. É um erro reduzi-lo a palavras gastas", como disse Lacan no seu primeiro ano de ensino público, justificando assim sua intromissão no legado freudiano. Magno não é perfeito, e ainda haverá de aparecer alguém que seja mais 'magniano' que o próprio Magno. Mas no momento é o pensamento mais de ponta, que se articula o mais amplamente possível com todo o movimento científico, tecnológico, social que estamos vivendo... E é bom corrermos atrás, porque já-já chega o século XXII e nós ainda nem saímos do XX. Que Freud continue reencarnando em Lacans e Magnos do devir...

Bem-dita seja a psicanálise! Senão...

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Não existe Sexo

O que a psicanálise trouxe com o nome de Pulsão é o fato de que quaisquer que sejam os objetos de satisfação de alguém, alguma coisa sempre restará por ser satisfeita. Essa 'alguma coisa' que não se atinge, por mais satisfação que um objeto qualquer lhe dê, foi chamada por Lacan de objeto a: objeto esse que é inatingível, porém é o ponto para o qual todos os objetos de satisfação convergem. Quando se toma um objeto como algo com que se satisfaz, ele está apenas entrando como substituto do objeto da satisfação absoluta - que é o objeto a

Quando Freud fala que a pulsão é sexual (mesmo a de morte) está dizendo que 'sexual' significa um atingimento de satisfação qualquer - seja ela sexual (genital) ou não. Para a definição de sexual importa é que existe um sujeito que deseja um objeto: uma coisa quer outra, e a satisfação que se obtém com o objeto é sexual. No entanto, Freud mostra que é possível tomar o próprio sujeito como objeto sexual: daí a masturbação, que é uma coisa que se satisfaz em si mesma - Freud falava que era uma satisfação auto-erótica. Assim, podemos dizer que o sexo implica o outro, é heterótico; masturbação implica o mesmo, é aut'erótica.

Lacan fala que a pulsão não atinge seu alvo (obj. a), mas o circula num circuito repetitivo, insistindo, a partir de um objeto qualquer, em chegar no objeto impossível. Isso porque a pulsão não se contenta com 'objetos de desejo': ela quer sempre mais. Ela quer o objeto que a faria parar de querer, pois querer é afirmar que não se tem o que se quer. O desejo da pulsão é o de não desejar. Mas como dissemos, não há objeto que satisfaça a pulsão, que a faça parar de querer - o objeto a não existe, a não ser como a presença da ausência do objeto pleno da pulsão. A pulsão quer não existir; se qualquer coisa (objeto) existir, a pulsão quer o além dele (Freud chamou a isso de além do princípio de prazer proporcionado pelo objeto qualquer); aliás, ela quer o além de si mesma: ela quer o Outro, o transcendente. Mas esse transcendente não há. E é precisamente porque ele não há que ela o quer.

A pulsão, como tal, é uma imanência: ela não escapa de si mesma, não chega ao desejado e impossível transcendente. Fica condenada a satisfações parciárias dentro da própria imanência. A repetição é prova disso: um objeto qualquer é tomado como O objeto pulsional, e a força da pulsão é aplicada a ele como se fosse o objeto a. E a própria insatisfação quanto à incompletude desse objeto qualquer compele à re-petição (que significa pedir de novo, e de novo, e de novo... por um objeto que não há). Quando Lacan fala que a pulsão circula o objeto, isso quer dizer que a pulsão tem que se satisfazer em si mesma, na sua própria imanência, pois não há objeto a (transcendência) para se atingir como alvo. Se a pulsão atingisse seu objeto ela simplesmente cessaria. Por isso, Freud a chamou de pulsão de morte: só a morte pararia a pulsão. Mas não porque com a morte se chegou ao objeto a, mas sim porque na morte não há mais organismo biológico que sustente a pulsão - da mesma forma que um animal morto não tem instintos, um humano morto não tem pulsão. A morte é só uma fantasia para se falar do objeto a.

Se definimos o sexo como dependente de um outro, no caso da pulsão de morte, seu objeto sexual é o transcendente objeto a. Mas ela nunca conseguirá estabelecer uma relação sexual com esse objeto, pois ele não existe - o objeto a apenas representa a inexistência radical de um objeto adequado pra  satisfazer a pulsão; já a pulsão existe, prova de que não se chegou ao objeto. A pulsão não consegue fazer sexo com outra coisa a não ser consigo mesma, em si mesma - não há satisfação pulsional para fora da pulsão. O objeto sexual da pulsão não existe, é uma fantasia que lhe é estrutural, imanente. Ou seja, pulsão não faz Sexo (enquanto atingimento da satisfação do transcendente): pulsão se masturba (como atingimento de satisfação na imanência), é o máximo que ela consegue. Lacan dizia que não há relação sexual, querendo dizer com isso que não existe objeto pra pulsão. Mas acaba que, se levado ao pé da letra, dizer que não há relação sexual é dizer que não há Sexo como tal: o sexo nunca se realiza, a não ser como masturbação, como re-petição de sexo. A relação sexual transcendental desejada pela pulsão, como desejo de não desejar, representado pelo objeto a, não existe; o que resta, o que existe de fato é a imanência do próprio desejo de não desejar, que tem que se 'satisfazer', de algum modo, com a própria existência. Como se diz no popular: se não tem Tu, vai tu mesmo.

Mas e o que dizer do sexo que as pessoas fazem todos os dias? Só posso dizer que transar é masturbar-se através de outro corpo. As pessoas SE masturbam durante o coito - mas não fazem sexo. A única relação sexual SERIA com o objeto a - mas ela é impossível... Transar e gozar (também no sentido psicanalítico) não acabam com a pulsão, pelo contrário: mostram que, mesmo com essa 'petit mort' ('pequena morte', que é o termo em francês para orgasmo), continuamos bem vivos, e insatisfeitos porque desejamos de fato é a Grand Mort - pena que esta, não existe.