Assisti a uma palestra ministrada por ninguém menos que Idelber Avelar, um dos grandes pensadores deste início de século, sobre o perspectivismo ameríndio, direitos não-humanos e sustentabilidade.
O perspectivismo ameríndio é um modo de pensar a relação homem/não-homem de uma maneira inversa à do antropocentrismo, que infectou o século 20 com a ideia de que o homem é separado da natureza, por ser um ser de cultura, de linguagem, e tudo que o ser humano faz não é natural. Avelar mostra, através de trabalhos de geólogos, que estamos vivendo uma era planetária na qual a destruição que o homem tem feito na natureza equivale o de uma era glacial inteira, por exemplo. Só que ao contrário, pois todo o lixo que a cultura produz aquece o planeta. Tanto que tem alguns geólogos que propõem chamar nossa era geológica de 'antropoceno', ou seja, o homem funcionando tão eficazmente na mudança geológica quanto a própria natureza.
Avelar defende que o estrago que temos causado à natureza é um tiro no pé causado pelo antropocentrismo da cultura ocidental, que, desde Aristóteles, tem colocado distinções entre o que é humano e o que é não humano. Assim, as coisas não humanas servem apenas para servir o homem, o qual dispõe de todos esses recursos para usar como quiser. Um exemplo disso são os animais, que tradicionalmente, nem sentimentos tinham (vide as Meditações de Descartes). É o exemplo típico da postura ocidental: nós, os humanos aqui, e o resto, lá. Fronteiras rígidas.
E são essas fronteiras que o perspectivismo ameríndio (ou seja, de índios da américa) borram. Em seus mitos, eles pensam o contrário do que o ocidental: eles partem do princípio de que todos os animais eram humanos, mas que após uma falha, um tropeção, viraram animais. Um mito citado foi o do javali: ele era um humano, mas ao ter que atravessar um rio, o fez na canoa errada e virou animal, perdendo o contato com os humanos. No entanto, para ele mesmo, o javali, ele é humano. Não é reconhecido como tal por outros humanos. Mas o próprio javali se sentindo humano, encara os humanos como presas. Assim, os ameríndios espelham a noção de 'humano' para todas as coisas que existem: tudo é humano. Isso é o contrário do ocidente, que separa nitidamente o que é humano do que é não humano. Para os ameríndios, não há não-humano. Quer dizer, não há diferença ontológica entre humanos e não-humanos: tudo dentro do mesmo saco. Na wikipédia, temos: "É importante enfatizar que o perspectivismo se diferencia do relativismo cultural assim como do universalismo, opondo-se de modo ortogonal a essa dicotomia. Isso porque o perspectivismo, ao contrario dos outros dois, não pode ser pensado a partir de categorias analíticas presas ao binarismo natureza/cultura, como: universal/particular; objetivo/subjetivo; imanência/transcendência; corpo/espírito; animalidade/humanidade; etc. A compreensão de cosmologias não-ocidentais exige que ponhamos em suspeição as categorias com que organizamos o nosso pensamento e tornamos a realidade inteligível."
Assim, o perspectivismo homogeneíza existência humanas e não-humanas - homogeneíza oposições -, desse modo dando direito de inviolabilidade a terras, plantas, e animais. Isso é o fundamento do que se chama de direitos não-humanos, no qual a Índia é pioneira: golfinhos foram considerados neste ano, por lei, como 'pessoas não-humanas'. Isso implica que animais agora são sujeitos de direitos, tanto quanto os humanos. Esse direito lhes foi outorgado após vários protestos contra a criação de parques aquáticos que subjugam os animais e os maltratam. Temos leis na Bolívia também, que dão direitos a terras, ao ar, etc.
A lição do perspectivismo é que não há distinção entre 'coisas naturais' e 'coisas culturais' (poderíamos pensar na res cogitans e res extensa, se quisermos zoar Descartes). Matar a natureza é matar o humano, a cultura, e matar a cultura (como temos visto por aí com o capitalismo selvagem, que consome toda a natureza, que some com toda a natureza) é matar a natureza (que, por sua vez é também matar a cultura). Assim, a questão da sustentabilidade parece depender, nesse momento, de um pensamento mais 'indígena', ou seja, mais perspectivista, ou seja, mais indiferente quanto à oposição homem/não-homem. Enquanto o homem tiver uma perspectiva antropocêntrica, apartado da natureza, continuaremos a explorá-la até que se esgote, simplesmente por não vermos que nós somos a natureza, ou seja, tudo é humano, pois o o humano precisa do natural pra ser humano. A natureza faz parte da própria humanidade. O limite de nosso corpo é infinito, inclui o ar que respiramos, a água que bebemos, os animais que produzem o que comemos, etc - mas esses recursos, que compõem nosso próprio corpo, são finitos. Wiki de novo: "Com a perspectiva relativista, a antropologia iniciou um importante e contínuo movimento no questionamento do etnocentrismo. Um dos desdobramentos do relativismo na antropologia foi o multiculturalismo, que rompe com o ideal evolucionista, afirmando que todos os grupos humanos compartilham de uma mesma natureza biológica, não havendo um escalonamento possível que classifique intelectualmente ou culturalmente as sociedades. Autores como Eduardo Viveiros de Castro, contudo, defendem que mesmo esse ponto de vista continua sendo etnocêntrico, na medida em que ainda impõe a dicotomia natureza/cultura para classificar os sujeitos sociais. Isso porque, enquanto trabalhamos com a obviedade da ideia de multiculturalismo, muitas sociedades ameríndias desenvolvem-se sob a lógica de um multinaturalismo. Ou seja, enquanto a sociedade ocidental considera que todos os povos possuem uma mesma natureza (ou biologia) e se diferenciam em suas culturas (ou essências), a maioria das sociedades indígenas da América possui uma concepção contrária: suas sociedades são compostas por seres que partilham uma espiritualidade (cultura/essência), mas que se diferenciam em seus corpos (natureza/biologia)." Ou seja: quando você atira na testa de alguém a bala atinge sua própria nuca.
Assim, a ideia essencial do perspectivismo é a de que tudo é humano, artificial, quer dizer: a própria natureza é humana, artificial; logo, tudo o que é humano é natural também. Tudo tem sentimento, comunica-se entre si e é interdependente: tudo existe entre si. "Importa apreender aqui que se no multiculturalismo temos o corpo como um elemento universal e a cultura como um particular; no multinaturalismo a cultura converte-se num constante, enquanto que o corpo é diverso." A cultura é a multinatureza. Idelber Avelar é enfático: "uma vez que tudo pode ser humano [antropomorfismo, no jargão], ser humano já não é algo lá tão especial...". Em outras palavras, a própria estrutura da existência é humana: "Recordemos sobretudo que, se há uma noção virtualmente universal no pensamento ameríndio, é aquela de um estado original de indiferenciação entre os humanos e os animais, descrito pela mitologia
6. Os mitos são povoados de seres cuja forma, nome e comportamento misturam inextricavelmente atributos humanos e animais, em um contexto comum de intercomunicabilidade idêntico ao que define o mundo intra-humano atual. A diferenciação entre "cultura" e "natureza", que Lévi-Strauss mostrou ser o tema maior da mitologia ameríndia, não é um processo de diferenciação do humano a partir do animal, como em nossa cosmologia evolucionista. A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. A grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos. Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos: os animais são ex-humanos, e não os humanos exanimais
7. Em suma, "o referencial comum a todos os seres da natureza não é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição" (Descola 1986:120)." (isso é de Viveiros de Castro, segue link abaixo)
Digo tudo isso porque hoje fiz algo que me pareceu perspectivista. Recentemente, eu comprei uma bicicleta, após ficar muitos anos sedentário, apenas andando de carro, pelo qual eu tenho muito afeto. Mas desde que comprei a bicicleta, também me afeiçoei dela demais. Daí, hoje fui andar de bicicleta, e por acaso, passei pela frente do meu carro. O que aconteceu em minha mente foi muito engraçado: eu olhei pro meu carro, e o 'apresentei' pra minha bicicleta: "veja, carro, esta é minha bicicleta", e imaginei eles se conhecendo. Comecei a rir sozinho desse pensamento. E para o que ele aponta? Para o fato de que tudo que existe existe como humano: eu, minha mãe, meus amigos, o cachorro, o ar, o céu, o planeta, o universo, a própria existência... e meu carro e minha bicicleta! Chama-se quiasma em psicanálise (influenciada por Merleau-Ponty). Lacan dá o exemplo: "tá vendo aquela lata ali? Pois ela não tá te vendo não". Você já se sentiu olhado por algo não-humano? Ou pior, por algo não vivo?
É engraçado como que quanto mais eu ando de bicicleta mais eu me sinto uma...
Palestra de Idelber:
Texto sobre perspectivismo, por Viveiros de Castro:
Wiki sobre perspectivismo: