A situação do povo indígena Guarani
Kaiowá, que vive no Mato Grosso do Sul, tem piorado cada vez mais. Há quarenta
anos, eles foram expulsos de sua terra sagrada ('tekohá'), por fazendeiros e
colonos que tomaram suas terras, e foram obrigados a migrar para outra região.
Desde o ano 2000, o governo brasileiro declarou (e não decretou) a tekohá como
indígena, porém o processo administrativo que decreta definitivamente a
pertença da área não foi concluído até o momento.
No mês passado, cerca de 500
índios 'invadiram' (retomaram) parte de seu território sagrado, de onde tinham
sido expulsos há 40 anos. Mas como ainda não está oficialmente decretado que a
terra pertence a eles, sua 'invasão' tem sido questionada pelos fazendeiros,
que querem a chamada reintegração de posse.
Pois bem, recentemente, a
"Justiça" do MT decretou a reintegração de posse por parte dos
fazendeiros, e desde então os Kaiowá decidiram que não sairão de seu tekohá por
entenderem que têm o direito de viver em uma área que consideram historicamente
sagrada e da qual foram expulsos em uma época em que não havia uma demarcação
regulamentada para sua cultura. Desde então, tem aumentado a violência dos
jagunços (pistoleiros contratados pelos fazendeiros) contra os Kaiowá.
Há alguns dias, os Kaiowá
entregaram uma carta à Justiça Federal pedindo que, ao invés de expulsarem-os
de sua tekohá, o Governo os mate e os enterre com os seus antepassados, pois
não aceitam a decisão jurídica de mais uma vez serem expulsos. Segue trecho da
carta: "Assim, fica evidente para nós, que a própria ação da Justiça
Federal gera e aumenta as violências contra as nossas vidas, ignorando os
nossos direitos de sobreviver à margem do rio Hovy e próximo de nosso
território tradicional Pyelito Kue/Mbarakay. Entendemos claramente que esta
decisão da Justiça Federal de Naviraí-MS é parte da ação de genocídio e
extermínio histórico ao povo indígena, nativo e autóctone do Mato Grosso do
Sul, isto é, a própria ação da Justiça Federal está violentando e exterminado
as nossas vidas. Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por
fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso
território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira”.
“A quem vamos denunciar as
violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a
própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós. Nós
já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos mesmo
em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto
aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do
rio Hovy onde já ocorreram quatro mortes, sendo duas por meio de suicídio e
duas em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas"
(KAIOWÁ, 2012). Nos últimos 8 anos, mais de 250
índios foram assassinados no MS. Além disso, já houve 190 tentativas de
assassinato, 176 suicídios, e 49 atropelamentos contra eles.
A decisão de reintegração de
posse por parte da justiça provavelmente foi influenciada pelo setor
pecuarista, interessado nas terras sagradas para expansão de seus lucros, que
naquela região tem como porta-voz uma ex-atriz muito famosa, Regina Duarte, que
interpretou Porcina, a mulher de Sassá Mutema na novela Roque Santeiro.
Enfim, fica claro e evidente que
há uma oposição aí entre os interesses dos pecuaristas (seus negócios) e os
interesses indígenas (morarem em terras que consideram sagradas).
Pois bem, a situação dos Kaiowás
é totalmente articulável psicanaliticamente, e a pergunta que aqui formulo é a
seguinte: que política é possível, na mediação de tais conflitos de interesses,
a partir da lógica que a psicanálise trouxe, ou seja, a lógica do funcionamento
psíquico (cujo discurso deveria fundamentar qualquer pensamento quanto às ações
humanas)? Ariscarei aqui tentar responder de algum modo a essa pergunta.
Algumas coisas devem ser
consideradas dadas nesse texto, pois não vou explicar a teoria psicanalítica
inteira pra falar do assunto:
1 - O que querem os Kaiowás? O
que querem os pecuaristas? O que quer o ser humano, fundamentalmente? Se a
ideia freudiana de pulsão de morte serve para alguma coisa é para formular o
seguinte: há o desejo e o que ele quer (seu suposto objeto) é precisamente não
ser desejo mais, ou seja: não haver enquanto tal. Para o desejo, se houver
qualquer coisa, mas qualquer coisa que seja, ele desejará que simplesmente não
haja. Nem ele próprio. O desejo do homem é que não haja, e disso formulamos o
conceito de Não-Haver, objeto impossível (porque não há) do desejo humano. Uma
vez que não há o Não-Haver, não há objeto para o desejo humano, o ser humano
buscará sua satisfação parcial em alguma coisa que deveras HAJA. Mas o
fundamental da lógica da pulsão é que, se houver, o desejo é de que não haja,
ou seja desejo de Outra-Coisa. Escrevemos então um sintagma, "Haver quer
Não-Haver", que é nada mais do que Freud chamou de pulsão de morte.
Ora, não-há o objeto do desejo
humano. Porque esse objeto não é nem objeto, ‘é’ simplesmente uma inexistência,
ou, pra ser mais preciso, o Não-Haver. Não-Haver não há, logo, pra se atingir
algum alvo, alguma satisfação (já que a absoluta é impossível), o desejo se
volta para algo qualquer, que exista, que haja: retorna para o Haver. Mas aí é
só um dos pedaços da existência, tipo desejar ser um 'índio', um 'brasileiro',
um 'ser humano', um ‘médico’, etc. Alguma coisa, que obviamente não é todas: é
só aquela coisa, parcialmente. Eu quero ser 'índio', e não 'não-índio'. O que
cria instantaneamente uma oposição entre as coisas que existem: índios e
não-índios, por exemplo. Tudo que há entra em oposição: isso e aquilo.
2 - Para a psicanálise, o que ela
descobriu como fundamental no funcionamento da mente é que o ser humano tem
sempre a possibilidade de transitar entre essas oposições: alguém que foi
'macho' a vida inteira pode de repente virar 'não-macho': vide homossexualismo,
transexualismo, etc. O ser humano tem a possibilidade de escapar de suas
determinações apriorísticas e ser Outro. Nisso reside o conceito de cura em
psicanalise.
Dito isso, passemos adiante. A
situação dos Kaiowás é idêntica à de Antígona, filha de Édipo, da peça teatral
do grego Sófocles escrita há mais de dois mil anos. A história é simplesmente
uma metáfora das posições possíveis da mente com relação às leis. Como disse, o
juiz federal expulsou os índios de sua terra sagrada, impregnada de
significações. A lei determinou isso. Mas que posições mentais são possíveis
diante das leis? O que são as leis, psiquicamente? E a Justiça? Isso existe?
Antes, lembremos a história: Os
pais de Édipo, os reis Laio e Jocasta de Tebas, vão a um oráculo que lhes diz
que seu filho irá matar o pai e desposar a mãe, o que é contra a lei. Então
deram a criança para um encarregado de matá-la, mas este fica piedoso e poupa
Édipo. Ele foi criado por pais adotivos que o tratavam como filho e não lhe
contaram sobre seus outros pais. Mas, um dia, alguém que estava com raiva dele
disse-o que ele era adotivo. Após buscar saber sobre isso, descobre que era
deveras adotivo e abandona a cidade de Corinto, onde morava. Então, ao fugir da cidade, em seu caminho para
Tebas, encontra a carruagem em que Laio estava e houve uma luta entre eles,
para decidir que passaria primeiro pelo caminho onde só poderia passar um de
cada vez. Édipo mata Laio e foge para Tebas. Na entrada da cidade a Esfinge,
que a controlava, propunha um enigma para qualquer um que chegasse, e caso não
adivinhasse, morreria. O enigma era "o que anda de quatro de manhã, de
dois à tarde e de três à noite?". Resposta de Édipo: o homem. A esfinge
cai no poço e Édipo entra na cidade para virar rei, por ter salvado a cidade da
tirânica Esfinge. Ofereceram-lhe a recém viúva como esposa e o lugar do Rei
falecido. Ele foi aclamado por todos.
No entanto, Édipo recebe uma notícia
de que há uma peste sobre a cidade, matando muita gente. Manda então chamar o
poeta e adivinho Tirésias, para ajudar com o problema. Ele diz a Édipo que a
peste assola porque ele casou com sua mãe e matou seu pai, o que é contra a
lei. Por isso a cidade está sendo punida. A princípio Édipo nega, diz se tratar
de jogada política, mas acaba entendendo a própria história e aceitando a culpa
pelo mal-estar da cidade. Sua mãesposa Jocasta se enforca ao descobrir a
tragédia e Édipo pega os broches dela e fura os próprios olhos para não ver a
merda que tinha feito. E, de acordo com a lei que vigorava, se bane da cidade e
vive pedindo esmola, até retornar à cidade natal, Colona, onde luta contra sua
culpa, pois ele não sabia que eram sua mãe e seu pai que estavam em jogo em
Tebas. Enfim, morre.
Édipo deixou quatro filhos,
Antígona, Ismênia, Etéocles e Polinício. Após Édipo se banir de Tebas, seus
filhos homens alternavam o poder: cada um ficava um ano. Começou com Polinício,
e depois Etéocles, que não quis mais sair, o que desencadeou uma guerra entre
os dois. Polinício foi a uma cidade vizinha, Argos, e convocou um exercito para
demitir Etéocles. Etéocles foi o babaca, pois não quis sair quando devia, mas
como Polinício trouxe estrangeiros, ele ficou como o mau-caráter, por atacar a
própria cidade. Os dois irmãos se matam na guerra. E Creonte, irmão de Jocasta,
tio de Édipo, toma o trono. Ele manda fazer honras a Etéocles, que havia lutado
em favor da cidade contra os estrangeiros e proíbe o enterro de Polinício, que
atacou a própria cidade. Ele deveria ser comido pelos animais ao ar livre como
uma carcaça. Antígona não aceita e vai enterrar o irmão, pois enterrá-lo com
justiça e dignidade é algo sagrado, de uma lei maior do que a da cidade, que é
a Lei dos deuses. Seu vínculo com o irmão era de uma ordem superior. Por ter
desobedecido à lei, Antígona foi condenada à pena de morte. Enquanto estava
presa, suicidou-se.
Enfim, não vou me alongar sobre o
mito, mas temos elementos suficientes para mostrar que há uma clara relação das
situações de Antígona e dos Kaiowá. O que temos que analisar são as posições
possíveis da mente humana diante das leis, e a consequente demanda de justiça
que elas implicam, para mostrar que política a psicanálise (ou qualquer
pensamento fundamentado com as mesmas bases) pode apontar para o mal-estar.
Se pensarmos em Édipo no lugar de
rei, seguindo a lei do parricídio e cumprindo-a à risca, ao ponto de banir-se a
si mesmo da cidade, mesmo tendo feito algo da qual não tinha como ter sabido, isso
significa dar uma consistência à lei, sem possibilidade de equivocá-la, ou
seja, sem considerá-la sob um ponto de vista ad hoc. A lei deve funcionar como
está escrita. Ao pé da 'leitra'. "Em Édipo Rei a pessoa está referida à
lei do mundo, à autoridade" (2009, p. 78) diz MD Magno, psicanalista
brasileiro. Ele chama essa posição psíquica de ‘Invocação da lei’, algo que
funciona no regime do recalque de outras possibilidades de interpretação da
lei. "Matou o pai, tem que ser escorraçado, não importa se sabia ou
não". É a lei segundo Carl Schmitt, cuja tirania se impõe a partir dos
valores vigorantes em determinada época. Cito: "O valor maior tem o
direito e até mesmo o dever de submeter o valor inferior, e o valor, como tal,
tem toda a razão de aniquilar o sem-valor como tal" (SCHMITT, 1961, p. 75)
Isso é tipo o seguinte: botar uma pessoa, que foi pega em flagrante roubando
uma caixa de leite, na cadeia e inocentar o Dirceu por falta de provas, apesar
de inúmeros indícios: cumpra-se a lei. Em um caso, ‘roubou, vai pra cadeia”; em
outro “a lei diz que não se pode punir sem falta de provas”.
Assim, temos uma posição mental
diante da lei: invocá-la, sedimentá-la: "há a injunção da lei, ordenada
não se sabe de que poder, que vige no interior da cidade. O parricídio e o
incesto como crimes são um sintoma da cidade instituído por um poder. Então,
Édipo Rei mostra a pessoa centrada no enunciado da lei. (...) é o império da
lei, em seu sentido menor, dentro da ordem do mundo. Lembrem-se de que é a lei
que institui o crime e se institui pelo poder" (MAGNO, 2009, p. 78).
Após a grande tragédia, quando Édipo
vai para Colônia, ele começa a se desculpabilizar, com o apoio de Antígona, no
sentido de que ele não sabia da situação na qual se encontrava. Ele não sabia
que o homem da carruagem, o qual matou, era seu pai, e nem que a rainha de
Tebas era sua mãe. De modo que essa própria desculpabilização quanto ao seu
crime é uma equivocação da lei. É algo do tipo "se bem que eu não
sabia..." de modo que talvez não devesse ser punido por essa lei insensata
com a qual me culpo. Talvez a lei deva ser revista, relativizada, equivocada: “Data
Vênia”.
Daí, temos Antígona. O que ela
faz é, além de equivocar a lei de Creonte, revogá-la. E invoca a lei da pulsão:
não há lei mundana para a pulsão, de modo que tudo lhe é possível. Nenhuma
solução legal abrange seu escopo. "Aí está a Pessoa Real como estranha,
estrangeira à lei" (MAGNO, 2009, p. 80). Qualquer lei lhe é injusta, pois ela
está referia à lei maior, que sabe que não há lei no mundo que dê conta de
nossa experiência de mal-estar de haver e desejar não-haver: "eu tenho meu
modo de haver, de dar conta do próprio mal-estar de haver, absolutamente singular, que nunca, nenhuma lei poderá
universalizar" É como se Antígona tivesse dito: "eu VOU enterrar o
meu irmão, VIVA OU MORTA, criminosa ou não", indiferentemente. Está
para-além das oposições das leis e dos julgamentos (bom/mau, certo/errado,
etc.), seguindo estritamente ALEI da Pulsão: ‘vou tentar Não-Haver desse meu
modo singular’, quer dizer, diante do insuportável da impossibilidade de Não-Haver, invento um jeito de Haver que é meu modo singular de suportá-la, seja isso legal ou ilegal.
E é aqui que entra a questão da
justiça. "Dentro do escopo do que temos dito, toda demanda de justiça é
requerimento de reconhecimento da singularidade da pessoa enquanto real"
(MAGNO, 2009, p. 99), para além das oposições, das diferenças. Qualquer decisão
jurídica implica inadimplência para com o Justo porque não considerou minha
possibilidade pulsional, que quer não-haver, portanto nada do que se decida dentro do Haver satisfaz completamente. "Cada pessoa, enquanto Real, encontra sua
verdadeira identidade em sua posição no Haver. Identidade esta que não é
descritível, jamais comparece explicitada nas formações do Ser, do dizer, da
cultura, etc." (Ibid, p. 103), justamente porque não dá conta da singularidade do desejo
humano. A Lei maior é a Lei do Desejo, que chamaremos ALEI por não ser nenhuma
dessas leis menores que vigoram em certas culturas devido às tiranias dos
valores. As justiças (no plural, mesmo) são também constituídas pelos valores
vigentes, dominantes em determinado contexto. A indiferenciação desses valores
("se isso é bom, se isso é mau, EU vou enterrar meu irmão") mostra a
irredutibilidade do desejo humano, que é sua única e verdadeira identidade.
Todos somos idênticos perante ALEI, todos temos o mesmo desejo de impossível,
porém, dentro do possível, a justiça vai separando as possibilidades em
permitido/proibido, bom/mau, dentro das
oposições. O desejo humano está para além dessas oposições, em que tanto o
permitido quanto o proibido são possíveis. Nesse lugar, todas as possibilidades
se vinculam, e é aí que mora a humanidade do ser humano.
Antígona quer que sua
singularidade seja incluída no mundo, na lei. Mas a lei se recusa a fazê-lo.
Assim como os Kaiowás. O vínculo sagrado entre os Kaiowás e seus antepassados,
tal como o vínculo de Antígona com Polinício é de uma ordem mais abrangente do
que os demais; não é da ordem das diferenças: não se rata de que Polinício seja o irmão de Antígona, não se trata de que os antepassados são parentes dos Kaiowás, mas se trata da ordem da
singularidade. O que isso significa?
Que, para além de todas as identificações com as quais nos constituímos, tal
como 'brasileiro', 'índio', 'católicos', 'evangélicos', 'irmãos' etc., a condição
fundamental, ou seja, a identidade do 'ser humano é a de simplesmente haver no mundo, indiferente a
quaisquer identificações. E essa é uma vinculação não pelas diferenças (tipo 'índio', 'irmão', 'parente' que são diferenças dentro do Haver, da Existência), mas
da Identidade fundamental das singularidades: "SOU ÚNICO, COMO TODO MUNDO!
Incluam isso em algum lugar do Haver ao invés de excluírem minha singularidade em
prol da sua singularidade". Isso é da maior importância e é o que
fundamenta uma nova mentalidade ‘polética’ com relação às leis e à justiça. Slavoj Zizek também reconhece isso. Ele diz que não podemos tratar do problema
da luta de classe (que chamaremos de agonística, ou simplesmente luta das
diferenças, das oposições) com base numa filosofia das diferenças, através de
uma tolerância para com elas. Não se trata de tolerar os índios. Pois, segundo
ele mesmo, "a tolerância significa 'me deixe em paz, não me acosse. Se
você se aproximar demais vou me sentir acossado e isso eu não tolero’”. Em
outras palavras, essa política de tolerância das diferenças acaba sendo
intolerância. Um exemplo claro disso é a invasão do Iraque pelos EUA. Bush não
tolerava a falta de tolerância do regime de Saddam Hussein e foi lá impor a
tolerância (dita democracia). Ou seja, o país da Tolerância não tolerava a Intolerância:
Tola errância. Não é essa a polética que a psicanálise propõe. Para ela, o que
quer que haja deve ser considerado, deve ter o direito de haver. Assim como
Polinício. O que Antígona está dizendo, no fundo é que 'houve Polinício' e ele
deve ter o lugar dele nesse mundo 'que a terra há de comer'. Ele já tinha morrido, mas Antígona reclamava que não o matassem de novo, como se ele não tivesse havido. Esse é o Vínculo
Absoluto: todos nós, sejamos bons, maus, certos, errados, índios, caraíbas,
havemos, e temos esse direito. Da mesma forma os índios: "nossos
antepassados existem, e nós também. Temos esse direito", é como se
dissessem.
Essa polética, essa política do
Real (MILNER, 2006, p. 77), praticamente impossível de se executar, é o que MD
Magno chamou de Diferocracia, claramente se opondo à democracia,
que é o regime de tolerância das diferenças eleitas pela ‘maioria’ (cf. os EUA). "Diferocracia
não é um conceito das filosofias da diferença. Isto porque estas pensam e
operam no regime do Ser, das oposições, dos alelos. Elas defendem as diferenças
enquanto tais dentro da ordem cultural, social, dos saberes, dos conhecimentos,
em que tudo se organiza e se explicita como oposição, e portanto, em última
instância, como diferença pura em emergência. Entretanto, o que dá base ao
pensamento da diferocracia não é o mero reconhecimento da diferença, pois esse
permanece no jogo das diferenças [tolerâncias], e sim o reconhecimento da
Identidade do Real para cada um. Discutir a respeito da diferença, como ela é e
como funciona é infinito. Já referir-se à experiência que todos têm de Haver
tout court, sem qualquer discussão, é uma experiência radical de cada um e não
tem discussão. Quando minha referência é a minha singularidade, o
reconhecimento da singularidade de cada um e de que essa singularidade é
causadora de movimentos os mais diversos na ordem do Ser, [ser brasileiro,
índio, etc...], aí então respeito a diferença e a coloco como intocável. Isto
com base na identidade e não com base nas próprias diferenças. Vejam que falo
de uma força maior de garantia das diferenças, mas que está fora das
diferenças: a força Real da Identidade permanente, a singularidade de cada um.
Dado que cada um é singular, sabe-se lá que movimentos, diferenças ou loucuras
esta singularidade produzirá, e temos que respeitá-las todas, pois estamos no antes
respeito de cada singular. (...) há que respeitar cada singularidade segundo
sua expressão dentro do Ser. Do ponto de vista político, no mundo que temos,
isto é inexequível" (Magno, 2010, p. 104), porque exigiria das pessoas a
indiferença quanto aos valores e é em relação a isso que ainda não estamos
preparados. "No estado de mente ao qual me refiro, é preciso não levar em
conta a diferença pela diferença, pois a diferença pura e simples é irritante
para a diferença. Levá-la em conta recai no regime da tolerância. Não se trata,
portanto de tolerar o próximo por ser diferente, e sim do direito que ele tem
de ser diferente em função de sua identidade. (...) Em termos de psicanálise, a
postura política do psicanalista em seu trabalho é acolher todas as diferenças
do mesmo modo [indiferentemente]. Não importa se, na ordem jurídica da cultura,
a atitude de uma pessoa seja considerada crime, pois o psicanalista está no
movimento de entender e levar isto à sua identidade para que ela, no
esclarecimento de sua posição de identidade no mundo, consiga até fazer
diplomacia com esse mundo, e não receba de saída um sopapo de julgamento a
respeito de sua identidade"(MAGNO, p. 105).
Essa postura insustentável, de
indiferença quanto às oposições no mundo é o crucial para que algum dia haja de fato a
instauração dessa polética diferocrática. "Então, o único princípio é que os
regulamentos sejam tais que não ofusquem o surgimento de um sujeito [uma
singularidade], que não sufoquem a fala, que não erijam a surdez como regra.
(...) Liberalismo que deseja que a lei diga o mínimo possível de propriedades
[cf. "Eleições e classes paradoxais", abaixo] e se atenha ao mais
abstrato [a singularidade Real do Vínculo Absoluto]" (MILNER, 2006, p.
79). Ou, como diz Magno, "há que arranjar meios de garantir as diferenças, por piores que sejam" (MAGNO, 2008, p. 121). "Vejam como é difícil lidar com isso se considerarmos qualquer singularidade como sagrada. E mais, sabemos que uma singularidade, no campo do mundo, pode ser prejudicial à outra [vide os ruralistas, por exemplo]. Por isso, as políticas de mundo têm que, mediante todos os artifícios possíveis, inclusive tecnológicos, inventar modos de manter a existência de ambas sem que haja destruição recíproca. Mas o que a democracia faz é dizer que tal singularidade não pode se expressar e a trancafia [por exemplo, neste momento os índios estão confinados a uma pequena área de sua tekohá, cercados de jagunços à espreita]. Ora, isto é igual ao que qualquer macaco sabe fazer" (MAGNO, 2009, p. 107)
Antígona e os Kaiowás nos dão o
exemplo dessa política Real, em que diante das leis do mundo, das leis da
cidade, fazem referência à ALEI Real como impossibilidade de se atingir o
não-haver, implicando que toda forma de existência
deve ter seu
direito
dentro do mundo, até porque simplesmente não é possível extingui-la: como os
Kaiowás mesmos já disseram, tal como Antígona, "decidimos integralmente a não sairmos daqui
com vida
e nem mortos" (KAIOWÁS, 2012, grifo
meu). Se matarmos todos os Kaiowás, isso não os fará desaparecer; pelo
contrário, os dará uma força que nunca tiveram antes na história desse país.
Tornarão-se (aliás, já são, visto as tentativas de fazer com que eles não
hajam) mártires imortais da Humanidade, como tantos outros, e quem vai morrer
com eles será justamente mais um pedaço d'Ela, como em tantas outras vezes.
REFERÊNCIAS:
KAIOWÁS.
Abaixo-assinado Não á Extinção do povo Guarani-Kaiowás - Revogação do despacho expresso pela Justiça Federal de Navirai-MS, conforme o processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006, do dia 29 de setembro de 2012. Disponível em:
http://www.peticaopublica.com.br/?pi=P2012N30735
MAGNO, MD.
A Rebelião dos Anjos: Eleutéria e Exousía. Rio de Janeiro: Novamente Editora, 2009.
____________.
AmaZonas: A Psicanálise de A a Z. Rio de Janeiro: Novamente Editora, 2008.
MILNER, Jean-Claude.
Os Nomes Indistintos. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2006.
SCHMITT, Carl.
La Tirania de los Valores. Trad. Anima Schmitt de Otero. In: Revista de Estudios Políticos, Madrid, 115, Enero-Frebrero 1961. Extraído de:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_Schmitt#cite_note-autogenerated1-7
ZIZEK, Slavoj.
The Reality of the Virtual. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=fa3OHpMWYc0