“Suponhamos que vejo diante de nós uma rapariga de modos masculinos. Um ente humano vulgar dirá dela: ‘aquela rapariga parece um rapaz’. Um outro ente humano vulgar, já mais próximo da consciência de que falar é dizer, dirá dela: ‘Aquela rapariga é um rapaz’. Outro ainda, igualmente consciente dos deveres da expressão, mas mais animado do afeto pela concisão, que é a luxúria do pensamento, dirá dela ‘Aquele rapaz’. Eu direi ‘Aquela rapaz’, violando a mais elementar das regras da gramática, que manda que haja concordância de género, como de número, entre a voz substantiva e a adjectiva. E terei dito bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza, da norma, e da quotidianidade. Não terei falado: terei dito.
A gramática, definindo o uso, faz distinções legítimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém, o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter o verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente, e não para, como o comum dos animais homens, o ver às escuras. Se quer dizer que existo, direi ‘Sou’. Se quer dizer que existo como alma separada, direi ‘Sou eu’. Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesmo se dirige e forma, que exerce junto de si mesma a função divina de se criar, como hei-de empregar o verbo ‘ser’, senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo, direi ‘Sou-me’. Terei dito uma filosofia em duas palavras pequenas. Que preferível não é isso a não falar nada em quarenta frases? Que mais se pode exigir da filosofia e da dicção?
Obedeça à gramática quem não sabe pensar o que sente. Sirva-se dela quem sabe mandar nas suas expressões”
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, #87)
“L’Inconscient est structuré comme un langage”
(Jacques Lacan, 1953)
Todo o ensino proposto por
Jacques Lacan (1901-1981) foi o de sustentar o cerne da descoberta freudiana a
partir da interrogação sobre o campo de sua atuação: o da linguagem. Como é que
a fala tem o poder de curar? Ou adoecer? O que é a fala, qual é o seu campo, a
sua lógica? Esse questionamento atravessa sua obra de ponta a ponta em dois
grandes ‘classicismos’, como diz Jean-Claude Milner, que se constituem como
respostas ao que se quer dizer quando
se fala da linguagem.
No chamado ‘primeiro ensino’,
Lacan propõe que o psicanalista se abdique de ser psicólogo, ou seja, não
busque tentar entender o que é o pensamento, qual é a sua essência, e se
concentre apenas com o dado ’empírico’ que ele tem para atestar efeitos do
inconsciente freudiano: a função da fala no campo da linguagem; é assim que se
exprime o mote de seu primeiro ensino. “Quer se pretenda agente de cura, de
formação ou de sondagem, a psicanálise dispõe apenas de um meio: a fala do
paciente” (LACAN, 1996, p. 249). De modo que nesse primeiro ensino, Lacan tenta
buscar a estrutura lógica do inconsciente na linguagem, e, para tal, servindo-se
especialmente da linguística estrutural, que, segundo ele, se apresentava à
época numa posição-piloto na conquista do status de objeto científico pela
linguagem (LACAN, 1996, p. 499). Se o inconsciente é estruturado como uma
linguagem, estudemos o que a linguagem é, cientificamente.
Se a obra de Freud só trata de
processos de produção de sentido, de significação, Lacan destaca da linguística
as duas funções engendradas numa significação: a função significante (que é o
material que significa o significado) e o significado (que é aquilo a que o
significante se refere). “A temática desta ciência [a linguística], por
conseguinte, está efetivamente presa à oposição primordial do significante e do
significado, como ordens distintas e inicialmente separadas por uma barra
resistente à significação.” (LACAN, 1996, p. 500): “eis o que tornará possível um
estudo exato das ligações próprias do significante e da amplitude da função
destas na gênese do significado.” (LACAN, 1996, p. 501). O que implica que
significado só surge quando dessas ligações entre significantes, quer dizer, a
primazia do significado é o significante, porque o significado de um significante é outro significante, articulação
essa que forma uma cadeia interminável em que os significantes se significam
mutuamente quanto mais se articulam entre si. “Ora, a estrutura do significante
está em ele ser, como se diz comumente da linguagem, articulado” (LACAN, 1996,
p. 504). Assim, a introdução do estudo da linguística na psicanálise é para que
se entenda que a estrutura que Freud destaca no inconsciente é uma estrutura de linguagem, quer dizer, de
articulação, implicando, a partir da oposição significante/significado, que
o significante não tem que responder por sua existência a título de uma significação
qualquer (LACAN, 1996, p. 501), ou seja, o significante pode ter qualquer
significado: basta alterar sua articulação. “A descoberta de Freud é a do campo
das incidências, na natureza do homem, de suas relações com a ordem simbólica,
e do remontar do seu sentido às instâncias mais radicais da simbolização no
ser. Desconhecer isso é condenar a descoberta ao esquecimento, a experiência à
ruína” (LACAN, 1996, p. 277). A ordem simbólica é a lei do significante: “isso
quer dizer que suas unidades (...) estão submetidas à dupla condição de se
reduzirem a elementos diferenciais últimos e de os comporem segundo as leis de
uma ordem fechada. Esses elementos, descoberta decisiva da linguística, são os
fonemas” (LACAN, 1996, p. 504). Ainda Lacan: “a forma de matematização em que
se inscreve a descoberta do fonema, como função
dos pares de oposição compostos pelos menores elementos discriminativos
captáveis da semântica, leva-nos aos próprios fundamentos nos quais a doutrina
final de Freud aponta, numa conotação vocálica da presença e ausência, as
origens da função simbólica” (LACAN, 1996, p. 286). Lacan está dizendo que a
estrutura simbólica, a estrutura do significante, é sempre uma estrutura de
oposição entre diferenças. Um
significante é sempre uma oposição para com outro significante, que é seu
significado. São pura e simplesmente articulações de diferenças; as diferenças
no interior de uma estrutura de uma língua são os fonemas. “A primeira rede, a
do significante, é a estrutura sincrônica do material da linguagem, na medida em que cada elemento adquire nela
seu emprego exato por ser diferente
dos outros” (LACAN, 1996, p. 433) (grifos meus). (‘Material’ da linguagem? O
que é ‘material’? O que é matéria? Até onde se fala, matéria é algo físico. A
linguagem não é algo físico para Lacan, mas tem materialidade. Retornaremos a
isso para redefinição do que seja matéria). E, para arrematar, Lacan nos indica
a mais elementar, a mais nuclear sequência simbólica, “a de uma série linear de
sinais que conotem a alternativa da presença e ausência” (LACAN, 1996, p. 433).
Assim, resumo: o inconsciente freudiano, para Lacan em seu primeiro ensino, é a
estrutura em que elementos diferenciais, opositivos, (fonemas) se articulam,
significantemente, para assim engendrar significados a esse material.
É importante salientar que, com
seu recurso à linguística, Lacan queria escapar de “qualquer semiologia mais ou
menos hipoteticamente generalizável” (LACAN, 1996, p. 499), para se ater ao
“estudo das línguas existentes em sua estrutura e nas leis que nela se revelam”
(ibid.), cuja posição piloto na ciência da linguagem a linguística se
constituía para Lacan. Isso implica a exclusão da referência a outras
disciplinas, como a teoria dos códigos abstratos ou a teoria da informação,
constituída pela física (Ibid.). Isso porque Lacan, em seu primeiro ensino,
destacava a primazia da intersubjetividade da linguagem em oposição à
intra-subjetividade: “à medida que a linguagem se torna mais funcional, ela se
torna imprópria para a fala (tipo alguém que só fale frases prontas, por
exemplo), e ao se nos tornar demasiadamente particular, perde sua função de
linguagem (tipo um doido de pedra delirando)” (LACAN, 1996, p. 300).
“Finalmente, é por uma intersubjetividade do ‘nós’, que ela [uma pessoa] assume
que se mede numa linguagem seu valor de fala” (Ibid.). Isso significa que, para
Lacan, a linguagem não é redutível à informação. A informação exclui o que se
chama de redundância, que é tudo o que for supérfluo para a constituição da
informação. “O sentido de uma mensagem continua inalterado mesmo se partes dela
forem removidos. Essa é a essência da redundância” (SEIFE, 2010, p. 17-8), ou
seja, a informação é a mensagem menos sua redundância. Para Lacan, a mensagem
do sintoma implica sua redundância, pois como ele mesmo diz: “o que é
redundância para a informação é precisamente aquilo que, na fala, faz as vezes
de ressonância” (LACAN, 1996, p. 300), ou seja, leva à informação ‘contida’ no
inconsciente. Com isso, Lacan dá uma dica clínica muito precisa: é como se o
sintoma, ele mesmo, fosse a redundância cuja informação está recalcada, de modo
que é destacando redundâncias na fala do paciente que se chega ao núcleo
informacional do inconsciente. A linguagem, do inconsciente, é de redundância,
ou seja, de ressonância, pluralidade de sentido, e não a informação completa,
irredutível em seu sentido. A função da linguagem no inconsciente “não é
informar, mas evocar” (LACAN, 1996, p. 301). Ao que completo: “não é informar,
mas e(qui)vocar”. Lacan quer dizer então que a informação é a anexação de um
significante a um significado de maneira cabal, não passível de outros
sentidos, e o significante verdadeiramente significante não tem que responder
por sua existência a título de uma significação qualquer, já que qualquer
significação lhe é possível. O que há de diferente entre a informação e o
significante é, principalmente, a capacidade de superposição do significante (LACAN,
1996, p. 553), destacada por Lacan no advento do sintoma, que é metáfora:
“Quero apenas indicar o fato de que, do mais simples ao mais complexo dos sintomas,
a função do significante revela-se preponderante, por surtir efeito neles já no
nível do trocadilho” (LACAN, 1996, p. 448), o qual nada mais é do que a dita
superposição de significantes. Já a informação, para Lacan, não é trocadilho,
não é redundância, não é equívoco, não é metáfora; são as “coalescências do
significante com o significado às quais toda resistência se agarra, toda
sugestão se alicerça” (LACAN, 1996, p. 440). Será mesmo?...
Lacan, ao longo de seu ensino,
começa a perceber que essa decifração das mensagens cifradas que constituem os
sintomas não são suficientes para resolvê-los. Se num primeiro momento, Lacan
dizia que “já está perfeitamente claro que o sintoma se resolve por inteiro
numa análise linguageira, por ser ele mesmo estruturado como uma linguagem” (LACAN,
1996, p. 270), após alguns anos, reformula o que pensa, constituindo assim seu
‘último ensino’. Primeiro, a gênese da função de significação é deslocada do
simbólico para o real. “O real é o que comanda toda a função da significância.
O real é aquilo com que vocês deparam, justamente por não poderem escrever em
matemática seja o que for. O real é o que concerne a que, no que é a função
mais comum, vocês se banham na significância, mas não podem segurá-los todos ao
mesmo tempo, os significantes. Isso é proibido pela própria estrutura deles.
Quando vocês têm alguns, um embrulho deles, não têm todos. Eles são recalcados.
Isso não significa que vocês não os digam, ainda
assim”( LACAN, 2012, p. 29). Essa mudança na orientação de seu ensino
significa que, para Lacan, a última palavra sobre a estrutura do inconsciente
não é a linguagem, mas a lógica. “O real pode se definir como o impossível, é
como ele se revela no assentamento do discurso lógico. Esse impossível, esse
real, deve ser privilegiado por nós. Nós quem? Os analistas. Isso porque ele é
o paradigma do que questiona o que pode sair da linguagem. (...) Proponho a
encontrar nesse real que se afirma pela interrogação lógica da linguagem o
modelo do que nos interessa, ou seja, do que a exploração do inconsciente
revela” (LACAN, 2012, p. 40). Lacan procura pelo fundamento lógico da linguagem:
qual é a lógica que exploração do inconsciente revela?
Lacan se faz esse questionamento
porque “o que Freud descobre no inconsciente (...) é algo bem diferente de nos
darmos conta que, grosso modo, podemos dar um sentido sexual a tudo que sabemos.
(...) É o real que permite desatar efetivamente aquilo em que consiste o
sintoma, a saber, um nó de significantes. Atar e desatar aqui não são apenas
metáforas, mas a serem apreendidos como os nós que realmente se constroem ao
formarem cadeia com a matéria significante. Pois essas cadeias não são de
sentido (sens, em francês), mas de gozo-sentido (jouis-sens, jouissance, j’ouis
sens são grafias possíveis para a palavra falada), a ser escrito como quiserem,
de conformidade com o equívoco que constitui a lei do significante” (LACAN,
2007, p. 515). Assim, não é mais o simbólico que resolve o sintoma por inteiro numa
análise de linguagem. Não é a via dos
diversos sentidos que Lacan promove aqui, pelo contrário, é fazer surgir no
sintoma o não senso radical de seu sentido, uma vez que “o significante se
distingue por não ter nenhuma significação” (LACAN, 2012, p. 217). Ora, se o
significante não tem nenhuma significação, o que é o sintoma, então? “Sintoma é
aquilo que vem do real” (LACAN, A Terceira), o que implica que “a linguagem não
é, ela mesma, uma mensagem, mas se sustenta apenas pela função do que chamei de
furo no real” (LACAN, 2007, p. 32). Esse furo é simplesmente a marca distintiva
que cada significante constitui: uma diferença pura, sem remeter a nenhuma
outra, ou seja, sem fazer sentido algum: um limbo entre significações. Tomemos
o que Freud falou sobre a significação antitética das palavras primitivas: uma
palavra que significa seu próprio contrário. Por exemplo, a palavra em inglês get. Ela significa tanto dar quanto receber; essa oposição entre significados é o próprio simbólico: OU
ela significa dar OU receber: um sentido de cada vez. Mas quando Lacan quer
privilegiar o real da linguagem ele não quer se situar numa oposição, pois a
linguagem é oposição, ou seja, um significante enquanto Outro significante.
Lacan quer sair fora do ‘que é que isso significa?’, ou ‘fale mais sobre isso’
(até porque isso é muito limitado na prática clínica), ou seja, quer sair da
implicação de que há sempre outro sentido para aquilo, para fazer algo com o
que se diz de maneira não opositiva, o que significa suspender radicalmente o
sentido do sintoma, e não buscar outro. Essa suspensão só se dá pela função do
real, que não privilegia Outros sentidos, mas o não-senso do próprio sentido,
que não passa de articulação, em nós, dos significantes. O real não está no
campo opositivo dos significantes, em que um significante sempre tem que
significar outro, mas na pura neutralidade da falta de sentido radical para o
significante – que a partir daí pode ter quantos sentidos se queiram, quantas
articulações forem possíveis. E Lacan é textual: “eu garanto que em uma frase
pode se fazer com que qualquer palavra venha a dizer qualquer sentido” (A Terceira).
Nisso, a psicanálise tem que se distanciar da linguística como o fundamento da
estrutura do inconsciente, que é essa neutralidade que só atestamos a partir do
não senso do simbólico. Se num primeiro momento Lacan diz que a estrutura é de
linguagem, fica claro que nesse segundo tempo Lacan fala que “a estrutura é
lógica” (LACAN, 2012, p. 38).
Em quê a lógica serve a um
psicanalista? Lacan se serve dela para sair do que ele próprio chamava de
anedotário. Uma anedota é uma conteudização conceitual; por exemplo, que o
complexo de castração se resume a o pai dizer que vai cortar a piroquinha da
criança fora, ou que o Complexo de Édipo é
“filho-quer-comer-mamãe/filho-quer-matar-papai”. Esses são conteúdos da lógica que rege o Inconsciente. Por outro lado, todo o
esforço que Lacan procura é entender como o inconsciente funciona em termos
puramente lógicos, que simplesmente exprimem o modo de funcionamento de
determinado mecanismo. O movimento de Lacan é de afastamento progressivo das
anedotas
para a relação puramente diferencial
da equação matemática, própria ao manejo científico do simbólico depurado do
imaginário. O discurso da ciência se vale da letra matemática como colocação em
ato daquilo que Jacques-Alain Miller nomeia de significante sem intenção, na
medida em que o elemento que se “literaliza” na fórmula científica por si só
não quer dizer nada a ninguém; ele somente vale como peça da engrenagem
mecânica que a fórmula matemática exibe (TEIXEIRA)
A psicanálise, a partir de Lacan,
começa a fazer um uso científico da lógica matemática para desconteudizar,
depurar simbolicamente os conceitos freudianos e dar-lhes maior rigor ao
reduzi-los a relações entre diferenças, expressas com letras, tal como uma
fórmula científica, para que o psicanalista não caia na tentação dos conteúdos
do inconsciente, suas casuísticas. A conceituação do inconsciente “não pode
reduzir-se à anedota, ao acidente” (LACAN, 2012, p. 40); o que interessa é o vazio da estrutura, e não conteúdos
anedóticos. Sem o uso vazio da lógica torna-se impossível continuar a trilhar
um caminho mais científico, ou seja, mais desconteudizado, para a psicanálise.
É como Lacan diz: “o discurso analítico não é um discurso científico, mas um
discurso cujo material a ciência nos fornece, o que é bem diferente” (2012, p.
136)
Ora, se desde a morte de Lacan,
muita coisa aconteceu no campo da ciência, da lógica, não é possível parar no
ponto em que Lacan nos deixou ao morrer. É sempre necessário continuar a
submeter a teoria psicanalítica à análise, quer dizer, perenemente exercitar o
trabalho de bem dizê-la; sem isso, a teoria lacaniana também se torna um novo
anedotário. Lacan bem sabia que suas próprias ideias poderiam cair nessa
armadilha, e até por isso seu ensino teve uma virada ao privilegiar a abordagem
lógica do real do inconsciente ao invés da sua suposta estrutura de linguagem,
que figurava nos primeiros anos de suas formulações. Assim, nosso esforço aqui
é o de prescindir de certas formulações fundamentais que Lacan trouxe para a
psicanálise com a condição de nos servirmos precisamente delas para a
realização de tal tarefa. Seguiremos Lacan por um caminho por onde ele não foi.
Então o questionamento que nos
trouxe até aqui por ora é o mesmo de Lacan: como a fala pode adoecer ou curar?
O que é a fala?
Vimos que um primeiro Lacan supôs
ser a linguagem a estrutura dos efeitos patológicos ou curativos da fala. Vimos
um segundo Lacan que tentou entender essa linguagem em termos puramente
lógicos, e não propriamente linguageiros, o que afastou a psicanálise de um
anedotário linguístico para a fundamentação do conceito de inconsciente. Tudo o
que for de acordo com a lógica do inconsciente serve para estruturá-lo, não
apenas a linguagem, pois também há o real. E, para Lacan esse real é lógico, ou
seja: mostra o limite da linguagem quanto ao que ela pode formular sobre si
mesma. Ela não pode formular o que não seja opositivo, e é nisso que reside o
núcleo do real.
Recordemos o que é simbólico e o
que é real. O simbólico é inteiramente redutível a um sistema opositivo, como
sim/não, presença/ausência, S1/S2, ou mesmo 0 e 1, como diz Lacan: “a
articulação significante é de tal forma sua hora e seu lugar que a verdade não
é nada senão essa articulação. (...) A verdade pode ser construída unicamente a
partir de 0 e 1. Isso só foi feito no início do século passado, em algum ponto
entre Boole e De Morgan, com o despontar da lógica matemática” (LACAN, 2012, p.
168). Já o real não é o simbólico, logo, ele não é opositivo. “Disse-lhes a
esse respeito [do real], que não há relação sexual. Mas isso é divagação,
porque faz parte do sim ou não. A
partir do momento em que digo não há já
é muito suspeito que não seja verdadeiramente um pedaço de real, posto que o
estigma do real é a de a nada se ligar” (LACAN, 2007, p. 120). “Todo objeto,
exceto o objeto que chamo de pequeno a, que
é um absoluto [ou seja, não tem oposição], concerne a uma relação. O aborrecido
é que haja a linguagem, e nela as relações se exprimem com epítetos. Os
epítetos, por sua vez, impelem ao sim ou não” (LACAN, 2007, p. 116-7 – grifo
meu), o que evidencia que qualquer significante que ocupe a neutralidade
absolutamente indiferente do real implica em uma oposição, uma polarização.
“Impelir ao sim ou não é impelir ao par” (ibid., p. 117), ou seja, ao par
significante, pois o significante é sempre Outro, de modo que é pura diferença,
pura polarização.
Então temos o simbólico como produção
de diferenças, oposições, e suas decantações imaginárias, e o real como uma
neutralidade para além, ou aquém, delas. No que ele não é opositivo, o real
inclui em si as oposições , mas em um indiscernimento no qual não se trata de uma conjunção dessas
oposições, como se elas fossem uma coisa só, duas ‘metades da laranja’, mas
pelo contrário, é indiscernimento, em que não se sabe distinguir uma oposição da
outra no mesmo significante. É da ordem do Um, mas não da fusão dos dois, e sim
na indiferença, na neutralidade entre eles: “A mim, o que me interessa é o
significante enquanto Um, e o único interesse do significante são os equívocos
que podem sair dele, da ordem do fundir
dois em Um e outras bobagens deste tipo” (LACAN, 2012, p. 201) “Isso
significa, no plano da verdade, que a verdade só pode falar ao se afirmar,
conforme a ocasião, como foi feito durante séculos, como a verdade dupla, mas nunca a verdade completa” (LACAN, 2012, p. 169).
Essa duplicidade da verdade, essa duplicidade do significante é que fundamenta
a lógica do inconsciente. Mas se a verdade é inteiramente redutível a 0 ou 1, e
o real não é opositivo, como conciliar real e simbólico, linguagem e lógica?
Já que Lacan se serve da ciência para
buscar o material discursivo da psicanálise, por quê não o faríamos?
Já vimos que Lacan não considera
a teoria da informação compatível com a descoberta freudiana por ela não se
prestar ao real equívoco da redundância. Para Lacan, a informação não se
equivoca, não ressoa. E é nisso que reside o real da linguagem, tal como ele
entende: a neutralidade bífida do equívoco significante.
No entanto, os desdobramentos da
lógica trazida pela mecânica quântica implicam em uma abstração da teoria
quântica para além da própria física. O que se introduziu com o nome de teoria
da informação quântica chacoalhou
diversos setores, da lógica até a cosmologia, isso sem mencionar a principal
aplicação dessa teoria: a computação. Com seu conceito de bit quântico,
ou q-bit, essa ciência reduziu todo o universo físico à lógica RSI, quer dizer,
ao que tudo o que há se resume: pura informação. Mas para compreender o q-bit é
necessário partir do bit clássico, não-quântico.
Um bit clássico representa “uma unidade
de informação” (OLIVEIRA, 2009, p. 93). E o que é uma informação? No Dicionário
etimológico, o vocábulo ‘informação’ é remetido ao vocábulo ‘forma’, lá sendo
descrito como ‘configuração’. O físico Leonard Susskind muito simplesmente o
descreve da seguinte maneira: “informação significa distinções entre as coisas”
(SUSSKIND, citado por MOYER, 2012, p. 37). Temos aí, com todas as letras, e a
seus pés, o simbólico. A distinção que um bit comporta é a própria distinção
entre Um e Outro significante, entre uma e outra diferença qualquer, mas que
comumente é expressa ou por 0 ou por 1. E o valor que será assumido por esse
bit (0 ou 1, presença ou ausência) constitui sua posição na significação, ou
seja, sua decantação imaginária em apenas uma das suas possibilidades
simbólicas.
Se Lacan buscava fundamentar a
psicanálise o mais matematicamente possível, ele não deveria ter ignorado, como
o fez, a teoria da informação, até porque “o bit é um conceito matemático, ou
seja, sua definição independe de podermos ou não representa-lo por objetos
reais” (OLIVEIRA, 2009, p. 94), em conformidade ao seu próprio movimento de
desconteudização do anedotário psicanalítico. Mas talvez isso se deva ao fato
de que o bit ainda é um conceito clássico, simbólico-imaginário, justamente por
ser opositivo. Um bit só pode funcionar classicamente, em estados ortogonais, ou como 0 ou como 1. E, com certeza, Lacan, na pegada de Freud, buscava
fundamentar a psicanálise pela neutralidade opositiva do real: “a alternativa ou...ou nunca se expressa nos sonhos”
(FREUD, 2006, p. 679)
Mas com o advento da física
quântica, o que acontece é que a informação passa a funcionar também de acordo
com leis quânticas; se o real quântico é precisamente o indiscernível a partir
de onde articulam as possibilidades simbólicas, fora de seu sistema de oposição,
a informação quântica se estrutura dessa mesmíssima maneira. De modo que um bit
quântico, ou q-bit, admite um real em que é impossível distinguir entre as suas
possibilidades simbólicas, nomeadamente 0 e 1, em que ambas se apresentam nessa
própria indiscernibilidade, do mesmo modo que a função de onda na física
quântica engloba todas as possibilidades de atualização, e da mesma forma com
que o real se apresenta na linguagem como exterior a seu sistema opositivo. O
q-bit é o que na teoria da informação implica o surgimento do real, ou seja, da
indistinção, do equívoco, no seio da própria informação. “Já afirmei que o “ou...ou” empregado no relato do sonho
deve ser traduzido por “e” (Ibid.),
diz Freud com todas as letras, se referindo à neutralidade do ‘elemento comum’
no inconsciente.
Aqui é necessário um pouco de
topologia para entender a relação do q-bit com o real da linguagem. Podemos
fazer um recurso à banda de Möebius para esclarecer um q-bit.
A topologia da banda de Möebius,
ou contrabanda, além de sua unilateralidade, de suas únicas borda e margem, tem
como principal atributo o fato de que sua orientação não é de forma alguma
unívoca, a exemplo de um cilindro; ela apresenta diferença ao longo de seu
percurso longitudinal. O que, ao início do trajeto, tinha uma orientação
dextrógira, ao passar no mesmo ponto, “do outro lado” da fita, será levógiro. E
é essencialmente o fato desse avessamento da orientação que define a própria
estrutura de contrabanda.
Matemáticos consideram que uma
superfície assim é não orientável, no que não se pode determinar o sentido de
seus pontos. Mas, tomando em Freud a Significação
Antitética das Palavras Primitivas, onde ele mostra que algo se representa
pelo seu oposto, e O Estranho, que em
alemão, das Unheimlich, significa
tanto ‘estranho’ como ‘familiar’, podemos, como o fez originalmente MD Magno,
fazer uma contribuição psicanalítica à topologia ao postularmos que os pontos
da contrabanda não são não-orientáveis, mas sim que ora
eles se orientam em um sentido, ora em outro, “sendo que, tomada uma das
orientações, a outra responde à primeira, como fundo, ou como eco, ou horizonte
de sua revirada” (MAGNO, 1986, p. 212), da mesma forma que um significante
depende do Outro, em uma remissão a ele, como horizonte de sua própria
significação.
O que é dizer que, na verdade, os
pontos de uma contrabanda não são precisamente bi-orientados, mas
anfi-orientados, isto é, podendo passar, como de fato passam, de um para o
outro lado (não lados da uniface, pois ela é a mesma, mas) dos dois cortados, ali oposta ou pelo menos
diferentemente orientados quando age a sexão que sexiona, que fende o ponto único originário o qual,
agora se torna dois, secados ou sexuados (MAGNO, 1986, p. 212).
Em suma, esse ponto, bífido, onde o significante revira, é um
ponto de equivocação entre as (duas) possíveis orientações na superfície, no
que ele não se orienta nem para um lado, nem para outro, sendo ele próprio um
além dessas orientações, (des)contínua a elas: um terceiro, que manifesta a neutralidade
com relação às oposições vigentes das orientações, permitindo a transiência, a
transa, senão mesmo transação, entre o Um e o Outro. Da mesma forma, o Unheimlich ora se orienta para o
familiar e ora para o estranho, passando por um equívoco de seu sentido, que
nada mais é do que seu decaimento instantâneo em neutralização, não-senso,
apenas como um som, mas que imediatamente recai em Outro sentido; em algum
lugar da superfície (lugar esse insituável, como o real, mas necessariamente
suponível), o significante se desloca de uma (o)posição a outra. Daí poder-se
propor que “o significante é, ao mesmo tempo, um-dois, um-bífido” (COUTINHO
JORGE, 2005, p. 105), um halo composto de dois alelos.
Eu quis dizer que todo impacto real
que resulta em significante se apresenta, necessariamente, como um revirão em
percurso sobre uma superfície unária, no oito interior,
no qual a posição tética de um sexo impõe a posição anti-tética, ainda que
sombreada, do outro sexo (MAGNO, 1987, p. 146).
Assim, o que acontece com um
q-bit é que a oposição não existe nesse ponto bífido, onde há uma indistinção
entre 0 e 1. No entanto, ambos se reduzem a esse terceiro, que é neutro, no
qual ambas as possibilidades simbólicas de discernimento estão reduzidas a esse
Um real, indiscernível, que é uma superposição
significante, ou, mais especificamente, uma superposição de estados lógicos
das distinções, dos bits. Não é possível saber simbolicamente o que ocorre
nessa superposição, o modo como ambas as distinções participam desse mesmo
real, mas essa bifididade significante ocorre segundo uma lógica quântica. É
como Freud, passando de “ou...ou” a “e”.
“O sujeito participa do real, justamente,
por ser aparentemente impossível. Ou, melhor dizendo, se tivesse que empregar
uma figura que não surge aí por acaso, diria que ocorre com ele o que ocorre
com o elétron, no ponto em que este se propõe a nós na junção da teoria
ondulatória com a teoria corpuscular. Somos forçados a admitir que é
precisamente como sendo o mesmo que
esse elétron passa ao mesmo tempo por dois buracos distantes” (LACAN,,
1992, p. 172 - grifo meu).
“O real não é o mundo. Não há nenhuma
esperança de atingir o real pela representação. Não vou começar a arguir aqui a
teoria dos quanta, da onda, do corpúsculo. Seria melhor de qualquer forma que
vocês estivessem por dentro, mesmo que isso não lhes interesse” (LACAN, A
Terceira).
De modo que, se um bit é binário, ou seja, cujos valores se
resumem a duas possibilidades ortogonalmente alternadas, quer dizer, a uma
oposição, clássica como tal, um q-bit se define por ser bífido, no qual, além das duas possibilidades, representadas na
oposição 0 ou 1, há uma terceira possibilidade, que é o indiscernível para além
da oposição binária: ne-uter
significa em latim ‘nem um, nem outro’ - neutro. No nível da informação
quântica, os processos se dão nessa lógica real, de modo que o processamento fundamental
da informação no inconsciente é quântico. Assim, as propriedades dos elementos
inconscientes no psiquismo, por exemplo, oscilam entre serem binários, ou
clássicos (o que acontece na maioria do tempo), e bífidos, ou quânticos
(segundo a lógica do real que a psicanálise nos traz), tal como a matéria
física.
Essa concepção dos elementos do
inconsciente como q-bits se mostra ainda mais fecunda quando analisamos o
processo denominado por Freud de elaboração
onírica, ou seja, o trabalho de ciframento
do sonho. Ora, o que é cifrar? É, como Freud diz, transformar o conteúdo
latente do sonho em conteúdo manifesto. Como isso acontece? Das mais variadas
formas: "os pensamentos oníricos a que chegamos por meio da análise
revelam-se como um complexo psíquico da mais intrincada estrutura possível. Suas
partes mantêm entre si as mais variadas relações lógicas, representam primeiros
planos e panos de fundo, condições, digressões e ilustrações, sequências de
prova e contra-argumentações. Não falta a esse material nenhuma das
características que nos são familiares por nosso pensamento de vigília, Ora,
quando tudo isso tem de ser transformado num sonho, o material psíquico é
submetido a uma pressão que o condensa enormemente a uma fragmentação interna e
a um deslocamento que criam, por assim dizer, novas superfícies". (FREUD,
2006, p. 678). Essas superfícies, essas maneiras de cifrar o conteúdo latente
em manifesto são a essência do que a teoria da informação chama de
criptografia; se, num primeiro momento de Lacan, o sintoma era uma mensagem que
devia chegar a seu próprio emissor, de maneira inversa, como ele mesmo dizia,
temos a transmissão da informação
(dita transferência em termos
psicanalíticos) para uma redundância, que se constitui como redundância dessa
informação, ou seja, como sintoma
dessa informação. É só ver que o sonho é um rébus, ou seja, a codificação da
informação em redundância; essa última nada mais é do que a regra que permite o
próprio código ser decifrado. Ou seja, o sintoma, enquanto redundância, carrega
em si mesmo a chave de sua própria decifração, de acordo com o modo pelo qual
se apresenta, se articula: “Elipse e pleonasmo, hipérbato ou silepse, regressão
repetição, aposição, são esses os deslocamentos sintáticos, e metáforas,
catacrese, autonomásia, alegoria, metonímia, e sinédoque, as condensações
semânticas em que Freud nos ensina a ler as intenções ostentatórias, ou
demonstrativas, dissimuladoras ou persuasivas, retaliadoras ou sedutoras com
que o sujeito modula seu discurso onírico”. (LACAN, 1996, p. 269) A redundância
são precisamente esses métodos, na estrutura do inconsciente, que permitem a
transferência da informação do emissor para o receptor (que é o próprio emissor,
como diz Lacan); ela é também a chave que destrava o código, quer dizer, o que faz
ressoar.
“A ideia de criptografia é muito
simples. Suponha que se queira enviar uma mensagem secreta de um ponto a outro.
Digamos que seja a palavra COMPUTADOR. Antes, porém, é preciso inventar uma
regra para criptografar a mensagem. Uma regra muito simples, que teria sido
usada elo imperador romano Júlio César, consiste em substituir cada letra da
mensagem pela terceira letra subsequente. Com essa regra, a mensagem COMPUTADOR
se torna FRPZXDGRU. Uma regra um pouco mais complicada que essa: substituir as
letras nas posições pares (O, P, T, D, R) pela terceira letra subsequente, e
aquelas nas posições ímpares (C, M, U, A, O) pela terceira letra precedente.
Existem infinitas possibilidades! Mas seja qual for a regra, o receptor da
mensagem deverá ser capaz de realizar a operação inversa: caso contrário, não
poderá conhecer a informação que se quer transmitir. A regra para criptografar
e decodificar é chamada chave criptográfica” (OLIVEIRA, p. 132). Agora vejam a
Interpretação dos Sonhos de Freud: “a transformação dos pensamentos oníricos
latentes no conteúdo manifesto do sonho merece toda a nossa atenção, visto ser
esse o primeiro exemplo que nos é conhecido de transposição do material
psíquico de um modo de expressão para outro, de um modo de expressão que nos é
inteiramente inteligível para outro que só podemos chegar a entender com a ajuda
de orientação e esforço” (FREUD, 2006, p. 663). Prossegue: “o próprio material
dos pensamentos oníricos reunido para formar a situação do sonho deve
adaptar-se, é claro, para esse fim. Deve haver um ou mais elementos comuns em todos os componentes” (FREUD, 2006, p. 668).
“Grande parte do trabalho do sonho consiste na criação desse tipo de
pensamentos intermediários, que são amiúde altamente engenhosos, embora
frequentemente pareçam forçados; estes criam então um vínculo entre a imagem
composta no conteúdo manifesto do sonho e os pensamentos oníricos, que são
diversos em sua forma e essência e foram determinados pelos fatores motivadores
do sonho” (Ibid., p. 670) “o elemento comum tem que ser descoberto, na maioria
das vezes, através da análise. O conteúdo do sonho simplesmente afirma, por
assim dizer: ’todas estas coisas têm em comum o elemento x’. A dissecação dessas formações mistas por meio da análise é
frequentemente o caminho mais curto para descobrir o sentido de um sonho” (Ibid.,
p. 671). Esse elemento comum é precisamente a chave criptográfica, que permite
ao código tanto ser criado quanto decifrado. A chave criptográfica é justamente
um elemento comum que permite articular dois outros; mas esse elemento não é
nem um, nem outro. Etimologicamente falando, ela é neutra: é a própria lógica
real que permite articulações simbólicas (tal como Lacan disse que o real é que
comanda a função da significância). Para dizer o termo, uma chave criptográfica
tem a propriedade quântica do real, qual seja, a de ser bífida. É isso que faz
ressoar o sintoma. E é isso que faz a informação se sintomatizar: a informação
(o conteúdo latente – digamos, 0) entra em estado de superposição quântica, ou
seja, bífida, e recai no seu Outro lado (conteúdo manifesto – digamos, 1). Mas
a chave criptográfica não é 0 nem 1, é neutra, como o real do significante Um,
quer dizer, do q-bit. A chave criptográfica é bem o que Lacan fala sobre a verdade
dupla, o equívoco significante.
Dito isso, fica claro que Lacan
poderia ter usado o recurso da teoria da informação quântica, uma vez que a
razão quântica de bifididade é o que fundamenta o real do inconsciente
freudiano. Até porque essa teoria é bem menos anedótica de que “L’inconscient est structuré comme um langage”.
Na verdade, como diz MD Magno “L’Inconscient
est strucuré comme on l’engage”: o mais abstrato e desconteudizado
possível.
Então, para definitivamente
conciliarmos a psicanálise e a teoria da informação, resta entender o
materialismo ao qual Lacan se refere quando trata do significante.
Quando se fala em matéria em Física,
atualmente a noção que se tem dela é simplesmente que ela é informação, assim
como Susskind nos diz que é distinção entre as coisas: uma partícula de outra
partícula, por exemplo. Slavoj Zizek fala da importância de se considerar a
diferenciação como um puro formalismo, mas não como um idealismo em oposição a
um materialismo físico. Não se trata de diferença entre físico e psíquico; esse
‘materialismo puramente formal’ é o
próprio materialismo, ou seja, materialismo, para Zizek, é “materialismo da
diferença. O traço mínimo do materialismo é a existência de diferença pura. Há
um rombo, um antagonismo inerente à ordem do Um. O efeito primordial é a pura
auto-diferença” (ZIZEK), que nada mais é do que a neutralidade da bifididade do
q-bit. “Estou sendo muito preciso aqui. Auto-diferença,
e não algum tipo de polaridade mitológica dos opostos: feminino/masculino, luz/escuridão,
yin e yang, etc. (...) A multiplicidade [leia-se: oposição] já é um efeito da
inconsistência do Um [leia-se: real] consigo mesmo, do fato de que o Um não
pode coincidir consigo mesmo [bifididade]. Ou, para colocar de uma maneira
ligeiramente diferente: não temos nenhuma polaridade primordial [no real], como
masculino/feminino, luz/escuridão” (ZIZEK). Assim, esse materialismo formal
indiscrimina se trata-se de algo físico ou psíquico; onde quer que as diferenças
compareçam, há matéria. Por isso, é legítimo falar em matéria significante.
De modo que a materialidade da
fala é o próprio falatório da matéria; a função da fala sendo a função da
própria matéria: diferenciar o real, campo neutro da linguagem em que a matéria
(fala) pode passar a antimatéria (dizer) através da bifididade quântica de seu
próprio campo. Diremos então que a psicanálise é a formalização, cada vez menos
“aned’otária” da “Função e Campo da Matéria e do Quântico”, o que é outra
maneira de dizer “a Instância do Bit no Inconsciente ou a Razão desde o Quantum”,
pra ficar com uma homenagem ao mestre Lacan: servindo-nos dele para dispensá-lo
– ir além dele através dele...
Afinal de contas, se uma partícula, física, pode passar por dois
lugares ao mesmo tempo, uma palavra também pode.
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