Falar de alguma música, especialmente instrumental, não é tarefa fácil. Isso porque o dizer da música não é dito em palavras; e o perigo reside justamente em colocar palavras na boca da música, acaba sendo uma dublagem - e com grandes tendências ao delírio. A música sempre vem antes das palavras, as quais, por sua vez, tentam falar o que a música quer dizer. Mas isso não significa que as palavras estejam erradas quando são pronunciadas; quer dizer apenas que elas não dizem tudo o que se pode dizer de uma música: uma música não esgota seu sentido em palavras. Sempre ficará por dizer... Mas tudo o que se diga sobre uma música é verdadeiro, porque toda interpretação de alguma coisa foi produzida pela coisa que está sendo interpretada, e denota (não 'conota') algo sobre a própria coisa. Só há fatos, não há interpretações.
De modo que arriscaremos aqui dublar uma música de Tigran Hamasyan, pianista 'de jazz' armênio, em seu álbum "Red Hail". Mais especificamente, a faixa "The Glass-Hearted Queen", a terceira do disco. E, mais especificamente ainda, nosso alvo é a arquitetura esquelética da bateria nessa música. Sabemos que tradicionalmente a bateria é considerada a ossatura de uma música, como uma estrutura de vigas que dá a sustentação daquele ritmo. Em inglês ela é conhecida por 'backbone', a espinha dorsal. De modo que ela pode ter um papel crucial no desenvolvimento de uma música, por exemplo, determinando onde é seu tempo e o contratempo; ou pode dar diversas texturas à música, desde um céu estrelado de pratos a um terremoto de surdos e bumbos...
A faixa de Tigran, em seu conjunto, é muito simples. Os instrumentos são baixo e piano em uníssono, fazendo um ritmo meio latino-torto, e a bateria apenas acompanhando essa latinidade armena. O compasso é de nove colcheias. A melodia, por sua vez, é completamente o oposto de algo latino: sax soprano e voz feminina tocam um tema para o qual é difícil achar adjetivo. Mas me parece ser realmente algo mais para o lado do oriente médio, o que mostra como a mistura é inusitada: ritmo e harmonia "latina" com melodia armênia.
O tema se repete duas vezes, com a harmonia repetindo suas nove colcheias incessantemente. Em seguida, ao baixo e piano se acresce uma guitarra com distorção, e, com uma pequena variação, a harmonia se repete com o piano, baixo e a guitarra transformando-a em um heavy-metal (!).
No entanto, esse heavy-metal tem suas peculiaridades: o seu compasso é em nove colcheias, e não em quatro semínimas como vemos na grande maioria dos casos; sua circularidade é mais extensa, digamos assim. Além disso, não tem 'melodia', quer dizer, alguém lá gritando igual ao Max Cavalera. Porém, o mais impressionante aqui é a bateria. Pense o seguinte: a música toda é uma repetição dessa frase em nove, que na parte pesada nem tem melodia, o que reforça ainda mais a sensação de repetição. E isso corre um risco danado de ficar chato: ficar três minutos escutando dezenas de vezes a mesma frase musical. No entanto, é aí que entra o papel genial da bateria nessa música: ela meio que faz as vezes da melodia, introduzindo variações nessa parte da música. Classicamente, as baterias de heavy-metal têm o prato tocando todas as semínimas ou todas as colcheias de um compasso (que geralmente é de quatro semínimas, ou oito colcheias), e tocando a caixa nos tempos pares, nas semínimas pares (nomeadamente a 2 e a 4), enquanto o bumbo se ajusta ao resto do ritmo a partir dos espaços entre as batidas na caixa. Dentro desse esquema há geralmente poucas variações, apenas em viradas, e tal. Pois bem, o que o baterista do Tigran fez foi dilatar esse esquema que ocupa um espaço de quatro semínimas para encaixá-lo em nove colcheias - ele colocou um heavy metal num compasso bastante incomum pra esse estilo. Para tal, o prato, que geralmente toca nas semínimas, passa a tocar a cada uma colcheia e meia (uma colcheia pontuada), ou seja, uma colcheia mais uma semi-colcheia, totalizando seis toques em nove colcheias (que é o tamanho do compasso), ao invés dos tradicionais quatro toques em oito colcheias. Perceba que na comparação, a música de Tigran aumentou apenas uma colcheia enquanto o número de batidas aumentou para duas a mais do que em oito colcheias. Isso dá uma maior sensação de dinamismo para um heavy-metal, ou seja, não fica tão heavy assim: ele anda mais rápido, apesar dos outros instrumentos estarem mais devagar que a bateria - a bateria acelera a música sem aumentar sua velocidade (seu pulso)...
E enquanto isso, o esquema de Metal é mantido na caixa, mas também dilatado para o compasso ímpar. Assim, nas batidas pares do prato (2, 4 e 6 nomeadamente) a caixa também toca. A diferença para o tradicional é que, como o prato toca a cada semínima e meia, seus toques pares são toques em semi-colcheias no compasso, ou seja, um contra-tempo de colcheia. Então os toques do prato são tempo, contratempo, tempo, contratempo, tempo, contratempo. Porém, como a caixa toca a cada dois toques de prato, a impressão geral é a de uma batida binária: tipo "tum-pá, tum-pá, tum-pá", ou seja, algo como seis semínimas no compasso, ao invés de nove colcheias. Como eu disse, é pegar aquele "tum-pá, tum-pá" em quatro do heavy-metal e esticá-lo para ele caber como seis semínimas em um compasso de nove colcheias.
Enquanto isso, o bumbo se articula à caixa (que só toca em contratempos, ou seja, em semi-colcheias) criando ritmos completamente alheios ao heavy-metal. É muito difícil dar um nome para que ritmo se cria aí, mas pelos contra-tempos, associo alguns momentos ao maracatu. Claro que também é harmônico com o heavy-metal em si, porém o metal raramente usa contratempos de semicolcheias como batida de base na bateria, até mesmo para continuar sendo heavy, já que o contratempo sempre tende a dar a sensação de sair do chão (que o tempo representa), oposto ao heavy metal que é como fortes pisadas no chão.
Bom, esse cenário se repete por quatro compassos, e uma virada sutil introduz uma mudança na substância da música. O prato, que até então tocava a cada colcheia e meia, agora toca semínimas, apenas. Agora sim, a música se torna mais próxima do heavy-metal tradicional, tocando as semínimas e a caixa também continua tocando nos pares, que são semínimas agora: a música se torna muito mais heavy. O bumbo continua concordando com o ritmo, e se organizando ao redor da caixa.
Em seguida, a bateria repete o esquema anterior por quatro vezes e passa a repetir o esquema seguinte, porém com os pratos batendo as colcheias, preenchendo mais a música. Preparando o final dessa sequência, o prato então muda subitamente para os contra-tempos das colcheias junto com a caixa aparecendo a cada três dessas batidas: é como se os contratempos estivessem sendo tratados como tempos, de colcheia. Daí, há uma sequenciazinha de viradas, e os pratos retomam o ritmo de semínimas, começando pelo contratempo (ou seja, pelas semínimas pares). Isso faz com que a cada compasso de nove colcheias, as batidas de semínimas passam de contra-tempo a tempo e a contra-tempo, etc. E a caixa sempre no esquema metal: uma semínima sim, outra não, marcando "o dois".
Mas após três compassos assim, surge o mais radical da bateria. A última nota do prato antes da mudança não é uma semínima, mas uma colcheia pontuada, o que faz a nota seguinte (a primeira que introduz a mudança) ser no lugar de uma semicolcheia com relação à anterior, o que desloca o centro de gravidade da música para o avesso do avesso da semínima: a semicolcheia (um contra-tempo), que passa a ter o valor de tempo. Quer dizer, as batidas de semínimas, que estavam marcando tempos, como típico do metal, foram deslocadas em um quarto de sua posição anterior - após a colcheia pontuada, as semínimas retornam. A sensação que isso causa é de avessamento do chão do pulso, que empurra a escuta para outra dimensão espacial. É como alguém dentro de uma caixa no espaço sideral, onde não há gravidade: e se eu empurrar a caixa (a 9 m/s/s, velocidade da gravidade da Terra) em uma direção qualquer (cima, baixo, esquerda, direita, frente ou trás) a gravidade surge como o empuxo causado pela aceleração, e você pode ficar em pé na caixa na parte da caixa contrária à direção que se empurra. Mas se nesse trajeto, de repente mudo a direção do empurrão, você sentirá a gravidade na parte da caixa oposta à que estou empurrando agora, de modo que a gravidade muda de lugar dentro da caixa. É exatamente isso que o deslocamento de um quarto das semínimas da bateria causa na música como um todo: a guitarra e o baixo passam também a ser "vistos" como tendo seu centro de gravidade (relativo ao tempo) deslocado para o contra-tempo. Em resumo, a bateria toca em síncopa e puxa o resto dos instrumentos para a sensação de que o sincopado é que é o tempo. Isso mostra aquilo que Argus Montenegro chamou de "instabilidade do tempo forte", quando há uma inversão (se não mesmo reversão) da relação tempo/contra-tempo.
Essa reversão é da ordem da função topológica do espelho, que é a de avessamento do se coloca em sua frente. E é precisamente essa função que, de acordo com o pensamento da psicanálise, produz o ato-poético, o ato analítico. "a obra de arte é a construção de um espelho. Aonde vige o ato poético, o poeta conseguiu ou terá conseguido construir um espelho", diz o psicanalista MD Magno. "Não se trata da superfície material, mas de repetir a lógica do espelho (...). Por isso que a obra de arte ocupa o mesmo lugar que tenta ocupar o analista, razão pela qual não se pode fazer psicanálise de uma obra de arte e sim ser analisando diante dela". É precisamente o que estou fazendo enquanto escrevo este texto: me analisando. Talvez alguém que esteja lendo possa recolher alguma s'obra de arte do que escrevo...
Mas, retomando o raciocínio, podemos pensar que a bateria, no momento chave a que me referi, introduz o espelho na música, avessando radicalmente o sentido topológico (ou seja, a imagem) que a música tinha até então. De modo que digo que há um ato poético do baterista em particular (ou de quem quer que tenha concebido essa bateria) nessa canção. Ele cria, a partir da introdução do espelho, uma imagem avessada da música. Mas seu ato é colocação de espelho; a imagem revertida que surge é apenas a consequência de introduzir espelho lá. "É preciso não confundir, porque quando a obra aponta para o espelho o imbecil olha para a imagem. (...) O poeta constrói esse espelho. É para ele que temos que olhar, e tentar desfazer as imagens". Repito: a bateria, ao revirar o sentido topológico da música, desfaz a imagem que havia nela (de tempo forte) para mostrar como o espelho causa a "instabilidade" dessa imagem - e o que se evidencia aí é o surgimento do espelho: o tempo forte se reflete em contra-tempo.
Faço esse destaque aqui no texto porque não é lá muito comum associarmos uma batida de bateria, especialmente uma inspirada em Heavy Metal, com poesia: isso geralmente cabe aos instrumentos harmônicos, como piano, violão, etc. Por isso, achei que merecia ser comentado em suas minúcias. Poesia é algo que pode acontecer em qualquer lugar, em qualquer profissão, em qualquer prática. Por isso, psicanálise (enquanto ato poético, ato psicanalítico) é algo que ocorre não apenas dentro de consultórios, mas por aí, mundo afora. No entanto, é algo raro. É preciso estar atento para não deixar momentos assim escaparem. Sabendo escutar (ou ver, ou saborear, ou tocar, ou cheirar) esses momentos, temos mais chances de produzi-los.
Eis a música - o momento chave está em 2:59 - 3:00. Quando a música se avessa, ela dá o fade, mostrando que é seu fim - até porque depois desse revirão, só resta dizer o que um analista diz quando arrisca um ato: "ficamos por aqui", tipo assim: vai dormir com essa - reflita!
REFERÊNCIA: MD Magno, "Psicanálise e polética" p. 250-1