domingo, 28 de outubro de 2012

Há Deus: Onimpotente, Inconisciente, Oniausente


"Não acredito em Deus porque nunca o vi. 
Se ele quisesse que eu acreditasse nele, 
Sem dúvida que viria falar comigo 
E entraria pela minha porta dentro 
Dizendo-me, Aqui estou! 
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos 
De que, por não saber o que é olhar para as cousas, 
Não compreende quem fala delas 
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.) 
Mas se Deus é as flores e as árvores 
E os montes e sol e o luar, 
Então acredito nele, 
Então acredito nele a toda a hora, 
E a minha vida é toda uma oração e uma missa, 
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. 
Mas se Deus é as árvores e as flores 
E os montes e o luar e o sol, 
Para que lhe chamo eu Deus? 
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar; 
Porque, se ele se fez, para eu o ver, 
Sol e luar e flores e árvores e montes, 
Se ele me aparece como sendo árvores e montes 
E luar e sol e flores, 
É que ele quer que eu o conheça 
Como árvores e montes e flores e luar e sol. 
E por isso eu obedeço-lhe, 
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?), 
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente, 
Como quem abre os olhos e vê, 
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes, 
E amo-o sem pensar nele, 
E penso-o vendo e ouvindo, 
E ando com ele a toda a hora."

(Alberto Caeiro, "Há Metafísica Bastante em não Pensar em Nada")


Certa vez estava eu nalgum lugar quando me formulei a seguinte pergunta: se Deus pode qualquer coisa, se Ele é onipotente, será que Ele poderia deixar de sê-Lo? Ou seja, poderia Deus deixar de ser Deus? Tipo assim: "ah, cansei dessa estória de existir!". É possível para Deus não ser Deus? Em outras palavras: Deus pode suicidar, do alto de seu Livre-Arbítrio?

A única resposta lógica, considerando que Espinosa disse "Deus sive Natura", ou seja, Deus é a própria existência, é não. Deus é condenado a existir e não tem possibilidade de não existir. Isso significa que Deus, por mais completo que seja, é definitivamente castrado da possibilidade de não sê-Lo. Lacan dizia que não há Outro do Outro, o que quer dizer que não há Deus de Deus. Deus é um só, e é tudo o que existe e tudo o que é possível existir. E para Ele, qualquer coisa é possível de existir, exceto uma: Sua não-existência. Deus  não foi criado (o que que havia antes de Deus? Não-Deus?) e nem morrerá (o que existirá se não for a existência?). E, se Deus deseja alguma coisa (quer dizer, se há Deusejo), é pular fora de si mesmo. 

Daí que, tendo isso em mente, é preciso reformular o estatuto divino de acordo com as possibilidades lógicas trazidas pela psicanálise. Deus tem três propriedades fundamentais, e se alguma delas forem contraditas, já não se trata mais de Deus. São elas: Deus é onisciente, onipresente, onipotente. Sabemos o que isso significa: Deus sabe tudo, está em tudo e pode tudo. 

Ora, como vimos, logicamente Deus até pode tudo, quando 'de dentro' da Sua existência: Ele pode ser qualquer coisa, como diz Fernando Pessoa, "as árvores e as plantas", e etc. No entanto, a castração divina vem na sua relação 'de fora': Deus não pode deixar de ser Deus, ele não pode ser outra coisa, ele não pode não existir (caso ele exista...). Enfim, temos aí a castração Originária de Deus: ele sempre houve, ou seja, não houve momento da existência (já que Deus está em tudo, em toda a existência) em que Deus não existisse, porque Deus é a (Sua) própria existência. Assim, reformulemos a impotência de Deus: ONIMPOTÊNCIA. Pois, dentro da existência, Deus pode ser qualquer coisa (onipotência, com 'o' minúsculo), mas não há Deus fora da (Sua) existência.

Outro ponto: se Deus não pode tudo, ele não sabe precisamente daquilo que ele não pode. Deus sabe o que é ser toda e qualquer coisa, mas não sabe o que é não ser Deus, ele não pode saber disso porque é impossível, é sua Onimpotência. De modo que Ele sabe de tudo o que ele pode ser, mas Deus não sabe do que Ele não pode ser. Literalmente, o Deusejo não sabe o que ele quer, ou seja, ele não tem acesso ao que ele quer, nunca teve e nunca terá, simplesmente porque não se conhece o Não-haver, a Não-Existência. Assim, Deus é INCONISCIENTE: dentro Dele, Ele pode saber de tudo (que ele pode ser), mas ele não pode saber do fora-de-Si (como um louco...). Onisciência ao contrário.

E, finalizando: se pensarmos o único desejo possível para Deus, o de justamente não sê-Lo, Ele não está em todo lugar. Ele não está Lá, bem onde ele não pode estar, onde ele não pode ser. Uma vez que é possível pensar a não existência de Deus (como acabo de fazê-lo), nesse lugar utópico, onde Deus não existiria, Deus não está: Deus não está Lá onde ele não pode ser. E esse é o único lugar em que Deus não está, por completo, de modo que, para a sua própria inexistência, Deus é ONIAUSENTE, quer dizer, completamente ausente da Sua inexistência, já que Ele só é onipresente na existência. Sua onipresença não engloba sua ausência, sua inexistência, apesar de ser possível pensá-lo.

Lacan dizia que Deus é inconsciente, defendendo que isso era a fórmula do ateísmo. Isso porque se Deus é inconsciente, logo ele deseja (o inconsciente sendo precisamente o Desejo); se ele deseja, logo algo lhe falta; se algo lhe falta, Deus não é onipotente (porque não pôde ter o que lhe falta), nem onisciente (pois o desejo não sabe o que quer), nem onipresente (não está onde o objeto de seu desejo  estaria, se houvesse). Não vejo porque isso levaria a um ateísmo, pelo contrário: esse é o verdadeiro lugar da ARRELIGIÂO. Arreligião porque o desejo humano é, como o desejo de Deus ('o desejo do homem é o desejo do Outro' - Lacan) onimpotente, inconisciente, oniausente, e, assim como Deus, ficamos querendo precisamente que haja o que não pode haver: a inexistência da existência (de Deus, já que Ele É a existência mesma). O desejo do homem é fundamentalmente arreligioso, porque ele coloca o desejo do próprio Deus. O prefixo 'a', indicativo de negação, significa que o desejo não coloca conteúdos dentro da existência tais como, Alá, o Céu, o Velho de Barba, e etc. Isso são as religiões. O desejo é arreligioso porque visa esse lugar onde não há,  não há nem mesmo Alá, ou Velhinho. Mas a postulação do desejo é atingir o que não existe, e isso é a religiosidade do Deusejo (porque Ele acha que existe a inexistência, ela é seu objetivo, seu alvo), mas sem conteudização religiosa, já que Ele precisamente não deseja conteúdos. Arreligião é o fundamento da estrutura mental dos homens, à imagem e semelhança do Deusejo do Outro.

Assim, diante da impossibilidade de haver Suicídio, podemos realmente dizer: HáDeus. Deus sempre dando adeus à possibilidade de suicidar-se, por mais que deseje - e é Seu Único Deusejo... De modo que, diante da impossibilidade de não haver Deus, Ele só faz o que é possível: ser Deus, ora pois-pois (como diz Fernando Pessoas)!

Ateu, quem, cara-pálida? Nem Deus é. O Deusejo sendo Arreligiosidade humana: crer na inexistência. Deus é imanente.

sábado, 27 de outubro de 2012

Brasil, um país de Quem?

"Mas o Brasil vai ficar rico!
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos índios numa LEIlão"

(Paródia de "Que país é esse?", de Renato Russo)

"Brasil, um país de todos"

(Slogan do Governo Federal na gestão LULA)

A situação do povo indígena Guarani Kaiowá, que vive no Mato Grosso do Sul, tem piorado cada vez mais. Há quarenta anos, eles foram expulsos de sua terra sagrada ('tekohá'), por fazendeiros e colonos que tomaram suas terras, e foram obrigados a migrar para outra região. Desde o ano 2000, o governo brasileiro declarou (e não decretou) a tekohá como indígena, porém o processo administrativo que decreta definitivamente a pertença da área não foi concluído até o momento.

No mês passado, cerca de 500 índios 'invadiram' (retomaram) parte de seu território sagrado, de onde tinham sido expulsos há 40 anos. Mas como ainda não está oficialmente decretado que a terra pertence a eles, sua 'invasão' tem sido questionada pelos fazendeiros, que querem a chamada reintegração de posse.

Pois bem, recentemente, a "Justiça" do MT decretou a reintegração de posse por parte dos fazendeiros, e desde então os Kaiowá decidiram que não sairão de seu tekohá por entenderem que têm o direito de viver em uma área que consideram historicamente sagrada e da qual foram expulsos em uma época em que não havia uma demarcação regulamentada para sua cultura. Desde então, tem aumentado a violência dos jagunços (pistoleiros contratados pelos fazendeiros) contra os Kaiowá.

Há alguns dias, os Kaiowá entregaram uma carta à Justiça Federal pedindo que, ao invés de expulsarem-os de sua tekohá, o Governo os mate e os enterre com os seus antepassados, pois não aceitam a decisão jurídica de mais uma vez serem expulsos. Segue trecho da carta: "Assim, fica evidente para nós, que a própria ação da Justiça Federal gera e aumenta as violências contra as nossas vidas, ignorando os nossos direitos de sobreviver à margem do rio Hovy e próximo de nosso território tradicional Pyelito Kue/Mbarakay. Entendemos claramente que esta decisão da Justiça Federal de Naviraí-MS é parte da ação de genocídio e extermínio histórico ao povo indígena, nativo e autóctone do Mato Grosso do Sul, isto é, a própria ação da Justiça Federal está violentando e exterminado as nossas vidas. Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira”.

“A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy onde já ocorreram quatro mortes, sendo duas por meio de suicídio e duas em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas" (KAIOWÁ, 2012). Nos últimos 8 anos, mais de 250 índios foram assassinados no MS. Além disso, já houve 190 tentativas de assassinato, 176 suicídios, e 49 atropelamentos contra eles.

A decisão de reintegração de posse por parte da justiça provavelmente foi influenciada pelo setor pecuarista, interessado nas terras sagradas para expansão de seus lucros, que naquela região tem como porta-voz uma ex-atriz muito famosa, Regina Duarte, que interpretou Porcina, a mulher de Sassá Mutema na novela Roque Santeiro.

Enfim, fica claro e evidente que há uma oposição aí entre os interesses dos pecuaristas (seus negócios) e os interesses indígenas (morarem em terras que consideram sagradas).

Pois bem, a situação dos Kaiowás é totalmente articulável psicanaliticamente, e a pergunta que aqui formulo é a seguinte: que política é possível, na mediação de tais conflitos de interesses, a partir da lógica que a psicanálise trouxe, ou seja, a lógica do funcionamento psíquico (cujo discurso deveria fundamentar qualquer pensamento quanto às ações humanas)? Ariscarei aqui tentar responder de algum modo a essa pergunta.

Algumas coisas devem ser consideradas dadas nesse texto, pois não vou explicar a teoria psicanalítica inteira pra falar do assunto:

1 - O que querem os Kaiowás? O que querem os pecuaristas? O que quer o ser humano, fundamentalmente? Se a ideia freudiana de pulsão de morte serve para alguma coisa é para formular o seguinte: há o desejo e o que ele quer (seu suposto objeto) é precisamente não ser desejo mais, ou seja: não haver enquanto tal. Para o desejo, se houver qualquer coisa, mas qualquer coisa que seja, ele desejará que simplesmente não haja. Nem ele próprio. O desejo do homem é que não haja, e disso formulamos o conceito de Não-Haver, objeto impossível (porque não há) do desejo humano. Uma vez que não há o Não-Haver, não há objeto para o desejo humano, o ser humano buscará sua satisfação parcial em alguma coisa que deveras HAJA. Mas o fundamental da lógica da pulsão é que, se houver, o desejo é de que não haja, ou seja desejo de Outra-Coisa. Escrevemos então um sintagma, "Haver quer Não-Haver", que é nada mais do que Freud chamou de pulsão de morte.

Ora, não-há o objeto do desejo humano. Porque esse objeto não é nem objeto, ‘é’ simplesmente uma inexistência, ou, pra ser mais preciso, o Não-Haver. Não-Haver não há, logo, pra se atingir algum alvo, alguma satisfação (já que a absoluta é impossível), o desejo se volta para algo qualquer, que exista, que haja: retorna para o Haver. Mas aí é só um dos pedaços da existência, tipo desejar ser um 'índio', um 'brasileiro', um 'ser humano', um ‘médico’, etc. Alguma coisa, que obviamente não é todas: é só aquela coisa, parcialmente. Eu quero ser 'índio', e não 'não-índio'. O que cria instantaneamente uma oposição entre as coisas que existem: índios e não-índios, por exemplo. Tudo que há entra em oposição: isso e aquilo.

2 - Para a psicanálise, o que ela descobriu como fundamental no funcionamento da mente é que o ser humano tem sempre a possibilidade de transitar entre essas oposições: alguém que foi 'macho' a vida inteira pode de repente virar 'não-macho': vide homossexualismo, transexualismo, etc. O ser humano tem a possibilidade de escapar de suas determinações apriorísticas e ser Outro. Nisso reside o conceito de cura em psicanalise.

Dito isso, passemos adiante. A situação dos Kaiowás é idêntica à de Antígona, filha de Édipo, da peça teatral do grego Sófocles escrita há mais de dois mil anos. A história é simplesmente uma metáfora das posições possíveis da mente com relação às leis. Como disse, o juiz federal expulsou os índios de sua terra sagrada, impregnada de significações. A lei determinou isso. Mas que posições mentais são possíveis diante das leis? O que são as leis, psiquicamente? E a Justiça? Isso existe?

Antes, lembremos a história: Os pais de Édipo, os reis Laio e Jocasta de Tebas, vão a um oráculo que lhes diz que seu filho irá matar o pai e desposar a mãe, o que é contra a lei. Então deram a criança para um encarregado de matá-la, mas este fica piedoso e poupa Édipo. Ele foi criado por pais adotivos que o tratavam como filho e não lhe contaram sobre seus outros pais. Mas, um dia, alguém que estava com raiva dele disse-o que ele era adotivo. Após buscar saber sobre isso, descobre que era deveras adotivo e abandona a cidade de Corinto, onde morava.  Então, ao fugir da cidade, em seu caminho para Tebas, encontra a carruagem em que Laio estava e houve uma luta entre eles, para decidir que passaria primeiro pelo caminho onde só poderia passar um de cada vez. Édipo mata Laio e foge para Tebas. Na entrada da cidade a Esfinge, que a controlava, propunha um enigma para qualquer um que chegasse, e caso não adivinhasse, morreria. O enigma era "o que anda de quatro de manhã, de dois à tarde e de três à noite?". Resposta de Édipo: o homem. A esfinge cai no poço e Édipo entra na cidade para virar rei, por ter salvado a cidade da tirânica Esfinge. Ofereceram-lhe a recém viúva como esposa e o lugar do Rei falecido. Ele foi aclamado por todos.

No entanto, Édipo recebe uma notícia de que há uma peste sobre a cidade, matando muita gente. Manda então chamar o poeta e adivinho Tirésias, para ajudar com o problema. Ele diz a Édipo que a peste assola porque ele casou com sua mãe e matou seu pai, o que é contra a lei. Por isso a cidade está sendo punida. A princípio Édipo nega, diz se tratar de jogada política, mas acaba entendendo a própria história e aceitando a culpa pelo mal-estar da cidade. Sua mãesposa Jocasta se enforca ao descobrir a tragédia e Édipo pega os broches dela e fura os próprios olhos para não ver a merda que tinha feito. E, de acordo com a lei que vigorava, se bane da cidade e vive pedindo esmola, até retornar à cidade natal, Colona, onde luta contra sua culpa, pois ele não sabia que eram sua mãe e seu pai que estavam em jogo em Tebas. Enfim, morre.

Édipo deixou quatro filhos, Antígona, Ismênia, Etéocles e Polinício. Após Édipo se banir de Tebas, seus filhos homens alternavam o poder: cada um ficava um ano. Começou com Polinício, e depois Etéocles, que não quis mais sair, o que desencadeou uma guerra entre os dois. Polinício foi a uma cidade vizinha, Argos, e convocou um exercito para demitir Etéocles. Etéocles foi o babaca, pois não quis sair quando devia, mas como Polinício trouxe estrangeiros, ele ficou como o mau-caráter, por atacar a própria cidade. Os dois irmãos se matam na guerra. E Creonte, irmão de Jocasta, tio de Édipo, toma o trono. Ele manda fazer honras a Etéocles, que havia lutado em favor da cidade contra os estrangeiros e proíbe o enterro de Polinício, que atacou a própria cidade. Ele deveria ser comido pelos animais ao ar livre como uma carcaça. Antígona não aceita e vai enterrar o irmão, pois enterrá-lo com justiça e dignidade é algo sagrado, de uma lei maior do que a da cidade, que é a Lei dos deuses. Seu vínculo com o irmão era de uma ordem superior. Por ter desobedecido à lei, Antígona foi condenada à pena de morte. Enquanto estava presa, suicidou-se.

Enfim, não vou me alongar sobre o mito, mas temos elementos suficientes para mostrar que há uma clara relação das situações de Antígona e dos Kaiowá. O que temos que analisar são as posições possíveis da mente humana diante das leis, e a consequente demanda de justiça que elas implicam, para mostrar que política a psicanálise (ou qualquer pensamento fundamentado com as mesmas bases) pode apontar para o mal-estar.

Se pensarmos em Édipo no lugar de rei, seguindo a lei do parricídio e cumprindo-a à risca, ao ponto de banir-se a si mesmo da cidade, mesmo tendo feito algo da qual não tinha como ter sabido, isso significa dar uma consistência à lei, sem possibilidade de equivocá-la, ou seja, sem considerá-la sob um ponto de vista ad hoc. A lei deve funcionar como está escrita. Ao pé da 'leitra'. "Em Édipo Rei a pessoa está referida à lei do mundo, à autoridade" (2009, p. 78) diz MD Magno, psicanalista brasileiro. Ele chama essa posição psíquica de ‘Invocação da lei’, algo que funciona no regime do recalque de outras possibilidades de interpretação da lei. "Matou o pai, tem que ser escorraçado, não importa se sabia ou não". É a lei segundo Carl Schmitt, cuja tirania se impõe a partir dos valores vigorantes em determinada época. Cito: "O valor maior tem o direito e até mesmo o dever de submeter o valor inferior, e o valor, como tal, tem toda a razão de aniquilar o sem-valor como tal" (SCHMITT, 1961, p. 75) Isso é tipo o seguinte: botar uma pessoa, que foi pega em flagrante roubando uma caixa de leite, na cadeia e inocentar o Dirceu por falta de provas, apesar de inúmeros indícios: cumpra-se a lei. Em um caso, ‘roubou, vai pra cadeia”; em outro “a lei diz que não se pode punir sem falta de provas”.

Assim, temos uma posição mental diante da lei: invocá-la, sedimentá-la: "há a injunção da lei, ordenada não se sabe de que poder, que vige no interior da cidade. O parricídio e o incesto como crimes são um sintoma da cidade instituído por um poder. Então, Édipo Rei mostra a pessoa centrada no enunciado da lei. (...) é o império da lei, em seu sentido menor, dentro da ordem do mundo. Lembrem-se de que é a lei que institui o crime e se institui pelo poder" (MAGNO, 2009, p. 78).

Após a grande tragédia, quando Édipo vai para Colônia, ele começa a se desculpabilizar, com o apoio de Antígona, no sentido de que ele não sabia da situação na qual se encontrava. Ele não sabia que o homem da carruagem, o qual matou, era seu pai, e nem que a rainha de Tebas era sua mãe. De modo que essa própria desculpabilização quanto ao seu crime é uma equivocação da lei. É algo do tipo "se bem que eu não sabia..." de modo que talvez não devesse ser punido por essa lei insensata com a qual me culpo. Talvez a lei deva ser revista, relativizada, equivocada: “Data Vênia”.

Daí, temos Antígona. O que ela faz é, além de equivocar a lei de Creonte, revogá-la. E invoca a lei da pulsão: não há lei mundana para a pulsão, de modo que tudo lhe é possível. Nenhuma solução legal abrange seu escopo. "Aí está a Pessoa Real como estranha, estrangeira à lei" (MAGNO, 2009, p. 80). Qualquer lei lhe é injusta, pois ela está referia à lei maior, que sabe que não há lei no mundo que dê conta de nossa experiência de mal-estar de haver e desejar não-haver: "eu tenho meu modo de haver, de dar conta do próprio mal-estar de haver, absolutamente singular, que nunca, nenhuma lei poderá universalizar" É como se Antígona tivesse dito: "eu VOU enterrar o meu irmão, VIVA OU MORTA, criminosa ou não", indiferentemente. Está para-além das oposições das leis e dos julgamentos (bom/mau, certo/errado, etc.), seguindo estritamente ALEI da Pulsão: ‘vou tentar Não-Haver desse meu modo singular’, quer dizer, diante do insuportável da impossibilidade de Não-Haver, invento um jeito de Haver que é meu modo singular de suportá-la, seja isso legal ou ilegal.

E é aqui que entra a questão da justiça. "Dentro do escopo do que temos dito, toda demanda de justiça é requerimento de reconhecimento da singularidade da pessoa enquanto real" (MAGNO, 2009, p. 99), para além das oposições, das diferenças. Qualquer decisão jurídica implica inadimplência para com o Justo porque não considerou minha possibilidade pulsional, que quer não-haver, portanto nada do que se decida dentro do Haver satisfaz completamente. "Cada pessoa, enquanto Real, encontra sua verdadeira identidade em sua posição no Haver. Identidade esta que não é descritível, jamais comparece explicitada nas formações do Ser, do dizer, da cultura, etc." (Ibid, p. 103), justamente porque não dá conta da singularidade do desejo humano. A Lei maior é a Lei do Desejo, que chamaremos ALEI por não ser nenhuma dessas leis menores que vigoram em certas culturas devido às tiranias dos valores. As justiças (no plural, mesmo) são também constituídas pelos valores vigentes, dominantes em determinado contexto. A indiferenciação desses valores ("se isso é bom, se isso é mau, EU vou enterrar meu irmão") mostra a irredutibilidade do desejo humano, que é sua única e verdadeira identidade. Todos somos idênticos perante ALEI, todos temos o mesmo desejo de impossível, porém, dentro do possível, a justiça vai separando as possibilidades em permitido/proibido,  bom/mau, dentro das oposições. O desejo humano está para além dessas oposições, em que tanto o permitido quanto o proibido são possíveis. Nesse lugar, todas as possibilidades se vinculam, e é aí que mora a humanidade do ser humano.

Antígona quer que sua singularidade seja incluída no mundo, na lei. Mas a lei se recusa a fazê-lo. Assim como os Kaiowás. O vínculo sagrado entre os Kaiowás e seus antepassados, tal como o vínculo de Antígona com Polinício é de uma ordem mais abrangente do que os demais; não é da ordem das diferenças: não se rata de que Polinício seja o irmão de Antígona, não se trata de que os antepassados são parentes dos Kaiowás, mas se trata da ordem da singularidade.  O que isso significa? Que, para além de todas as identificações com as quais nos constituímos, tal como 'brasileiro', 'índio', 'católicos', 'evangélicos', 'irmãos' etc., a condição fundamental, ou seja, a identidade do 'ser humano é a de simplesmente haver no mundo, indiferente a quaisquer identificações. E essa é uma vinculação não pelas diferenças (tipo 'índio', 'irmão', 'parente' que são diferenças dentro do Haver, da Existência), mas da Identidade fundamental das singularidades: "SOU ÚNICO, COMO TODO MUNDO! Incluam isso em algum lugar do Haver ao invés de excluírem minha singularidade em prol da sua singularidade". Isso é da maior importância e é o que fundamenta uma nova mentalidade ‘polética’ com relação às leis e à justiça.  Slavoj Zizek também reconhece isso. Ele diz que não podemos tratar do problema da luta de classe (que chamaremos de agonística, ou simplesmente luta das diferenças, das oposições) com base numa filosofia das diferenças, através de uma tolerância para com elas. Não se trata de tolerar os índios. Pois, segundo ele mesmo, "a tolerância significa 'me deixe em paz, não me acosse. Se você se aproximar demais vou me sentir acossado e isso eu não tolero’”. Em outras palavras, essa política de tolerância das diferenças acaba sendo intolerância. Um exemplo claro disso é a invasão do Iraque pelos EUA. Bush não tolerava a falta de tolerância do regime de Saddam Hussein e foi lá impor a tolerância (dita democracia). Ou seja, o país da Tolerância não tolerava a Intolerância: Tola errância. Não é essa a polética que a psicanálise propõe. Para ela, o que quer que haja deve ser considerado, deve ter o direito de haver. Assim como Polinício. O que Antígona está dizendo, no fundo é que 'houve Polinício' e ele deve ter o lugar dele nesse mundo 'que a terra há de comer'. Ele já tinha morrido, mas Antígona reclamava que não o matassem de novo, como se ele não tivesse havido. Esse é o Vínculo Absoluto: todos nós, sejamos bons, maus, certos, errados, índios, caraíbas, havemos, e temos esse direito. Da mesma forma os índios: "nossos antepassados existem, e nós também. Temos esse direito", é como se dissessem.

Essa polética, essa política do Real (MILNER, 2006, p. 77), praticamente impossível de se executar, é o que MD Magno chamou de Diferocracia, claramente se opondo à democracia, que é o regime de tolerância das diferenças eleitas pela ‘maioria’ (cf. os EUA). "Diferocracia não é um conceito das filosofias da diferença. Isto porque estas pensam e operam no regime do Ser, das oposições, dos alelos. Elas defendem as diferenças enquanto tais dentro da ordem cultural, social, dos saberes, dos conhecimentos, em que tudo se organiza e se explicita como oposição, e portanto, em última instância, como diferença pura em emergência. Entretanto, o que dá base ao pensamento da diferocracia não é o mero reconhecimento da diferença, pois esse permanece no jogo das diferenças [tolerâncias], e sim o reconhecimento da Identidade do Real para cada um. Discutir a respeito da diferença, como ela é e como funciona é infinito. Já referir-se à experiência que todos têm de Haver tout court, sem qualquer discussão, é uma experiência radical de cada um e não tem discussão. Quando minha referência é a minha singularidade, o reconhecimento da singularidade de cada um e de que essa singularidade é causadora de movimentos os mais diversos na ordem do Ser, [ser brasileiro, índio, etc...], aí então respeito a diferença e a coloco como intocável. Isto com base na identidade e não com base nas próprias diferenças. Vejam que falo de uma força maior de garantia das diferenças, mas que está fora das diferenças: a força Real da Identidade permanente, a singularidade de cada um. Dado que cada um é singular, sabe-se lá que movimentos, diferenças ou loucuras esta singularidade produzirá, e temos que respeitá-las todas, pois estamos no antes respeito de cada singular. (...) há que respeitar cada singularidade segundo sua expressão dentro do Ser. Do ponto de vista político, no mundo que temos, isto é inexequível" (Magno, 2010, p. 104), porque exigiria das pessoas a indiferença quanto aos valores e é em relação a isso que ainda não estamos preparados. "No estado de mente ao qual me refiro, é preciso não levar em conta a diferença pela diferença, pois a diferença pura e simples é irritante para a diferença. Levá-la em conta recai no regime da tolerância. Não se trata, portanto de tolerar o próximo por ser diferente, e sim do direito que ele tem de ser diferente em função de sua identidade. (...) Em termos de psicanálise, a postura política do psicanalista em seu trabalho é acolher todas as diferenças do mesmo modo [indiferentemente]. Não importa se, na ordem jurídica da cultura, a atitude de uma pessoa seja considerada crime, pois o psicanalista está no movimento de entender e levar isto à sua identidade para que ela, no esclarecimento de sua posição de identidade no mundo, consiga até fazer diplomacia com esse mundo, e não receba de saída um sopapo de julgamento a respeito de sua identidade"(MAGNO, p. 105).

Essa postura insustentável, de indiferença quanto às oposições no mundo é o crucial para que algum dia haja de fato a instauração dessa polética diferocrática. "Então, o único princípio é que os regulamentos sejam tais que não ofusquem o surgimento de um sujeito [uma singularidade], que não sufoquem a fala, que não erijam a surdez como regra. (...) Liberalismo que deseja que a lei diga o mínimo possível de propriedades [cf. "Eleições e classes paradoxais", abaixo] e se atenha ao mais abstrato [a singularidade Real do Vínculo Absoluto]" (MILNER, 2006, p. 79). Ou, como diz Magno, "há que arranjar meios de garantir as diferenças, por piores que sejam" (MAGNO, 2008, p. 121). "Vejam como é difícil lidar com isso se considerarmos qualquer singularidade como sagrada. E mais, sabemos que uma singularidade, no campo do mundo, pode ser prejudicial à outra [vide os ruralistas, por exemplo]. Por isso, as políticas de mundo têm que, mediante todos os artifícios possíveis, inclusive tecnológicos, inventar modos de manter a existência de ambas sem que haja destruição recíproca. Mas o que a democracia faz é dizer que tal singularidade não pode se expressar e a trancafia [por exemplo, neste momento os índios estão confinados a uma pequena área de sua tekohá, cercados de jagunços à espreita]. Ora, isto é igual ao que qualquer macaco sabe fazer" (MAGNO, 2009, p. 107)

Antígona e os Kaiowás nos dão o exemplo dessa política Real, em que diante das leis do mundo, das leis da cidade, fazem referência à ALEI Real como impossibilidade de se atingir o não-haver, implicando que toda forma de existência deve ter seu direito dentro do mundo, até porque  simplesmente não é possível extingui-la: como os Kaiowás mesmos já disseram, tal como Antígona, "decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos" (KAIOWÁS, 2012, grifo meu). Se matarmos todos os Kaiowás, isso não os fará desaparecer; pelo contrário, os dará uma força que nunca tiveram antes na história desse país. Tornarão-se (aliás, já são, visto as tentativas de fazer com que eles não hajam) mártires imortais da Humanidade, como tantos outros, e quem vai morrer com eles será justamente mais um pedaço d'Ela, como em tantas outras vezes.


REFERÊNCIAS:

KAIOWÁS. Abaixo-assinado Não á Extinção do povo Guarani-Kaiowás - Revogação do despacho expresso pela Justiça Federal de Navirai-MS, conforme o processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006, do dia 29 de setembro de 2012. Disponível em: http://www.peticaopublica.com.br/?pi=P2012N30735

MAGNO, MD. A Rebelião dos Anjos: Eleutéria e Exousía. Rio de Janeiro: Novamente Editora, 2009.

____________. AmaZonas: A Psicanálise de A a Z. Rio de Janeiro: Novamente Editora, 2008.

MILNER, Jean-Claude. Os Nomes Indistintos. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2006.

SCHMITT, Carl. La Tirania de los Valores. Trad. Anima Schmitt de Otero. In: Revista de Estudios Políticos, Madrid, 115, Enero-Frebrero 1961. Extraído de: http://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_Schmitt#cite_note-autogenerated1-7

ZIZEK, Slavoj. The Reality of the Virtual. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=fa3OHpMWYc0

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Eleições, classes paradoxais, burrice e canalhice

Quero ser livre insincero
Sem crença, dever ou posto.
Prisões, nem de amor as quero.
Não me amem, porque não gosto.

(Fernando Pessoa "Quero ser livre insincero")



Fim de eleições em Belo Horizonte no ano de 2012. O prefeito Lacerda foi reeleito no primeiro turno. Devo dizer que uma das coisas que ainda me impressionem em política é a cegueira que toma conta das pessoas quando apoiam um candidato (quem sabe 'canditado'...) ou um partido. 

O contexto é o seguinte: Márcio Lacerda, o prefeito, tem um modo de governo que para certas classes sociais (ou melhor, para classes dessas classes) é considerado cruel, desumano, elitista, corporativista, e etc. Para outras classes de outras classes, ele é visto como "o melhor prefeito do Brasil", em grande parte por ter sido eleito com tal título por uma pesquisa 'suspeita' que foi veiculada na mídia acentuadamente. Essas são as duas principais classes que se me apresentaram, e que formavam, entre si, uma 'oposição'

Lembremos que, por quatro anos, até dois meses antes das eleições, os dois elementos da oposição (seus dois alelos, tecnicamente), PT e PS(D)B eram aliados políticos, defendendo os mesmos 'ideais' (leia-se: cargos), sobre quem era o melhor prefeito para nossa cidade. A separação se deu devido às 'divergências' quanto aos seus próprios 'ideais': Lacerda havia prometido 'ideais' ao PT e não entregou. Assim, o PT, puto de raiva e às pressas, resolve lançar o vice de Lacerda, Roberto de Carvalho, como candidato de 'oposição' nessas eleições. Porém, no último minuto, após uma reunião de cúpula do partído, ficou decidido que Roberto de Carvalho retiraria a sua candidatura para dar lugar a Patrus, que o PT sabia ter muita simpatia junto à 'esquerda' belorizontina (leia-se, principalmente: classe artística - e simpatizantes da causa -, que, após muitos entraves com  o prefeito, se institucionalizou como oposição especialmente com o 'movimento fora Lacerda'). Desnecessário dizer que isso irritou o ex-vice-prefeito, mas talvez o alto escalão tenha pensado que é pelo bem do Partido.

De modo que, então, a legenda 'PTS(D)B' se cindiu em PT e PS(D)B, criando uma 'oposição'. Assim, chegou-se à configuração à qual me referi no começo, em que coexistem o tinhoso Márcio lacERDA e aquele que encarna os ideais da cultura, de uma cidade diferente, "de ação e coração", livre da gestão PS(D)B.

Quanto a isso, abro um parêntese, quando os PTistas acusam Márcio lacERDA de realizar desocupações mediante violência àqueles que não têm onde morar, esquecem que o VICE-PREFEITO era PTista, tal como recalcam que a gestão que tanto passaram a criticar era da sigla 'PTS(D)B'. Fecho parêntese.

E nas redes sociais choveram mensagens denunciando as podridões que M. lacERDA fez no governo, enquanto depositavam em PaTrus a esperança de um novo dia, em que todos seríamos tratados como 'humanos' (whatever that means...). vi mensagens do tipo "Sim, patrus! somos responsáveis", e tals. E essa classe de 'responsáveis', era, em grande maioria, pessoas ligadas às artes de algum modo, seja profissionalmente, seja indiretamente, seja por amor. Realmente nem vi manifestações apaixonadas de apoio a M. lacERDA. Até porque Lacerda comprou apoio político, não precisa ser espontâneo... O que é de se pensar...

Mas, retomando meu raciocínio, criou-se essa 'oposição': Lacerda no qual a maioria votaria, segundo as pesquisas, mas que não tem lá muito apoio explicitamente apaixonado como no caso do Patrus, e o PTista, cujo partido, oriundo da cisão com o PS(D)B agora se apresentava como 'alternativa' à gestão horrorosa do Lacerda (e só dele - tanto que o movimento é o 'fora LACERDA', e não 'fora roberto de carvalho').

Para formular uma leitura psicanalítica dessa situação me utilizarei de Jean-Claude Milner, um linguista estudioso de Lacan, que é muito bom de se ler. Cara preciso, sucinto e denso. Pois bem , ele tem um conceito que trata do que ele chama de 'classes paradoxais'. Uma classe é uma nomeação que rotula certa situação em uma determinada significação. Por exemplo: "ah, aquela mulher é uma histérica!", com aquele ar jocoso. "histérica" aqui representa uma classe (cujo nome é 'histérica) que contém certos atributos, ou propriedades: 'exagerada', 'fingidora', 'chata', etc. Assim, uma classe se funda em quaisquer atributos que acaso cofiramos aos nomes, os quais, por sua vez, se prestam a quaisquer deles. Temos várias classes, inclusive classes clássicas, que são o 'trabalhador', o 'burguês', o 'humano', etc. Inclusive esse é o fundamento de todo e qualquer agrupamento, todo e qualquer Laço Social: que o sujeito estabilize seu ser em algumas das propriedades dessas classes: 'filho', 'brasileiro', etc.

Ora, a ideia de classe paradoxal que milner nos fornece é algo interessantíssimo: ela é uma nomeação de classe cuja função é precisamente a de desagrupamento. Aqui, cito um parágrafo meio extenso: em psicanálise "quando alguém diz 'o neurótico, 'a histérica', 'o perverso', 'o obsessivo', dá a entender, sob as espécies do singular genérico, a unicidade de um sujeito, que lhe é homônimo (...) Quem de fato vai acreditar que se trata de classes fundadas em propriedades, quem vai acreditar que os neuróticos se assemelham entre si e se opõem a um complementar? Ou, pelo menos, quem vai acreditar que é isso que o nome visa, quando é do ponto da análise que ele se articula? Mas no instante mesmo que, por homonímia, a psicanálise retoma os nomes recebidos, ela sabe, ou devia saber, que se trata aí de semblante: algo, para além, subsiste e não está esgotado na classe representável.. Algo que diz, mas não o que os neuróticos têm de mutuamente substituível e sim o que cada um deles tem de insubstituível; é que o laço que, segundo toda aparência, é constituído pelo nome comum só tem de substância o que separa para sempre os ligados. E, se entendermos esses últimos pelo que os faz se assemelhar, deveríamos estar, ao mesmo tempo, seguros de ter perdido o que, pelo nome, era visado de real. O nome de 'neurótico', de 'perverso', de 'obsessivo' nomeia ou finge nomear a maneira neurótica, perversa, obsessiva, que tem um sujeito de ser radicalmente dessemelhante de qualquer outro" (p. 91).

Admito muita emoção a citá-lo, pois é muito bonita e precisa a sua escrita. Mas o que quero frisar disso é que a classe paradoxal é um modo de-classificar, quer dizer, um modo maroto de usar um nome de classe para desclassificar. Lacan, quando fundou sua escola de psicanálise, tentou ao máximo impedir que se formasse uma igreja ao seu redor, para que a teoria psicanalítica não ficasse intocável por suas próprias sábias palavras e tentasse constantemente se renovar, sempre, a despeito do próprio Lacan. Por isso, ele 'diz-solveu'-a, dizendo: "vocês podem ser lacanianos, se quiserem. Quanto a mim, eu sou freudiano".. O estranhamento, o 'tchan' da frase é: "Lacan não-lacaniano? Como assim?" Esse é um exemplo de uma classe paradoxal. Essa é uma postura de indiferença com relação às classes, pois os atributos ou propriedades delas não podem ser totalmente unívocos, mas comportam um elemento de equivocidade e possibilidades de sua sub-versão. Se uma classe serve para assemelhar, agrupar, a classe paradoxal comporta a presença de uma auto-diferença em seu próprio seio, onde o duplo-sentido, sempre possível, desvela a falta de sentido radical para as atribuições que fazemos às classes. 

O que é ser lacaniano? O que é ser PTista? O que é ser 'de' tal ou tal partido? Diante da multipliCIDADE de (o)posições ideológicas, políticas, partidárias, que se constituem classes ao fortalecer sua (o)posição quanto às demais, a classe paradoxal vem mostrar que uma maior indiferença quanto às oposições serve para reduzir a burrice e a canalhice que tanto assolam eleitores e candidatos (não necessariamente nessa ordem). Isso porque, como conceitos, burrice e canalhice têm uma relação bem próxima. Para Milner - seria trágico se não fosse cômico -, a burrice tem um axioma: "não existe corte que desfaça o Laço" (p. 102) (leia-se laço social). Isso significa que a burrice é simplesmente que "tudo o que se diga, que o ser persevere sem ser afetado pelo fato de ser falante, que a linguagem una e comunique, que haja algum discurso que não seja semblante, eis alguma palavras enunciadas pela burrice, ou, pelo menos, por ela aplicados". (p. 103). Assim, burrice é acreditar no significado do que se diz, decantando-o cada vez mais; burrice é crer em Deus, o Laço Supremo, que para cada um tem um rosto; burrice é acreditar no Amor, cujos mal-entendidos expõem sua indelével fratura sexual. Burrice é crer em "deixa o homem trabalhar" ou "prefeito de ação e coração" (slogans de Lacerda e Patrus), como se um estivesse de fato trabalhando ou o outro tivesse de fato um coração. Resumindo, é crer que estamos INTEIROS, 'juntos e misturados', nesses PARTIDOS. A burrice é "a paixão pelo próprio laço" (p. 104). Completo eu: ser burro é crer ser (burro)...

De modo que, se por um lado, a classe paradoxal é precisamente aquela nomeação que não serve para agrupar, mas sim dispersar, causar um corte com o Laço, a burrice é a crença nesse próprio Laço, ignorando apaixonadamente, ou seja, resistindo à própria possibilidade de dispersão desse laço - como PTistas, PMDBistas, lacanianos... É crer que o Laço é tudo e Todo. Não é. Não necessariamente. 

Agora, não é porque constatamos que o Laço é burro que vamos ser canalhas de dizer foda-se ao Laço, foda-se o semblante, sendo inclusive burros de achar que isso é possível. O canalha - vou chamar de babaca de agora em diante -, o babaca, tenta recusar ser burro e acaba sendo os dois. Isso é que mais vemos nos políticos atualmente: mandam os semblantes à merda e agem simplesmente como se eles  (laços) não existissem, ou seja, faz o que quiser com o dinheiro 'público' (que é semblante) e se apropria dele (mostrando que de 'público' aquele dinheiro só tem o semblante, já que é simplesmente dinheiro na mão dele, e ele pode fazer o que quiser, inclusive roubar). Canalha também é quem não vota ou anula ou abstém: acha que não tem que preocupar com política, sem saber que sabe que dizer que não se envolve com política é tomar uma posição política. Quem é canalha também é burro: burrice é condição da canalhice. Ele é burro por achar que vai escapar do semblante ao ser canalha (que é só mais um semblante). E é canalha pelo mesmo motivo. Pois escapar de um semblante só leva a outro: é sair de um buraco pra cair em outro. 

Por isso é que a postura psicanalítica pode nos ajudar a reduzir a burrice e a canalhice: uma maior indiferença quanto aos semblantes que as nomeações partidárias, ideológicas, etc. nos atolam implica em uma política (ou melhor, uma polética) mais alinhada com o Real que é o para-além das oposições político-partidárias e ideológicas, em que as diferenças são mais indiferentes, em que possamos (como o Inconsciente) acolher e incluir elementos de quaisquer dessas oposições, sem sermos burros ou canalhas em relação a elas. 

Votar, sim; escolher, sim; tomar partido, sim; mas tentando sempre exercitar a indiferença, a classe paradoxal, quer dizer, resistir à burrice e à canalhice de supor que ou é tudo Um ou não é nada. Sem paixão ao Laço: menos amor, menos amor (como quem diz: menos ódio, menos ódio)... ou pelo menos, "ame ao próximo como se não fosse a ti mesmo", porque, de Narciso, tá cheio de gente no mundo... votando e se elegendo. Lacan deu o exemplo de tentar que não se construa uma igreja com o seu 'partido' lacaniano... (e fracassou, certamente...) Fernando Pessoa disse: "prisão, nem de amor as quero".

Como diz a 'Gina Indelicada': entre Michel Teló e Gusttavo Lima, prefiro o 'ou'"... 'Democracia' (se é que esse nome presta) começa aí...