quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Do pelado e do nu

Se quiséssemos falar um filosofês, poderíamos começar pela distinção heideggeriana entre Ser, ente e Pre-sença (o famoso Dasein). O primeiro é "o conceito mais universal e dispensa definição", ou seja é a evidência de que as coisas são. Mas são o quê? Quando se responde a essa pergunta (de)cai-se no ente, que é um modo de Ser. E o Ser só comparece, enquanto tal, como ente, logo é o ser do ente que pode levar à compreensão sobre o Ser em geral; em especial, um ente chamado Pre-sença (Dasein). A Pre-sença é que pode apreender o Ser enquanto um eterno devir: “Se o ser deve ser apreendido a partir do tempo e os diversos modos e derivados do ser só são de fato compreensíveis em suas modificações e derivações na perspectiva do tempo e com referência a ele, o que então se mostra é o próprio ser, e não apenas o ente, enquanto sendo e estando “no tempo”, em seu caráter “temporal”.” Ou seja, a Pre-sença pode apreender o Ser porque ela é um tipo de ente especial que manifesta em si não apenas uma "entidade", mas uma "Serdade", quer dizer, manifesta em si o Ser.

Assim, o Ser é (o) vazio de essência, de definição, precedidas que são pela mera existência - o Ser como eterno devir da existência. O ente é modo de existência do Ser. A pre-sença é O ente no qual o Ser se manifesta enquanto tal, pré-ontologicamente: "este ser-ontológico da presença deve significar pré-ontológico. Isso, no entanto, não significa simplesmente sendo um ente, mas sendo no modo de compreensão do ser". 

Então é o seguinte: estar pelado é o mesmo que estar nu?

Somos animais que 'vestem' coisas (ou seja, modos de Ser) chamadas 'roupas'. Temos roupas de todos os tipos: de médico, de bombeiro, de punk, de advogado, de despreocupado, etc. Quando tiramos as roupas, ficamos todos 'iguais', por estarmos despojados de nossas 'roupas', simbólicas que são, e nos expomos enquanto mero corpo sem esses indicadores simbólicos. Assim estamos pelados: o corpo sem roupas. 

No entanto, mesmo pelados, não estamos nus. Isso porque podemos, sim, tirar as roupas que simbolizam o que achamos que somos. Mas quando estamos pelados, ainda estamos vestindo as roupas das identificações simbólicas com as quais nos constituímos. O rei pode até estar nu, mas ele ainda acha que é rei: a roupagem simbólica (e não a roupa que simboliza essa roupagem) ainda o cobre em seu próprio ser, que é-feito desse símbolo que a coroa simboliza: a realeza, ou melhor, o real. Na verdade, o rei não está nu: está pelado. De modo que estar pelado (fisicamente) não é estar despojado dos atributos simbólicos que pensamos possuir, e com os quais vestimos nossa Pre-sença: não é estar nu. Estar nu, realmente, é quando se está de frente ao espelho e ele te reflete ao contrário: nesse momento, é-se apenas o espelho, nem mesmo as imagens. Estar nu é testemunhar esse desmoronamento dos entes - vestes que constituem o ser de nossa Pre-sença - dar lugar à insustentável nudez do Ser. O Ser é a nudez que os entes cobrem, e a pre-sença é o ente que vê a própria mudez no espelho.  Por isso, o verdadeiro nu é o Nada, quer dizer, o próprio Ser, que não veste quaisquer roupas simbólicas, não veste quaisquer entes: a nudez é pré-ontológica. E só a pre-sença pode ficar nua.

Por isso são comédias os médicos que protestam de jaleco: não basta apenas que eles pensem que SÃO 'douto(re)s', querem ainda que os outros o pensem também, desfilando para os olhos dos outros verem a roupa física (já que a simbólica é invisível, a não ser que se a diga) com que eles se cobrem - e nos cobrem de vergonha... Eles não exercem pre-sença, mas, antes, au-sência....

Melhor estar nu do que pelado por uma roupa idiota: toda roupagem será castigada.

(Citações retiradas de: http://www.academia.edu/1086899/Fichamento_de_Ser_e_tempo_de_Heidegger)

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Eu, meu carro, minha bicicleta e o perspectivismo ameríndio

Assisti a uma palestra ministrada por ninguém menos que Idelber Avelar, um dos grandes pensadores deste início de século, sobre o perspectivismo ameríndio, direitos não-humanos e sustentabilidade. 

O perspectivismo ameríndio é um modo de pensar a relação homem/não-homem de uma maneira inversa à do antropocentrismo, que infectou o século 20 com a ideia de que o homem é separado da natureza, por ser um ser de cultura, de linguagem, e tudo que o ser humano faz não é natural. Avelar mostra, através de trabalhos de geólogos, que estamos vivendo uma era planetária na qual a destruição que o homem tem feito na natureza equivale o de uma era glacial inteira, por exemplo. Só que ao contrário, pois todo o lixo que a cultura produz aquece o planeta. Tanto que tem alguns geólogos que propõem chamar nossa era geológica de 'antropoceno', ou seja, o homem funcionando tão eficazmente na mudança geológica quanto a própria natureza. 

Avelar defende que o estrago que temos causado à natureza é um tiro no pé causado pelo antropocentrismo da cultura ocidental, que, desde Aristóteles, tem colocado distinções entre o que é humano e o que é não humano. Assim, as coisas não humanas servem apenas para servir o homem, o qual dispõe de todos esses recursos para usar como quiser. Um exemplo disso são os animais, que tradicionalmente, nem sentimentos tinham (vide as Meditações de Descartes). É o exemplo típico da postura ocidental: nós, os humanos aqui, e o resto, lá. Fronteiras rígidas.

E são essas fronteiras que o perspectivismo ameríndio (ou seja, de índios da américa) borram. Em seus mitos, eles pensam o contrário do que o ocidental: eles partem do princípio de que todos os animais eram humanos, mas que após uma falha, um tropeção, viraram animais. Um mito citado foi o do javali: ele era um humano, mas ao ter que atravessar um rio, o fez na canoa errada e virou animal, perdendo o contato com os humanos. No entanto, para ele mesmo, o javali, ele é humano. Não é reconhecido como tal por outros humanos. Mas o próprio javali se sentindo humano, encara os humanos como presas. Assim, os ameríndios espelham a noção de 'humano' para todas as coisas que existem: tudo é humano. Isso é o contrário do ocidente, que separa nitidamente o que é humano do que é não humano. Para os ameríndios, não há não-humano. Quer dizer, não há diferença ontológica entre humanos e não-humanos: tudo dentro do mesmo saco. Na wikipédia, temos: "É importante enfatizar que o perspectivismo se diferencia do relativismo cultural assim como do universalismo, opondo-se de modo ortogonal a essa dicotomia. Isso porque o perspectivismo, ao contrario dos outros dois, não pode ser pensado a partir de categorias analíticas presas ao binarismo natureza/cultura, como: universal/particular; objetivo/subjetivo; imanência/transcendência; corpo/espírito; animalidade/humanidade; etc. A compreensão de cosmologias não-ocidentais exige que ponhamos em suspeição as categorias com que organizamos o nosso pensamento e tornamos a realidade inteligível."

Assim, o perspectivismo homogeneíza existência humanas e não-humanas - homogeneíza oposições -, desse modo dando direito de inviolabilidade a terras, plantas, e animais. Isso é o fundamento do que se chama de direitos não-humanos, no qual a Índia é pioneira: golfinhos foram considerados neste ano, por lei, como 'pessoas não-humanas'. Isso implica que animais agora são sujeitos de direitos, tanto quanto os humanos. Esse direito lhes foi outorgado após vários protestos contra a criação de parques aquáticos que subjugam os animais e os maltratam. Temos leis na Bolívia também, que dão direitos a terras, ao ar, etc. 

A lição do perspectivismo é que não há distinção entre 'coisas naturais' e 'coisas culturais' (poderíamos pensar na res cogitans e res extensa, se quisermos zoar Descartes). Matar a natureza é matar o humano, a cultura, e matar a cultura (como temos visto por aí com o capitalismo selvagem, que consome toda a natureza, que some com toda a natureza) é matar a natureza (que, por sua vez é também matar a cultura). Assim, a questão da sustentabilidade parece depender, nesse momento, de um pensamento mais 'indígena', ou seja, mais perspectivista, ou seja, mais indiferente quanto à oposição homem/não-homem. Enquanto o homem tiver uma perspectiva antropocêntrica, apartado da natureza, continuaremos a explorá-la até que se esgote, simplesmente por não vermos que nós somos a natureza, ou seja, tudo é humano, pois o o humano precisa do natural pra ser humano. A natureza faz parte da própria humanidade. O limite de nosso corpo é infinito, inclui o ar que respiramos, a água que bebemos, os animais que produzem o que comemos, etc - mas esses recursos, que compõem nosso próprio corpo, são finitos. Wiki de novo: "Com a perspectiva relativista, a antropologia iniciou um importante e contínuo movimento no questionamento do etnocentrismo. Um dos desdobramentos do relativismo na antropologia foi o multiculturalismo, que rompe com o ideal evolucionista, afirmando que todos os grupos humanos compartilham de uma mesma natureza biológica, não havendo um escalonamento possível que classifique intelectualmente ou culturalmente as sociedades. Autores como Eduardo Viveiros de Castro, contudo, defendem que mesmo esse ponto de vista continua sendo etnocêntrico, na medida em que ainda impõe a dicotomia natureza/cultura para classificar os sujeitos sociais. Isso porque, enquanto trabalhamos com a obviedade da ideia de multiculturalismo, muitas sociedades ameríndias desenvolvem-se sob a lógica de um multinaturalismo. Ou seja, enquanto a sociedade ocidental considera que todos os povos possuem uma mesma natureza (ou biologia) e se diferenciam em suas culturas (ou essências), a maioria das sociedades indígenas da América possui uma concepção contrária: suas sociedades são compostas por seres que partilham uma espiritualidade (cultura/essência), mas que se diferenciam em seus corpos (natureza/biologia)." Ou seja: quando você atira na testa de alguém a bala atinge sua própria nuca. 

Assim, a ideia essencial do perspectivismo é a de que tudo é humano, artificial, quer dizer: a própria natureza é humana, artificial; logo, tudo o que é humano é natural também. Tudo tem sentimento, comunica-se entre si e é interdependente: tudo existe entre si. "Importa apreender aqui que se no multiculturalismo temos o corpo como um elemento universal e a cultura como um particular; no multinaturalismo a cultura converte-se num constante, enquanto que o corpo é diverso." A cultura é a multinatureza. Idelber Avelar é enfático: "uma vez que tudo pode ser humano [antropomorfismo, no jargão], ser humano já não é algo lá tão especial...". Em outras palavras, a própria estrutura da existência é humana: "Recordemos sobretudo que, se há uma noção virtualmente universal no pensamento ameríndio, é aquela de um estado original de indiferenciação entre os humanos e os animais, descrito pela mitologia6. Os mitos são povoados de seres cuja forma, nome e comportamento misturam inextricavelmente atributos humanos e animais, em um contexto comum de intercomunicabilidade idêntico ao que define o mundo intra-humano atual. A diferenciação entre "cultura" e "natureza", que Lévi-Strauss mostrou ser o tema maior da mitologia ameríndia, não é um processo de diferenciação do humano a partir do animal, como em nossa cosmologia evolucionista. A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. A grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos. Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos: os animais são ex-humanos, e não os humanos exanimais7. Em suma, "o referencial comum a todos os seres da natureza não é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição" (Descola 1986:120)." (isso é de Viveiros de Castro, segue link abaixo)

Digo tudo isso porque hoje fiz algo que me pareceu perspectivista. Recentemente, eu comprei uma bicicleta, após ficar muitos anos sedentário, apenas andando de carro, pelo qual eu tenho muito afeto. Mas desde que comprei a bicicleta, também me afeiçoei dela demais. Daí, hoje fui andar de bicicleta, e por acaso, passei pela frente do meu carro. O que aconteceu em minha mente foi muito engraçado: eu olhei pro meu carro, e o 'apresentei' pra minha bicicleta: "veja, carro, esta é minha bicicleta", e imaginei eles se conhecendo. Comecei a rir sozinho desse pensamento. E para o que ele aponta? Para o fato de que tudo que existe existe como humano: eu, minha mãe, meus amigos, o cachorro, o ar, o céu, o planeta, o universo, a própria existência... e meu carro e minha bicicleta! Chama-se quiasma em psicanálise (influenciada por Merleau-Ponty). Lacan dá o exemplo: "tá vendo aquela lata ali? Pois ela não tá te vendo não". Você já se sentiu olhado por algo não-humano? Ou pior, por algo não vivo?

É engraçado como que quanto mais eu ando de bicicleta mais eu me sinto uma...

Palestra de Idelber:


Texto sobre perspectivismo, por Viveiros de Castro:


Wiki sobre perspectivismo: