terça-feira, 26 de novembro de 2013

Sou Outro Sou

Ouvindo o disco de John Zorn, "Seis Litanias para Heliogabalus", realizei algo. 

Da importância de não deixar nenhum de nossos lados ser extinto, devido a nossos princípios, morais e éticas. Prego a liberdade, porque gosto dela, porque gozo dela; mas também gosto e gozo de ser um prisioneiro de várias situações na vida, o que me faz ser o que sou - e gosto do que sou, seja Assim ou Assado. Tão importante quanto ser livre é ser prisioneiro de si e prender-se a si mesmo; sou meu próprio carcereiro. Só houvesse a liberdade eu não seria livre, pois também quero me libertar da liberdade. Só posso ser livre com a condição de estar preso. Por isso prezo minha prisão, preso meu próprio desprezo, onde estou prezo e do qual me quero livre, pois sem o corpo eu não saberia o que é o espírito. 

O disco de Zorn é uma ladainha (litania) religiosa para o imperador romano Marcus Aurelius Antoninus Augustus, que, não sendo um governante laico, levou sua crença na deidade Heliogabalus para o poder e se deu mal por isso; ganhou muitos inimigos por querer forçar o deus e seus costumes goela abaixo do povo. Tantos que chegou ao ponto de surgir um mito de que ele queria matar vários deles de uma vez e de maneira inusitada: sufocando-os com rosas que ele teria feito cair sobre eles a partir de um 'fundo falso' no teto. Inclusive um quadro já foi pintado retratando o episódio:


De modo que coisas das mais delicadas - as rosas - seriam ao mesmo tempo aquilo que causaria mais horror - a morte. Esse mito mostra que Heliogabalus superpôs em um mesmo ato o horror e a beleza. Ora, se considerarmos o disco de Zorn como um conceito, veremos que ele tenta fazer essa mesma sobreposição: utilizar da música, que produz o mais sublime da espécie humana, para que ela venha a ser o veículo de um horror, mostrando com precisão cirúrgica do que a espécie humana é capaz: usar o Bem para fazer o Mal e vice-versa, até o ponto em que é impossível saber onde está o limite entre um e outro, de modo que há que se admitir que ambos participam da 'mesma' identidade subjacente (sub-jectum) a eles. E nunca se sabe quando o pior de alguém trará o seu melhor; e nunca se sabe de quantos defeitos é feita uma qualidade; de quantos certos é feito um errado; com quantos bens se faz um mal... Acolho meu mal - pra fazer o bem: não me esqueço dele, reconheço-o como eu mesmo, e não como um estrangeiro. Sou (nor)mal - por isso, posso ser (tão)bem. Sou (o) além, como um Übermensch gödeliano: se sou bem, logo sou mal; se sou mal, logo sou bem - sou Outro sou





sábado, 23 de novembro de 2013

A função de onda (Ψ) da interpretação psicanalítica

“A que silêncio deve agora obrigar-se o analista para evidenciar, acima desse pântano, o dedo erguido de São João de Leonardo, para que a interpretação reencontre o horizonte desabitado do ser em que se deve desdobrar sua virtude alusiva?”

(Lacan, “A direção do tratamento”)


A teoria da interpretação psicanalítica, com Lacan, passa a ser concebida a partir dos três registros que ele propõe para se dar conta dos efeitos do inconsciente, nomeadamente o imaginário, o simbólico e o real.

Num primeiro momento de seu ensino, Lacan procura mostrar aos analistas, especialmente aos pós-freudianos, que a interpretação não deve atuar no registro imaginário, que é o lugar-tenente do sentido na estrutura do inconsciente. “Isso para nós não é novidade, mas na época era uma grande novidade porque até então o analista ouvia o paciente procurando sempre o que aquilo queria dizer, isto é, o sentido. Os kleinianos ainda hoje só trabalham com o sentido e a interpretação consiste em estabelecer o sentido para o paciente”, diz Marcio Peter, psicanalista brasileiro. Na verdade, não são apenas os kleinianos (ou seja, aqueles que operam a partir do ensino de Melanie Klein) que se valem desse manejo. Outro dia, escutei uma pessoa me contando sua passagem por um psiquiatra, oito anos atrás, devido a um sintoma obsessivo clássico: essa pessoa tinha que tocar nas superfícies dos lugares onde se encontrava (tal como todas as bordas de mesa, no chão, etc.), para afastar os pensamentos de que se ele não o fizesse, sua mãe morreria. A psiquiatra, ao ‘ouvir’ o relato, já começou com as ‘interpretoses’ (categoria nosológica aplicável a ‘psicanalistas’ que operam com o imaginário na interpretação): “você está sofrendo de um Transtorno Obsessivo-Compulsivo porque você deseja a morte de sua mãe”. A pessoa me contou que se sentiu muito frustrado quando notou essa postura da psiquiatra, pois ela já tinha uma resposta pronta para seu problema e “nem me escutou” (palavras dele). À época do tratamento ele contava 12 anos, e não suportou a situação de não ser ouvido, de sofrer interpretoses, por isso não ficou muito tempo e logo parou de frequentar a psiquiatra. “Qual é a função própria da interpretação kleiniana, que se apresenta como uma intrusão, de coisa posta sobre o sujeito?” (LACAN, 1986, p. 90 – grifo nosso). Respondemos: a função imaginária. Fica claro assim o que Lacan tentava alertar aos psicanalistas da época: não se trata de fornecer sentido para o que se escuta do analisando – isso não é senão interpretose. Mas do que é que se trata, então? Como deve proceder uma interpretação?

Nessa época de seu primeiro ensino, Lacan queria mostrar a função simbólica da interpretação, em oposição à sua função imaginária. Como para Lacan o inconsciente é estruturado como uma linguagem, não se trata de intervir fornecendo o sentido para o paciente, mas sim, de intervir nas palavras que ele profere (o simbólico) para que ele descubra por si só o sentido daquilo que diz no que ele mesmo diz. Uma interpretação simbólica daria a chance d’a pessoa poder SE perguntar pelo sentido do seu sintoma. Assim, o analista interviria, perguntando, por exemplo, algo muito simples, como “por quê você sonhou isso?”, pedindo assim ao paciente que faça o trabalho de associação para se chegar ao “conteúdo latente” do sonho, e não dando isso para ele prêt-à-porter. A interpretação simbólica ainda assim busca o sentido, mas a partir dos elementos fornecidos pela fala do paciente, que ainda tem que ter o trabalho de associar (e o analista direciona o tratamento nesse aspecto) os elementos para se chegar ao sentido daquela formação do inconsciente. Interpretar aqui ainda está articulado com a compreensão de um sentido para o sintoma, mas essa compreensão parte do próprio paciente – a partir das intervenções do analista que o guiam nessa direção.

Mas ao longo de seu ensino Lacan ainda dá outra virada sobre sua teoria da interpretação. Ora, como Freud diz, todo sonho tem um umbigo, um ponto que nunca será interpretado:

“Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. Os pensamentos oníricos a que somos levados pela interpretação não podem, pela natureza das coisas, ter um fim definido; estão fadados a ramificar-se em todas as direções dentro da intricada rede de nosso mundo do pensamento” (FREUD, Vol. V, Cap. VII).

De modo que esperar uma formalização lógica da interpretação a partir da descoberta do sentido do sintoma não condiz com o que Freud nos mostra como resto indecifrável de um sonho, ou de uma formação do inconsciente qualquer. Lacan tentou realizar essa formalização a partir da estrutura da linguagem; porém, o inconsciente não é, ele todo, linguagem; “a linguagem é imperfeita” (LACAN, Sem. 25, 10/01/1978). E, na verdade, o desafio maior aos analistas é precisamente investigar como intervir no inconsciente por algum outro caminho que não seja unicamente o da linguagem, que não seja unicamente o do sentido que ela desvelaria no trabalho analítico. Pois o inconsciente, não é ele próprio todo interpretável – ele não é todo sentido. É a partir daí que Lacan começa a privilegiar esse ponto não interpretável do inconsciente, chamado de Real, para descobrir como o analista pode operar a partir dele. Isso porque “importa não o que já está lá [no inconsciente, como conteúdo latente], o que carrega efeitos, mas, sim, como um efeito se produz nele de modo aleatório” (SANTIAGO, p. 44 – grifo meu). Isso significa que não importa tanto o conteúdo recalcado, o sentido que a intervenção simbólica faz o paciente descobrir. Até porque descobrir isso não tem plenos efeitos de cura – a repetição retorna mesmo após tais descobertas. Assim, o papel da psicanálise é descobrir como interpretar sem contar exclusivamente com o simbólico – que, como tal, é sempre falho, furado, sempre passível de outra interpretação. É como diz Jacques-Alain Miller: “nenhuma interpretação está, para falar com propriedade, terminada” (MILLER, 2011, p. 44). Esse furo nuclear da interpretação simbólica é o que faz Lacan mudar de orientação no que concerne o interpretar analítico. “A interpretação não é propor outro sentido [função imaginária] ou girar o sentido manifesto para fazer surgir um sentido escondido [função simbólica]. A interpretação visa desfazer a articulação do destino [a ‘sobredeterminação’ freudiana] para mirar o fora-de-sentido [função real], o que quer dizer que a interpretação é uma operação de desarticulação” (MILLER, 2011, p. 82). Ora, isso se harmoniza mais com o fato do umbigo do sonho, ou seja, com o Real, que, como tal, em sua definição mesma, é aquilo que exclui o sentido, é o próprio não-senso. Assim, o paradigma da interpretação na psicanálise passa do imaginário ao simbólico, mas finalmente desemboca no real. Como o real não tem sentido, não se trata mais de buscar o sentido na interpretação: “seu esforço [de Lacan] é o de abrir uma prática pós-joyceana da psicanálise, aquela que não recorre ao sentido para resolver o enigma do gozo” (Ibid., p. 87). Se a interpretação não é mais uma função do sentido, não se trata de descobrir nada no inconsciente, ou de ‘ajuizar do sentido do pensamento’. Trata-se de fazer o inconsciente produzir algo, um significante novo, diria Lacan – que não tenha espécie algum de sentido (LACAN, Sem. 24, 17/05/77). De modo que a ‘interpretação’ precisa intervir no Real para que algo novo seja produzido a partir de Lá – algo que não tenha sentido, algo que não se compreende. Por isso, Lacan solta uma frase que queremos analisar aqui com cuidado: “uma interpretação não é feita para ser compreendida; é feita para produzir ondas” (LACAN, citado por COUTINHO JORGE, p. 213). Lacan está dizendo duas coisas aqui. Uma, é que se uma interpretação não é feita para ser compreendida, é porque ela não se orienta mais simbólico-imaginariamente, não se orienta pelo sentido do que se diz – seja ele doado ou descoberto; sua orientação é para aquilo que não pode ser compreendido, nem dito, que é justamente o real. Outra, é que se a interpretação é feita para produzir ondas, há uma estreita relação entre o real que ela visa e as ondas que ela produz. De modo que Lacan está dizendo de um caráter real das ondas ou de um caráter ondulatório do real na interpretação.

Como de costume, Lacan não ‘explica’ o que quer dizer com tal frase, o que quer dizer com ‘ondas’, deixando as descobertas ao encargo de seu leitor. Era parte de seu estilo, e sobre isso ele se justifica: “…a linguagem é verdadeiramente o que só pode avançar torcendo-se e enrolando-se, contornando-se de uma maneira da qual afinal de contas não posso dizer que não dou aqui o exemplo. Não se deve acreditar que, ao aceitar o desafio lançado por ela, ao marcar em tudo que nos concerne até que ponto nós dependemos dela, não se deve acreditar que faço isso assim de bom grado. Acharia melhor que isso fosse menos tortuoso” (A Terceira). Essas torções (topológicas) que ele produz em seu estilo, nos seus textos, são exemplos dessas ondulações às quais ele se refere quando fala da interpretação. “Alguma coisa que é característica de meus Escritos é que não os escrevi para que se os compreendesse, eu os escrevi para que se os lesse” (LACAN, citado por COUTINHO JORGE) – aforismo esse que se relaciona diretamente com o da interpretação. Isso exige que cada leitor se coloque como tal naquilo que lê – pois Lacan se faz tortuoso –, que produza um entendimento próprio, e não apenas porque Lacan o diz – em suma, que o leitor, ao ler Lacan, interprete Lacan, cujos seminários eram sua própria análise. De modo que nossa intenção aqui, seguindo Lacan por um caminho por onde ele não foi – e assim interpretando-o –, é investigarmos que articulações podemos traçar entre o real, como o umbigo do inconsciente, impossível de ser interpretado, mas também como aquilo que não se compreende numa interpretação, e as ondas que uma interpretação que toca esse real produz. Para tal, recorreremos a um campo que nos traz de bandeja essa articulação: a física quântica.

O que há de fundamental no campo quântico é uma distinção entre duas entidades físicas, a saber, a partícula e a onda. Uma partícula é um ponto – indivisível – no espaço, onde há matéria, ou energia. Podemos pensar em uma bola bem pequena que segue uma trajetória pelo espaço. Já uma onda é uma perturbação que se propaga em um meio, tal como a água (‘como uma onda no mar’), e que se espalha pelo espaço (PESSOA JR., 2003, p. 2). Essa perturbação que se propaga é a energia, que é o próprio movimento das partículas do meio (no nosso exemplo, a água). De modo que uma onda, por ser espalhada, não tem uma trajetória definível (pois segue várias ao mesmo tempo), nem posição determinada (ela está espalhada pelo espaço, ao contrário da partícula que se situa bem distintivamente).

Pois bem, o que a física quântica revela é que os objetos que ela descreve possuem as duas propriedades! Ora, isso é uma contradição lógica, pois afirma-se que a mesma coisa (um objeto quântico) segue uma trajetória (no caso da partícula) e não segue (no caso da onda, porque a trajetória é espalhada, logo não é trajetória). Essa foi a primeira surpresa, demonstrada por um experimento que descreveremos dentro em pouco.

Antes, é preciso detalhar mais as características de uma onda. Como se sabe, uma onda é feita de oscilações, de perturbações. As oscilações são movimentos de ascendência e descendência, quer dizer, algo que sobe e desce ao longo de uma direção. A amplitude é a distância entre um pico e a linha mediana da onda (ver ilustração). Ora, se duas ondas ocupam o mesmo lugar no espaço e seus picos e vales estão alinhados dizemos que as ondas estão em fase e a onda resultante dessa soma terá o dobro da amplitude (é só somar as duas amplitudes). Já se as ondas estiverem fora de fase, ou seja, se o pico de uma coincidir com o vale da outra, as ondas se destroem, anulando-se. De modo que essa interferência é uma propriedade típica das ondas, não das partículas. Sabemos que a luz tem características ondulatórias, pois já foram verificados padrões de interferência nelas (tanto construtivos, quando as ondas estão em fase, quanto destrutivos).



Isso nos ajudará a explicar outro fenômeno, que é o de divisão de ondas. Se jogarmos um feixe de laser (luz) em um espelho semi-refletor (que reflete metade da luz e deixa a outra metade passar) a onda se divide, e seus componentes ficam fora de fase. É possível recombinar os feixes que se originaram da divisão com um aparelho denominado interferômetro de Mach-Zehnder. São os experimentos com esse aparelho que deram origem às questões profundas que a física quântica trouxe para o mundo.

No entanto, a luz também manifesta características corpusculares, de partículas; se reduzirmos sua intensidade suficientemente, veremos que a detecção da luz se dá pontualmente, ou seja, a luz incide no aparelho detector como pontos, partículas, denominadas fótons. O efeito fotoelétrico, que rendeu a Einstein o prêmio Nobel, é a prova da propriedade particular da luz. Assim, aqui mais uma vez o paradoxo quântico se manifesta na contradição lógica da dualidade onda-partícula.

Sem mais delongas, então, analisemos o interferômetro para compreender melhor a origem desses paradoxos.

O interferômetro é um aparelho composto de um espelho semi-refletor (S1), que divide o feixe de luz (aqui considerada em seu aspecto ondulatório) em duas partes de igual amplitude. Sabemos que numa divisão assim, as ondas resultantes saem de fase; a onda refletida sofre um deslocamento de ¼ em sua amplitude. Em seguida, cada um dos feixes é refletido por um espelho (totalmente refletor), E1, E2, de modo a se cruzarem novamente em um espelho semi-refletor (S2), após o qual são colocados dois aparelhos de detecção (D1, D2), um para cada feixe (figura).



Como cada componente do feixe de luz original incide em S2, era de se esperar que sua medição pelo detector mostrasse 50% de cada componente (pois que o espelho S2 divide o feixe). Mas não é o que acontece. O que se observa é a medição de feixe em apenas um dos detectores (D1), e o valor dessa medição é o mesmo valor do feixe original, antes de ter passado por S1!

Isso se explica pelo seguinte: o feixe que seguiu a trajetória A, ao incidir em S2, se dividiu em dois componentes, um dos quais foi refletido para D1, e o outro seguiu seu caminho rumo a D2. O feixe que seguiu o caminho B também é refletido em S2 rumo a D2 e seu outro componente segue seu caminho em direção a D1. Como a cada reflexão há uma alteração nas fases das ondas, o que ocorre é que ao incidir em S2 os componentes dos feixes A e B que vão em direção a D2 se interferem destrutivamente, se cancelando, por estarem fora de fase; e os componentes que seguem para D1 se somam, por estarem em fase. De modo que é perfeitamente lógico que um dos detectores meça a superposição construtiva e ou outro não, pois os feixes se anularam de S2 a D2 devido ao padrão destrutivo de interferência das ondas.

Esse é um experimento arranjado para ondas, com comportamento clássico, ainda não é nada quântico. Para tornar o experimento quântico é preciso reduzir a intensidade do feixe de luz até que apenas um fóton incida em S1 por vez. Assim, o que ocorre é que uma partícula (um fóton) incide em S1 e lá pode ser ou refletida ou seguir seu rumo, e passa por S2 (também podendo ser refletida ou seguir o rumo) de modo a incidir ou em D1 ou em D2, com 50% de probabilidade para cada incidência. No entanto, o experimento mais uma vez mostra que apenas o detector D1 mede a presença da partícula, com o mesmo comportamento de um experimento ondulatório! Ou seja, é como se a partícula tivesse viajado pelos dois caminhos, ‘interferido’ consigo mesmo em S2, de modo a criar um padrão de interferência destrutivo entre S2 e D2 e um construtivo entre S2 e D1! Como é que uma partícula, que tem posição e trajetória definidas, pode ‘se espalhar’, como uma onda, e interferir consigo mesmo? Como é possível a uma partícula exibir propriedades de onda?

A grande questão é a seguinte: por qual caminho o fóton rumou após passar por S1, antes de incidir em S2? A ou B? Os problemas começam a surgir.

Suponha que o fóton se encontre em A. Isso pode ser realizado experimentalmente com o próprio interferômetro ao se retirar o S1, de modo que o feixe incide em E1 e é refletido rumo a S2. Lá o feixe se divide e há uma probabilidade de 50% de incidência em D1 e 50% em D2, ou seja, não ocorreu o padrão de interferência. Isso é um comportamento clássico, não-quântico: ou ele incidirá em D1, ou em D2. O mesmo ocorre se arranjarmos o experimento de modo que o fóton percorra o caminho B.

No entanto, quanto ao interferômetro completo (com o espelho em S1), veja só que situação: “se o fóton estivesse ou em A, ou em B, continuaríamos a ter uma probabilidade de 50% de detectar o fóton em D2. Isso segue da própria definição do conectivo lógico ‘ou’: se em A é 50%, e em B é 50%, então ‘A ou B’ tem que ser 50%. No entanto, vimos que no experimento [interferômetro completo], para um único fóton, a probabilidade de o fóton atingir D2 não é 50%, é 0%! Logo, é falsa a afirmação de que o fóton está OU em A OU em B!” (PESSOA JR., p. 12, grifo meu). Essa situação é explicitamente paradoxal: o mesmo objeto passou por dois lugares diferentes ao mesmo tempo? Por onde ele foi? O que aconteceu com o fóton no intervalo entre as medições? Ele era partícula? Ou era onda? Essa é a essência da dualidade onda-partícula; assim, a teoria quântica estuda as propriedades ondulatórias que ela atribui às partículas.

Para falarmos mais rigorosamente sobre a dualidade, enunciemos o seguinte: um fenômeno quântico é um conjunto composto pelo objeto quântico e pelo aparelho de medição, que, dependendo de seu arranjo, determina se o objeto terá aspecto corpuscular ou ondulatório. Por isso, o aparelho de medição deve ser incluído no conceito de fenômeno quântico: nos dois tipos de experimentos com o interferômetro, um teve aspecto corpuscular e outro teve aspecto quântico. Daí que um fenômeno é corpuscular se, após uma medição, segundo certo arranjo do aparelho, para ele puder ser discernida uma trajetória, quer dizer, se for possível (mesmo que em apenas em princípio, sem de fato ocorrer uma medição) saber se ele passou por um ou por outro dos caminhos possíveis. E será um fenômeno ondulatório se uma trajetória não for distinguida, devido a uma superposição de suas possibilidades, assim como ocorre com o fenômeno de interferência de ondas; a oposição entre os caminhos, representada pelo conectivo lógico ‘ou’, não se aplica nesse caso. Não se trata aqui de ter passado por um ou outro caminho. Mas como poderia ter o objeto passado por um e por outro caminho?

Apesar de todas essas perguntas, há um formalismo mínimo, uma equação, produzida por Erwin Schrödinger, que permite lidar com todas essas probabilidades, com todas essas incertezas, de maneira que funciona o suficiente para construir computadores, televisões, etc. E muitos físicos dizem que é só isso que importa, tanto faz se passou ou não passou por um ou outro lado: nós temos as equações e pronto! O problema é que eles se esquecem que foi a partir de respostas a perguntas de cunho interpretativo, como essas, que muitos passos foram dados até que se chegasse a tais equações preciosas, além da proposição de experimentos que confirmam ou refutam partes principais da teoria. De modo que investigar o campo não é supérfluo, e todos os grandes nomes da Física se detiveram nessas questões, procurando respostas, tentando simbolizar esse real que escapa à nossa compreensão. E nada garante que, ao ignorar a interpretabilidade da teoria, os físicos pragmáticos não estejam, justamente, interpretando-a.

De modo que um dos pontos de maior interesse aqui é tentar entender o que o dualismo onda-partícula nos trouxe. Ele pode ser expresso em um dos princípios fundamentais da Teoria quântica, a saber, o princípio de superposição. Como já vimos na descrição das propriedades ondulatórias, a soma de duas ou mais ondas é uma superposição de seus estados. Essas superposições podem ser de dois tipos: construtivas ou destrutivas, de acordo com a coincidência ou não de suas fases.

Outra definição propedêutica é a de estado do sistema quântico. No experimento do interferômetro, o estado é definido como o valor medido pelo detector (autovalor) quando a partícula tiver passado ou pelo caminho A ou pelo caminho B, ou seja, é a posição da partícula. Esses dois estados são ditos ortogonais, porque se a trajetória A for medida, a trajetória B não será: elas são mutuamente exclusivas.

No entanto, o princípio quântico de superposição enuncia que se um sistema quântico (como uma partícula que passa pelo interferômetro) tiver dois ou mais estados possíveis, a soma desses estados é também um estado possível para o sistema (PESSOA JR., p. 23). Assim, no interferômetro, antes da medição efetiva do estado da partícula, há a possibilidade de que seu estado inclua as duas possibilidades de trajetória. Mas o que isso quer dizer? A partícula está nos dois lugares ao mesmo tempo? As equações não respondem a essas perguntas, nem se interessam (e alguns intérpretes da teoria as imitam).

A dificuldade que se impõe então é: quando o estado quântico está em superposição – ou seja, ele ainda não foi medido por um instrumento de detecção – trata-se de uma onda ou uma partícula? E, mais ainda: essa superposição é real, quer dizer, própria do objeto físico, ou reflete apenas a ignorância do observador e seu aparelho de medição, que não conseguem medir com precisão a posição em que a partícula se encontra? Outra pergunta: no estado superposto, a partícula tem realidade física? Há realmente um objeto físico nesse momento? Se não, o que é que há?

Esse é o núcleo fundamental da função de onda na física quântica: ela não comporta as distinções entre os estados (as trajetórias) da partícula; ela é o próprio indiscernível, a própria indistinção da matéria. O que é dizer que não é possível saber se há alguma partícula ali, atravessando o interferômetro. Em outras palavras, é impossível saber o que ocorre com uma partícula em seu estado de função de onda: não sabemos sequer se é partícula. É um umbigo na física quântica, tal como Freud mostra o umbigo do sonho: lá, não temos como saber o que se passa, pois a posição para a partícula se ramifica para todas as possibilidades de trajetórias disponíveis. No entanto, é de lá que as partículas surgem como tais somente após passarem pelo interferômetro, no momento da medição. Antes de uma medição ser efetuada, não é possível saber nada a não ser as probabilidades de a partícula estar passando por uma ou outra trajetória.

Um ‘experimento de pensamento’ reflete isso de maneira exemplar. Antes de passar à sua explanação, podemos perceber pelo que foi dito até aqui que o ato de medir a posição da partícula (ou seja, a interação entre o objeto quântico e o aparato macroscópico) altera o sistema quântico. Por exemplo, porque uma partícula, enquanto não é detectada, exibe comportamento ondulatório, mas quando se a mede, ela reduz seu estado quântico para um comportamento corpuscular?

Imagine que no experimento com o interferômetro completo queiramos medir de fato o momento em que a partícula está entre o espelho semi-refletor S1 e o espelho E1, que direciona a partícula rumo a S2, para vermos por qual caminho ela passou. Assim, colocamos um detector D3 entre S1 e E1. 

Se o detector D3 for acionado, a partícula passou pelo caminho A, ao passo que se nada for detectado, a partícula passou por B. Com isso, teremos 50% de probabilidade para cada caso. No entanto, o que acontece é algo surpreendente: se na experiência original o único detector no qual as partículas incidiam era D1, devido ao padrão de interferência causado por S2, ao se medir por qual caminho o fóton passou, o padrão de interferência desaparece! Ou seja, 50% das vezes haverá detecção em D1 e 50% em D2! Isso mesmo se o detector não medir nada, (caso em que houve trajetória B), quer dizer, sem que haja qualquer interação direta entre a partícula e o detector, o que implica que não é devido à interação com o aparato de medição que faz o padrão de interferência desaparecer; é o simples fato de ter havido uma trajetória. Isso quer dizer que se os caminhos dos fótons forem discernidos, ou seja, se houver trajetória detectável para as partículas, elas deixam de exibir a função de onda, deixam de interferir: o seu estado quântico reduz drasticamente – “colapsa”, no jargão –, e o comportamento exibido passa a ser de partícula. Por que a medição destrói o padrão de interferência? O que significa o ato de medir um objeto quântico? O observador está implicado nisso, enquanto medidor?

Erwin Schrödinger, que produziu o fundamento do formalismo mínimo com uma equação da evolução do sistema quântico, propôs o seguinte ‘experimento de pensamento’: ponha um gato dentro de uma caixa junto com um átomo radioativo e um detector que aciona um mecanismo que mate o gato caso o decaimento do átomo (que ocorrerá ou não, de acordo com as leis probabilísticas da mecânica quântica) ative o detector. Antes de abrir a caixa, o gato estará vivo ou morto? Há uma probabilidade de 50% de o átomo decair, acionando a ‘máquina diabólica’ que mata o gato, e há uma probabilidade de 50% de o átomo não decair, deixando o gato vivo. As duas possibilidades de decaimento estão superpostas. Isso quer dizer que a vida e a morte do gato também estão em superposição? O gato está em um estado meio-vivo e meio-morto, como um zumbi? Ora, se abrirmos a caixa e olharmos (ou seja, se efetuamos uma medição), o gato estará em apenas um dos estados. Mas e enquanto não olhamos? Há físicos que afirmam categoricamente que o gato, também, está com a vida e a morte superpostas, ou seja, é fisicamente indiscernível se o gato está vivo ou morto – é como se ele estivesse vivo e morto. E o fato de olharmos o conteúdo da caixa determina o conteúdo da caixa – ou o gato estará vivo ou morto, colapsando assim a função de onda que mantinha o gato em superposição.

Interessa aqui com esse exemplo é ressaltar essa propriedade fundamental da função de onda: a superposição das possibilidades de orientação topológica de seus elementos. Nessa superposição nos deparamos com um Real, no sentido que Lacan coloca: o de impossibilidade de marcação para a posição do gato; não há significante, não há discernível para expressar o seu estado quântico (ou seja, superposto). Isso é o que significa uma onda na física quântica: uma função de superposição de possibilidades para distinções e orientações topológicas de um elemento físico (nomeadamente uma partícula). A função de onda (que se grafa com o símbolo Ψ – o que é muito digno de nota) é propriamente uma impossibilidade radical de se saber o que se passa em nível quântico; é um furo, um indiscernível que nenhum saber poderá capturar. É como diz Anton Zeilinger, da Universidade de Viena: “A superposição de amplitudes [...] é apenas válida se não houver maneira de saber, mesmo em princípio, qual caminho a partícula tomou” (ZEILINGER – grifo nosso). Ou seja, a função de onda é algo que não faz sentido na física quântica – bem literalmente: por qual sentido (trajetória) a partícula passou? É impossível saber. É precisamente aí que se manifesta na física (poderíamos ainda dizer: na ciência mesma) o que Lacan chama de Real. O real, na física quântica, é precisamente o que a função de onda materializa. Ou melhor: a função de onda demonstra fisicamente a ‘ek-sistência’ do que Lacan chamava de Real – para além de qualquer possibilidade de nomeação e significação. Por isso é que as reações ocasionadas pelas descobertas que se desenvolveram nesse campo foram as mais estupefatas: Niels Bohr, um dos nomes mais importantes da física moderna, foi taxativo: “aqueles que não se chocam ao entrar em contato com a teoria quântica não podem tê-la compreendido” (NETO, 2010, p. ix) – isso deveria também valer para a psicanálise, a propósito. Richard Feynman, prêmio Nobel, disse: “é seguro dizer que ninguém entende a mecânica quântica” (bid.). Sir Roger Penrose: “A mecânica quântica não faz o menor sentido” (Ibid.). Não é preciso dizer mais para demonstrar que os físicos também se depararam com aquilo que Freud chamou de Unheimlich, o estranho, o inominável – o umbigo.

Pois bem, vemos com clareza que o real com que a física quântica se depara é propriamente ondulatório. É na função de onda (Ψ) que se encontra, na física, o que Lacan chamava de real. Mas como compreender que a interpretação incide sobre o real e produz ondas? O que é ‘produzir ondas’? O que Lacan queria dizer com ‘ondas’?

Lacan, ao final de seu ensino, comparava a interpretação ao chiste e à escrita poética. Isso porque ambos fazem equívoco (bévue) e ressoam o sentido. “Com a ajuda do que se chama escrita poética, vocês podem ter a noção do que poderia ser a interpretação analítica”; “Estar eventualmente inspirado por algo da ordem da poesia para intervir enquanto psicanalista? É precisamente para isso que é necessário orientá-los” (LACAN, Seminário 24, 19/04/77). A escrita poética, o chiste, são efeitos do inconsciente que não são de maneira alguma unívocos – são precisamente equívocos –, ou seja, não impõem o sentido, senão como impossível. Na interpretação, o sentido se torna impossível, e é daí que aparece sua eficácia enquanto demonstração do real. Lacan dá exemplos disso até mesmo nos títulos de seus seminários: “les non-dupes errent”, ou “l’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre” – frases cujos sentidos são indecidíveis, pois oscilam (como quem diz ‘ondulam’) entre dois ou mais sentidos – entre dois ou mais significantes. Digamos que, na interpretação, o sentido espalha sua trajetória, sua consistência, tal como uma onda. É isto que a operação de interpretação tem que fazer com os elementos que se apresentam na fala: reduzi-los a equívocos, para que a partir deles as possibilidades de decantação do sentido emerjam por si sós – mas a emergência de sentido é secundária à intervenção analítica, que visa o real. “Nada mais fácil que patinar na equivocação (bévue), quer dizer, em um efeito do inconsciente” (LACAN, Seminário 24, 10/05/77). Assim, o equívoco, enquanto efeito do inconsciente, está alinhavado com o real, por ser uma articulação simbólica (feita a partir dos elementos significantes na fala) em que o sentido se dissolve, se espalha, pela miríade de sentidos que tal elemento simbólico possa ter – já que esse elemento originalmente não tem nenhum sentido, ele é sem-tido. Não se trata de encontrar os sentidos (latentes) para o significante, mas sim de simplesmente realizar o significante, ou seja, reduzi-lo ao sem-tido (sens/sans, no francês) que ressoa, que produz ondas nele mesmo – como uma partícula de propriedades ondulatórias (objeto de estudo da física quântica): “isso consiste em servir-se de uma palavra para outro uso que não aquele para o qual ela está feita, se a retorce um pouco e é nessa torção que reside seu efeito operatório” (LACAN, Seminário 24, 17/05/77). Torção que é da ordem de uma topologia unilátera, como a banda de Möebius: de um sentido a outro na mesma superfície.

"No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer 
nascimentos - 
O verbo tem que pegar delírio."

(Manoel de Barros, "O Livro das Ignorãças", VII) 

Podemos então perceber que a estrutura do equívoco na interpretação analítica é exatamente igual à da função de onda na física quântica. Tomemos o exemplo do gato de Schöedinger. O gato, assim como o significante, está em um dado estado, em um dado sentido – “vivo” ou “morto”. A ênfase recai nesse “ou”: quando digo uma palavra na análise, quero dizer alguma coisa, e não outra. A interpretação incide na palavra não para dar-lhe outro sentido, nem para buscá-lo enquanto recalcado. A interpretação só serve para exibir o não-senso radical do significante, em que não se sabe se o gato (como significante) está “vivo” ou “morto”; se a palavra é “les non-dupes errent” ou “le nom du père”. A homofonia é um caso dessa lógica. Mas a lógica, para além do caso da homofonia, é uma lógica em que um mesmo elemento, uma mesma partícula, um mesmo e único significante, (o “gato”) está superposto em, no mínimo, duas possibilidades opostas (ou seja, simbólicas enquanto tais) de seu estado: presente/ausente, vivo/morto, ou, como Slavoj Zizek prefere, “undead”. Freud mesmo diz: “a alternativa ‘ou... ou’ nunca se expressa nos sonhos” (FREUD, 2006, p. 679). Esse efeito não é algo que se compreende – até mesmo por ser paradoxal –, mas que se demonstra como tal na sua própria impossibilidade de compreensão. Essa demonstração do impossível é o efeito que a interpretação analítica propõe. Digamos que entre estar vivo ou morto, o gato está “ou”, enquanto puro equívoco entre seus estados quânticos. É para a função “ou”, ou seja, para a função Ψ, que o analista deve apontar como uma bússola na direção do tratamento – para essa região imprecisa e inabordável em que o significante não está nem vivo, nem morto, mas e(qui)voca tanto a vida quanto a morte. O analista não diz o sentido (topológico) do gato: diz o silêncio unilátero do “ou”, apontando, como o São João de Leonardo da Vinci, para o topos impossível e equívoco da função de onda – o ‘horizonte desabitado do ser’:



Há um conhecido verso budista que parece ter sido feito para descrever a interpretação, especialmente se o articularmos com o quadro de Da Vinci:

Quando curiosamente te perguntarem, buscando saber o que é aquilo, não deves afirmar ou negar nada. Pois o que quer que seja afirmado não é a verdade. E o que quer que seja negado não é verdadeiro. Como alguém poderá dizer com certeza o que aquilo possa ser enquanto por si mesmo não tenha compreendido o que é? E, após tê-lo compreendido, que palavra deve ser enviada de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde possa seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece-lhe apenas o silêncio. Silêncio – e um dedo apontando o caminho.

O verso deixa muitas coisas bem claras: quando um analisando pergunta ao analista o sentido de seu sintoma, o analista não responde nem uma coisa (tipo “o gato está vivo”) nem outra (“o gato está morto”). O analista também não compreende. Sua função é apenas apontar para o analisando a experiência de real, ou seja, a experiência do indizível “ou” (“o gato está undead”). E essa experiência é do analisando, não do analista, cuja função é apenas a de apontar o caminho para (o analisando ‘compreender’) o impossível, o indizível. O dizer de um analista tem que apontar para o Silêncio (do) real do ‘horizonte desabitado do ser’: de lá dessa região o analisando traz na sua carruagem simbólica as meias-palavras (já que a verdade só pode ser semi-dita – ou o gato está “vivo” ou está “morto”) que digam dessa experiência – aí sim, reabitando o horizonte do (seu) ser. Se a psicanálise é o tratamento que se deve esperar de um psicanalista, como Lacan diz, a única coisa que se deve esperar de um psicanalista é que ele aponte para esse caminho quando age. De resto, só há psicologia. Poderíamos dizer que a diferença entre a psicologia e a psicanálise é análoga à diferença entre física clássica e física quântica.

Dessa forma, se a interpretação não é feita para ser compreendida, é porque a interpretação não se confunde com compreensão. Isso concerne tanto analista quando analisando. O analista não deve ‘compreender’ o analisando, interpretá-lo hermeneuticamente, kleinianamente; nem o analisando precisa compreender uma interpretação propriamente analítica, pois ela evoca justamente o real, o impossível de compreender. Lacan mesmo já dizia: “uma das coisas que mais devemos evitar é compreender muito, compreender mais do que existe no discurso do sujeito. Interpretar e imaginar que se compreende, não é de modo algum a mesma coisa. Eu diria mesmo que é na base de certa recusa da compreensão que empurramos a porta da compreensão analítica” (LACAN, 1986, p. 90).

Na verdade, esse modo, real, de conceber a intepretação torna a palavra ‘interpretação’ um nome “equivocado” para a operação analítica, já que ‘interpretar’, no dicionário, significa “traduzir [que é propriamente simbólico], ajuizar da intenção, do sentido [que é propriamente imaginário], exprimir o pensamento” (LEXIKON, p. 442). Até porque o próprio do real é justamente não poder ser interpretável, apenas demonstrável: e, por isso, ao contrário, é o real que interpreta, no que ele se demonstra – a interpretação parte do real. Poderíamos então equivocar o nome “interpretação” seguindo a maneira pela qual Lacan passa da intersubjetividade – enquanto a função de comunicação e sentido da linguagem – para a intra-subjetividade – enquanto monólogo e equívoco: “a linguagem não é, ela mesma, uma mensagem” (LACAN, 2007, p. 32). O ‘inter’, que significa entre, implica o Dois, a articulação S1 – S2 que produz o sentido, a mensagem a ser decifrada no inconsciente; já o ‘intra’, que significa para dentro, é da ordem do Um, do equívoco do Um consigo mesmo, sem sentido latente, sem Outro significante. Isso equivale a passar da suposição de que se fala com alguém, que compreende o sentido do que se diz, para a compreensão de que “estou falando com as paredes. Nem com vocês, nem com o Outro maiúsculo. Estou falando sozinho. É precisamente isso que lhes interessa. Cabe a vocês me interpretar” (LACAN, 2011) – com todo o equívoco que a palavra ‘interpretar’ tem aqui: entre o hermenêutico e o psicanalítico. Assim, a operação analítica bem poderia se chamar “intrapretação”, pois não é uma função inter-significantes, de articulação e sentido, mas uma função intra-significante, de desarticulação, indistinção e equívoco – não é da ordem do Dois, mas do Une-bévue, da superposição do Um consigo mesmo, do “caráter bífido do Um” (LACAN, 2012, p. 130). Não se trata de buscar o Outro significante latente, mas de intervir em cada Um significante para equivocá-lo.

Dito isso, o fundamento real da 'intrapretação', analítica como tal, é uma intervenção que requer o qualificador de “quântica”, ou “não-clássica”; a função da interpretação é uma função de onda (Ψ) que incide no significante. “Com efeito, é unicamente pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe” (LACAN, 2007, p. 18 – grifo nosso). Ψ tem a estrutura de ressonância do equívoco, da superposição ondulatória de sentidos do significante, tal como a escrita poética para Lacan: “usar a escrita para equivocar pode servir... porque precisamos do equívoco para a análise... Nós precisamos do equívoco, é a definição da análise” (Lacan, Sem. 25, 15/11/77). De modo que a única intervenção que pode ser descrita como propriamente psicanalítica é aquela que tem efeito de uma função de onda – seja isso na escrita, na fala, na imagem, no som, onde quer que seja. Essa intervenção não é para ser compreendida – e nem há como compreendê-la –, basta que demonstre, produza, a hiância real do inconsciente, que faz o significante ressoar como uma onda quântica. Em suma, a intrapretação é feita para produzir um gato de Schrödinger – como MC Escher sempre deixa muito claro em seus trabalhos:


REFERÊNCIAS:

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

SOUZA LEITE, Márcio Peter. Sobre a Interpretação. Disponível em: http://www.marciopeter.com.br/links/ensino/direcao/09_sobre_a_interpretacao.pdf. Acesso em 28/05/2013.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos Sonhos. ESB, Vol. V. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

SANTIAGO, Jésus. O Tempo como Contingência na Experiência Analítica. In: O tempo, o Objeto e o Avesso – ensaios de Filosofia e Psicanálise. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.


CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico Lexikon. Rio de Janeiro: Lexikon, 2007.

COUTINHO JORGE, Marco Antonio. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan, vol 2: a Clínica da Fantasia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

___________________________ (org). Aforismos de Jacques Lacan. Disponível em: http://www.macjorge.pro.br/pdfs/intervencoes/textosbreves/Aforismos_de_Lacan.pdf Acesso em 03/06/2013.

LACAN, Jacques. A terceira. Disponível em: http://www.freud-lacan.com/articles/article.php?url_article=jlacan031105_2. Acesso em 28/05/2013.

PESSOA Jr., Osvaldo. Conceitos de Física Quântica, Vol. I. São Paulo: Livraria da Física, 2003.

ZEILINGER, ANTON. Experiment and the foundation of quantum mechanics. Rev. Mod. Phys. 71: S288 – 297. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Quantum_superposition. Acesso em 28/05/2013.

LACAN, Jacques. O seminário 1: o escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

LACAN, Jacques. O seminário 19: ...ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.

LACAN, Jacques. O seminário 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

LACAN, Jacques. O seminário 24: L’Insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Inédito.

LACAN, Jacques. O Seminário 25: O momento de Concluir. Inédito.

______________. Estou falando com as paredes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.

NETO, Nelson Pinto. Teorias e interpretações da mecânica quântica. São Paulo: Ed. Livraria da Física, 2010.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Reflexão sobre reflexão

“A sexta palavra desta pergunta evidente: ambiguidade prevê o passado?”




Lacan faz recurso a várias ciências para fundamentar seu conceito de real. Dentre elas, a que ele mais enfatizou como demonstração de seu conceito é a lógica, isso porque “o real se afirma nos impasses da lógica” (2012, p. 39). Lacan, então privilegia a lógica como “o paradigma do que questiona o que pode sair da linguagem (...) Proponho encontrar nesse real que se afirma pela interrogação lógica da linguagem o modelo do que nos interessa, ou seja, do que a exploração do inconsciente revela” (p. 40). O paradigma do questionamento e impasse lógicos da linguagem é, para Lacan, o teorema da incompletude de Gödel, que subverte noções clássicas da lógica, como o princípio de não-contradição. “O que a lógica se propunha tratar, inicialmente, em sua ambição de conquista, nada mais nada menos do que a rede do discurso, na medida em que ela se articula. Ao se articular, essa rede deveria fechar-se num universo que supostamente encerraria e cobriria com uma malha fina o que era oferecido ao conhecimento. A experiência lógica mostrou que isso acontecia de outra maneira (...) Nesse ponto, num campo que é aparentemente o mais seguro [o da lógica], pomos o dedo no que se opõe à captura completa no discurso do esgotamento lógico, o que introduz nela uma hiância irredutível. É aí que designamos o real” (Ibid.). Assim, o real é a demonstração lógica (ou seja, simbólica) de que é impossível haver uma demonstração lógica completa de alguma articulação [leia-se ‘formação do inconsciente’ – sonho, chiste, etc.], sempre resta essa hiância em qualquer discurso, ou seja, em qualquer linguagem, em qualquer articulação – em qualquer inconsciente. Isso é o Inconsciente como real, e não como simbólico – é precisamente onde o simbólico ‘falha’, ou, melhor dizendo, é algo fora (ek-sistente) da propriedade articulatória do simbólico. O sistema matemático demonstra a existência da contradição em qualquer sistema matemático que queira se ver livre dela, livre dessa captura completa de um sistema em termos de si mesmo – nenhum sistema recobre-se a si mesmo, há sempre um ponto de indecidibilidade. “Godel procede à demonstração de que, no campo da aritmética, sempre haverá algo enunciável nos próprios termos que ela comporta, que não estará ao alcance do que ela postula para si mesma como modo de demonstração a se considerar aceito” (Ibid., p. 40). Em uma linguagem mais rigorosa, “Todas as afirmações axiomáticas consistentes da teoria dos números incluem proposições indecidíveis” (HOFSTADTER, p. 17) – o ‘indecidível’ é o que evidencia a existência de contradições e paradoxos. Isso foi um avanço no campo da matemática que permitiu um avanço na lógica. Um exemplo dessa lógica é o famoso paradoxo proposto por Epimênides (adaptado): “Eu estou mentindo”, ou, em outra versão, “Esta frase é falsa”. Ora, se a frase for falsa, ela estará dizendo a verdade sobre si mesma, logo ela será verdadeira; mas se ela for verdadeira ela está dizendo que é falsa, logo será falsa justamente porque é verdadeira. Como pode uma frase ser falsa se for verdadeira – e vice versa? Como pode uma coisa ser seu próprio oposto? Aí reside a hiância do real de que Lacan fala. “o notável é que Godel não procede a partir dos valores de verdade, da ideia de verdade, mas a partir da ideia de derivação. É ao deixar em suspenso os valores verdadeiro e falso que o teorema é demonstrável. Este ponto vital ilustra o que eu digo sobre hiância lógica” (p. 40) Essa suspensão das ‘palavras antitéticas’, essa indistinção (Milner), é o que o teorema de godel introduz na matemática. “A prova do Teorema de Godel se sustenta na escrita de uma formulação matemática auto-referente, da mesma maneira em que o paradoxo de Epimênides é uma formulação auto-referente da linguagem” (HOFSTADTER, p. 17).

Além da auto-referência, que é o fundamento da teoria de Gödel, um outro conceito intimamente relacionado a ela é a recursão. A recursão é a produção de algo outro a partir de si mesmo. Tomemos o exemplo mais simples: uma árvore. Em sua estrutura, ela não é nada mais nada menos do que a repetição da forma do tronco sobre si mesma: apenas ao se repetir, cria complexidade, cria galhos. Veja então que a produção de complexidade da árvore é auto-referente: o Outro só pode ser gerado a partir do Mesmo, a diferença se funda por uma repetição (do real sobre si mesmo).

Ora, se Lacan fundamenta o real com Gödel, e o fundamento de Gödel é autoreferência e recursão, como podemos explorar o real enquanto recursivo, auto-referente? Bom, não há Outro do real; o real é pura presença da própria ausência de objeto, logo ele não se refere a nada – só pode referir-se a si mesmo, pois não há nada exterior ao real, ao qual ele poderia referir-se (sem 19 existencia x inexistência, p. 131) para constituir sua identidade. No que o real é UM: ou seja, não há Outro. Mas esse UM, por ser auto-referente, refere-se a si mesmo na falta de um Outro: no que ele é fissura, corte, diferença pura entre si e si mesmo: “O estatuto do Um, a partir do momento em que se pode fundá-lo, só pode brotar de sua ambiguidade” (p. 138, sem 19). Lacan também fala do “caráter bífido do UM” (p. 130). Assim, o real, como um impossível lógico à maneira do paradoxo de Epimênides, é esse Um-bífido, ambíguo, auto-referente, que enquanto Mesmo, ou seja, enquanto UM, é outro, é hiância pura: “é o próprio Indistinto”, diz Milner.

Ora, “pelo menos uma distinção está envolvida na presença de autoreferência. O ‘auto’ aparece, como indicação de que o mesmo pode ser visto como separado de si-mesmo” (KAUFFMAN, p 1). É como a estrutura de UM do paradoxo de Epimênides e a suspensão dos valores verdadeiro e falso de sua proposição: “Eu estou mentindo” é suspenso entre estar falando a verdade e a mentira, não entra nessa oposição, mesmo estando dividido em seu seio. No entanto é só a partir dessa impossível oposição simbólica expressa no paradoxo que temos acesso ao UM desse indecidível Real entre-Dois.


Podemos mostrar a auto-referência também através da topologia, que no ultimo ensino de Lacan é identificada com a própria estrutura, por ser uma maneira de demonstrar o real. Se tomarmos uma figura como o “triângulo impossível” que Roger Penrose propõe:



Pergunta-se: onde está a impossibilidade do triângulo? Ora, o triângulo é UM, mas um UM impossível de ser formulado. O que se pode fazer para descrevê-lo é separar (ou seja, discernir, simbolizar) seus vértices e entender as regras de colagem entre eles, separadamente. Enquanto UM, ele não pode ser descrito, pois a colagem de suas partes cairia em contradição consigo mesma. Como o triângulo só pode ser descrito em termos de suas próprias partes (simbólicas como tais), ele refere-se a si mesmo: uma parte refere-se a outra que refere-se à outra e que refere-se à primeira – todas partes do mesmo UM, do mesmo triângulo.

Miller nos mostra a mesma lógica na banda de moebius, ou oito interior: “é o oito interior tal como superfície interna – atravessa-se o exterior-interior e, nesse momento, vocês poderão situar na zona crítica esse termo paradoxal que, de um outro modo, apareceria como atópico. O oito interior é a maneira mais simples de representar tudo o que Sartre perseguia, ou seja, a auto-diferença” (MILLER, MATEMAS 1, p. 86).

No entanto, o próprio significante tem algo de auto-referente, de recursivo: sua própria definição. Ora um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante. Ou seja, defino “significante” com a própria palavra “significante”. É o mesmo que dizer que um significante é outro significante. Ou seja, é a “auto-diferenciação do significante na medida em que ele não pode significar a si mesmo” (Miller p. 86). O significante significa seu oposto, o Outro significante.  É o mesmo que dizer que isto é não-isto, ou x = - x, ou ‘se estou mentindo, estou falando a verdade’, e etc.

Ora, a definição de recursão é: “definição de alguma coisa em termos dela mesma”. Eis um excelente exemplo de recursão na arte:



É uma imagem (um quadro) com a escrita da definição de definição. Definição é... definir! Nada mais significante. Nada mais recursivo. A recursão “se refere a um método de definir funções na qual a função a ser definida é aplicada à sua própria definição” (WIKI). Logo, a definição de significante é recursiva justamente para demonstrar sua recursividade. “A recursão é o processo pelo qual um procedimento passa quando um dos passos do procedimento envolve invocar o próprio procedimento” (Ibid.). Um dos grandes exemplos é a série de Números de Fibonacci: 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89... “os novos números Fibonacci são definidos em termos dos números Fibonacci anteriores” (HOFSTADTER, p. 136), tipo como se dissesse: “um Fibonacci é outro Fibonacci, que é outro Fibonacci...”. Porém, um exemplo particularmente interessante é o fatorial. O número fatorial (n!) é “o produto de todos os inteiros positivos menores ou iguais a n”. Assim o fatorial do número 5, notado 5!, é 5 x 4 x 3 x 2 x 1 = 120. A definição dele é assim: n! = n.(n-1)!, para n >= 2. Quer dizer: o fatorial de um número é o próprio número vezes fatorial do (próprio número menos 1). Então, 5! = 5.(5-1)!; 4! = 4.(4-1)!; 3! = 3.(3-1)!; 2! = 2.1 Define-se assim um fatorial por outro fatorial – recursão é esse processo auto-referente de ‘definição da definição’.

Daí que 5! = 5.(4.(3.(2.1)))

Tomemos agora o esquema do significante que Lacan propõe à pág. 154 do seminário 20, o esquema do enxame significante: "Esse um, S1, de cada significante, se eu coloco a questão 'é deles, é de dois que eu falo?' (est-ce d'eux que je parle?), eu a escreverei primeiro por sua relação com S2. E vocês podem pôr quantos quiserem. É o enxame de que falo".

O esquema é assim: S1(S1(S1(S1->S2))).

Lacan completa: "li recentemente o trabalho de uma pessoa que se interroga sobre a relação de S1 com S2, que ela toma por uma relação de representação. O S1 estaria em relação com o S2, na medida em que ele representa um sujeito. A questão de saber se essa relação é simétrica, anti-simétrica, transitiva ou outra, se o sujeito se transfere de S2 para S3, e assim por diante, esta questão deve ser retomada a partir do esquema que reapresento aqui. O Um encarnado na alíngua é algo que resta indeciso entre o fonema, a palavra, a frase, ou mesmo todo o pensamento. É o de que se trata no que chamo de significante-mestre. É o significante Um." (Ibid.)

A operação S1->S2 repete-se ('dá um loop', como dizem) sobre o próprio S1->S2, a partir de um outro S1 - ela aplica-se a si mesma. Daí que o (S1->S2) [chamemo-lo de 'fonema'] se torna o próprio S2 em S1(S1->S2) [chamemo-lo de 'palavra']; e o próprio S1(S1->S2) se torna o S2 em S1(S1(S1->S2)) ['frase'], e etc.

Chomsky e os matemáticos chamam isso de 'nesting', o 'aninhamento' de funções gramaticais recursivas – algo que parece mais preciso que 'essaim'. É como uma (ou ‘umas’?) matryoshka, a boneca russa que está dentro da boneca russa, etc...

Então, seguindo esse enxame, podemos pensar uma “equação verbal recursiva” da definição de significante: "Significante é aquilo que representa $ para (aquilo que representa $ para (aquilo que representa $ para (aquilo que representa $ para outro significante)))".

Um questão a se desenvolver é: visto que o real tem propriedades recursivas e auto-referentes, e o significante também as têm, como distinguir as especificidades de cada registro dentro dessas propriedades? Outro exemplo que nos deixa em situação delicada quanto ao tema, é o fato de que Lacan, no sem 19 coloca o Um como da ordem do real (p. 121, “ele não é passível de inscrição”), mas ao mesmo tempo “o que interessa é o significante como Um, e o único interesse do significante são os equívocos que podem sair dele, da ordem do fundir dois em Um e outras bobagens desse tipo” (p. 201). Essa frase deixa evidente o caráter bífido do Um; mas o Um é Simbólico ou Real? Na contracapa do sem 19 Miller nos dá uma trilha pelo qual seguir: “Lacan ensinava a primazia do Outro na ordem da verdade e do desejo. Aqui, ensina a primazia do Um na dimensão do real. Rejeita o Dois da relação sexual e o da articulação significante. Rejeita o grande Outro, eixo da dialética do sujeito, e o remete à ficção. Desvaloriza o desejo e promete o gozo. Rejeita o Ser, que não passa de semblante. Aqui, a henologia, doutrina do Um, supera a ontologia, teoria do Ser. E a ordem simbólica? Não é outra coisa no real senão a iteração do Um”. Outra maneira de dizer que o simbólico é a repetição do real (Um) sobre si mesmo (a iteração), gerando a (auto)diferença. A iteração é “a repetição explícita de um processo (REAL, 2013)” – no caso, de diferenciação. Mas como o real só pode se diferenciar de si mesmo (pois não há nada além do real p. 131), ele é auto-referente, e no que isso cria a (auto)diferença, temos um processo recursivo na passagem de real a simbólico, ou seja, na produção de distinção a partir da não-distinção. “O significante Um não é um significante entre os outros, e supera aquilo pelo qual é apenas no entre-dois desses significantes que o sujeito é suponível, em minhas palavras. Mas é aí que reconheço que esse Um é apenas o saber superior ao sujeito, ou seja, inconsciente, na medida em que se manifesta como ek-sistente – o saber, digo eu, de um real do Um sozinho, inteiramente só, onde se diria estar a relação” (P. 234, sem 19). A relação não existe porque não há Outro do real, o real não atinge a inexistência, pois ele é a pura existência (sem 19). O que falta ao real é algo que não existe, a própria inexistência. “Não há existência senão contra um fundo de inexistência e, inversamente, ex-sistire é extrair a própria sustentação somente de um exterior que não existe” (p. 131). O Um-real é então essa existência pura, auto-referente, em que quaisquer oposições simbólicas ficam suspensas na impossibilidade de serem descritas em termos de relação, de unicidade; o que surge no lugar que seria o da relação é o que Lacan chamou de campo do Uniano, Aquilo que ek-siste (suspende) às oposições simbólicas entre um termo e seu oposto.



LACAN. Seminário 19 .
LACAN. Seminário 20.
HOSFTADTER, Douglas. Gödel Escher, Bach.
MILLER, Jacques-Alain. Matemas 1.
REAL, Eduardo Machado. O importante papel da indução matemática e suas estratégias no projeto de algoritmos recursivos.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Eric Cartman ou a criança contemporânea: amigo ou filho da mãe?

"Entendamos que não existe psicanálise de crianças. Existe, sim, gente que gosta mais de trabalhar com criança" (MD Magno)




Não apenas o cartoon South Park tem um roteiro que sempre tenta expor as contradições do pensamento tradicional (que com o final do século XX começou a desmoronar-se de vez) das mais irônicas maneiras - sejam elas sutis ou grosseiras -, mas também tem personagens históricos. Sr. Garisson, e especialmente Eric Cartman são o emblema da crise de fundamentos que vive a sociedade contemporânea, que é o que chamam de crise de 'limites', ou 'declínio da função paterna'. Os efeitos dessa crise afetam tanto adultos quanto crianças, de acordo com as peculiar-idades de cada um; enquanto os adultos têm que se deslocar de esquemas prévios em suas vidas, herdadas de sua infância tradicional, as crianças não têm referência prévia, elas estão construindo essas mesmas referências de acordo com a falta de referência que é característica da passagem cultural que estamos vivendo: passagem entre uma sociedade norteada pelo Pai, pelo simbólico, pela categorização e estabilização de esquemas mentais que se sustentariam por si sós, como ideais, como se guardassem em si a sua verdade, e uma sociedade que terá que se virar sem a referência simbólica, que não dá conta das metamorfoses pulsionais que se dão à revelia de qualquer ordem paterna, de quaisquer limites (no sentido matemático do termo). E o lugar fulcral de (re)produção dessa passagem é exatamente na criação dos filhos, no seio mesmo da família - que, por sinal, já etá completamente 'sambada', como se dizia antigamente. Como lidar com as novas formas de ser da criança, em que as fobias, ou seja, os medos, característicos da era vitoriana (ícone do império do pai), por exemplo, dão lugar a desobediências de todos os tipos, maior agressividade e questionamento contra os pais, as leis e as instituições? Trata-se de resgatar o pai? Ou simplesmente teremos que aprender a nos organizarmos sem essa função? E, se assim for, como criar um filho no meio dessa zorra toda, dessa falta de referência de verdade, de palavra? São questões difíceis que o novo século nos traz e para o qual ainda não há respostas. Mas é imprescindível mapear o momento de maneira o mais aberta possível, para não ficarmos repetindo histórias já desmascaradas e conseguirmos inventar 'novas formas de existência', como diz um livro do grande psicanalista Célio Garcia - o que me parece crucial do ponto de vista dos objetivos da psicanálise. 

Tomarei então como ponto de partida dessa reflexão, desse mapeamento, o episódio chamado "Tsst". É uma onomatopeia, que será decifrada mais adiante. Começa com Eric e sua mãe sentados em frente ao supervisor da escola. Eric havia acorrentado um colega a um poste, humilhado-o, e ainda serrado sua perna. O diálogo que se segue:

SUPERVISOR:
Estamos aqui na escola tentando fazer o Eric entender que existem limites, ok?

MÃE:
Eu sei. Eu sei que ele está fora de controle, mas... você não sabe como é. [chorando] Me desculpe... é só que... ele parece piorar a cada dia. Ele nunca escuta!

CARTMAN:
Parabéns, seu imbecil! Você fez minha mãe chorar!

MÃE:
Não é ele! É você, Eric! Eu não sei o que fazer com você!

CARTMAN:
Claro que sabe! Você é uma ótima mãe! 
[Cantando]
Quem tem a melhor mãe do mundo? Eu!
Minha mãe é a número um no meu coração,
É sim!

MÃE [já sem chorar] E CARTMAN:
[Cantando]
Minha mãe é a melhor mãe, melhor que a sua,
E cantando juntos em harmonia!

Nesse momento o supervisor sugere que a mãe de Eric procure um daqueles programas de babás que vão em casa e consertam as crianças, o que ela prontamente o faz. O primeiro programa que ela procura chama-se "Babá 190". Parodiando o mais famoso desses programas, Super Nanny, a babá, que se veste caricaturalmente como uma senhora britânica de respeito e valores, chega à casa dos Cartman dizendo: "é hora da Babá Stella mostrar para o Eric que seus modos não serão mais tolerados!". Ela bate na porta. Eric está jogando videogame, e a porta bate novamente, no que ele diz: "Mãe, está surda? Tem alguém na porta!". "Eu acho que é a babá, docinho", diz a mãe. 

Quando a babá chega, retira o videogame de Eric e o coloca na cozinha. E diz que ele só vai jogar quando terminar suas tarefas (sim, foi essa a palavra). "Devolve o meu videogame, sua vagabunda!", diz a criança. A babá responde, enfática: "Chega! Já pro canto!". Coloca um banquinho no canto da cozinha e senta Eric lá. "Você vai ficar aí por cinco minutos". É ótimo notar como essa 'técnica' é completamente alheia às transformações do mundo, pois é cômica, e precisamente por isso. A babá acha que simplesmente porque ela falou pra ele ficar lá isso terá alguma eficácia, como se a fala, a linguagem, o simbólico, garantisse alguma lei, alguma obediência. Ele responde: "e o que exatamente me prende nesta cadeira?". Resposta coerente com o momento cultural que vivemos, em que a dita eficácia simbólica está em falência, as palavras não têm mais o peso de significação que tinham, de modo que são facilmente questionáveis em seu sentido - palavras não prendem ninguém a cadeiras... Em seguida, Eric sai da cadeira e a babá o coloca nela de novo. Ela se abaixa para ficar frente a frente com ele e conversar, enquanto explica para a mãe: "estou me abaixando para ficar no mesmo nível que ele" [vira para Eric:] "Você precisa entender porquê está de castigo, ok?". Como se a criança não soubesse... Cartman retruca: "eu vou descer assim que você se virar". "Então eu vou ter que ficar bem aqui!" (face-a-face com Eric). O garoto então cospe dentro da boca dela, e a mãe dele diz: "é melhor a gente evitar o nível dele"! Mas a babá ainda insiste: "Tudo bem, eu já lidei com isso antes. Nós precisamos usar uma psicologia com ele". Assim, o que a babá tenta como técnica é conversar abertamente com Eric. Segue o diálogo:

BABÁ:
Eric, porquê você está com raiva?

CARTMAN:
Porque você pegou o meu X-box.

BABÁ:
Isso é mais do que pelo videogame? Você está com raiva de mim porque você acha que eu estou aqui para mudar sua vida?

CARTMAN:
Bem, sim!

BABÁ:
E você acha que eu não tenho direito de vir aqui e te dizer como viver.

CARTMAN:
É, eu acho que sim.

BABÁ [fala com a mãe]:
Vê? Você tem que ter tempo de conversar com suas crianças sobre os seus sentimentos.

Aqui vai um parêntese. A babá é explícita quanto à função dela: dizer como a criança deve viver. Ela vem como toda sua expertise e técnicas adaptar a criança ao que se espera dela nos termos sociais, uma criança 'de bons modos', como está em sua fala. Todo um discurso baseado na suposição de sua própria verdade a partir das palavras que a babá profere: ela sabe o que são 'bons modos', sabe o que uma criança deve ser e fazer e esta deve adaptar-se a essa imposição que ela tenta lhe aplicar. O discurso da babá é no sentido de alienar a criança em seus ditames para garantir o estabelecimento da ordem e da adaptação a ela: produzir uma criança falada, que assim não tem voz, apenas obedece. Por exemplo, quando ela usa a psicologia, está simplesmente colocando as palavras na boca da criança - não é Eric quem está falando dos próprios sentimentos, é a babá. Eric só concorda, como quem sabe disso... Mas o diálogo prossegue:

BABÁ:
O que mais você está sentindo, Eric?

CARTMAN:
Estou me sentindo confuso, porque não entendo porque você é uma babá.

BABÁ:
Porque eu amo crianças, como você.

CARTMAN:
Certo, mas... se você ama crianças, porquê não é mãe?

BABÁ:
Ah, eu só não tive filhos.

CARTMAN:
Por que não?

BABÁ:
Simplesmente não aconteceu.

CARTMAN: Você é estéril, não é? Se bem que não... seria uma desculpa muito conveniente. A verdade é que ninguém quis ter filhos com você, não é? Sempre a babá da mãe, mas nunca a mãe. Deve ser difícil pra você ver que os anos estão se esvaindo, seus amigos todos se casando e tendo filhos enquanto seu útero lentamente murcha, seca, ficando inteiramente inútil.

Desnecessário dizer que depois disso a babá foi-se e nunca mais voltou. Cartman pega num ponto nevrálgico do discurso da babá: é fácil estar de fora da situação e dizer a quem está lá dentro 'como ser uma mãe', como se a babá fosse um manual da criação dos filhos, tipo um "Do-it-yourself": ora, ela nem mesmo tem a experiência de ter um filho! Não que ter tido um filho credencie alguém a ser um manual, pois não existe tal coisa: todo e cada filho é único (sem trocadilho), não havendo maneira de modelar uniformemente suas manifestações; isso porque existe o "mal-estar decorrente do discurso do mestre [o discurso da babá], que, estruturalmente, é insuficiente para nomear o gozo particular de cada um" (BARROSO, 2010). No entanto, a babá vem tentar recuperar aquela função paterna que está se dissolvendo na contemporaneidade, através da severidade do Pai (como no castigo do banquinho), ou da Sua palavra (como na cena do banquinho e da conversa psicológica). Cartman resiste sistematicamente a esse retorno ao pai, em coerência com os questionamentos e derrocadas de padrões ideológicos e de significação que chacoalham nossa vida atual. "Quem é você pra vir aqui me dizer o que fazer? Que verdade você acha que tem que seria mais verdadeira que a minha? Você é que sabe o que é melhor pra mim, sua fracassada?".

"As mutações da família, cujos registros indicam dados elevados do número de divórcios, da procriação fora do casamento e, por outro lado, de baixa da fecundidade, também a colocaram sob a mira do Estado, além de ser alvo da ciência. Os especialistas são, portanto, convocados à presença e à intervenção junto à família, que, sob a responsabilidade das políticas públicas de saúde, se torna objeto das mais diversas formas de vigilância, observação, controle, acompanhamento e prevenção dos problemas da vida privada. São pesquisadores de diversas disciplinas que se colocam a serviço da atual desordem familiar, visando a regular a vida do casal de acordo com a boa forma de viver a sua sexualidade, ou aconselhar os pais quanto à melhor maneira de adaptar as crianças à realidade. É raro recebermos uma criança no consultório que já não tenha sido submetida aos mais diferentes métodos terapêuticos, dentre os quais se pode destacar a prevalência dos medicamentos." (BARROSO, 2010)

Mas ainda assim, a mãe de Cartman insistiu em chamar outra babá, dessa vez a verdadeira Super Nanny - que após três dias, foi parar no hospício, comendo as próprias fezes. Um funcionário do manicômio então recomenda à mãe que procure um outro programa para dar um jeito no seu filho.

E é aí que surge Cesar Millan, apresentador de "O encantador de cães". Sim, ela chamou um etólogo (se é que podemos chegar a dizer isso, talvez o melhor termo seja mesmo adestrador) para tratar do seu filho. Veja que esse tipo de coisa pode muito bem acontecer - ou já ter acontecido... O slogan de Millan é: "Nenhum cachorro é demais pra eu lidar. Eu reabilito cães, eu treino pessoas"... Não vou nem comentar a fina ironia de que esses métodos de 'educação' das crianças citados no desenho são simplesmente tratá-las como animais, domesticá-las, adestrá-las. 

Então, Millan chega à casa dos Cartman e já começa com suas técnicas. Fica entre a mãe e o filho (como um Pai), ignorando este último completamente. Conversa com a mãe sobre o seu comportamento, de costas pra ele, "para não lhe dar atenção, mostrar que não está interessado nele. Veja, a criança acha que o mundo gira em torno dela, e ela está certa. Porque tudo o que ele faz tem uma resposta de você". É, de fato, um bom diagnóstico, ao apontar como a posição da mãe da relação com o filho determina o seu sintoma. Cartman então tenta entrar entre os dois quando Millan lhe dá um forte cutucão no pescoço e diz: "Tsst". "O que você está fazendo?", pergunta a mãe. "Os cachorros mostram dominância ao cutucar uns aos outros no pescoço, mas funciona em crianças tanto quanto. Assim, mostro que sou dominante", nitidamente mostrando as origens do behaviorismo: experimentos com animais aplicados em humanos, e não algo que busque o que seja especificamente humano de dentro dessa animalidade. 

Num próximo exercício, Millan sai com Cartman "pra passear": leva-o numa coleira e mostra à mãe que não adianta ele espernear e querer sair correndo da coleira. Ela deve olhar pra frente e guiar o garoto, na coleira, e não deixar o garoto guiá-la (como metáfora, essa oração é importante e será esclarecida no final). Ele passa a coleira pra ela. Cartman tenta sair e ela dá o cutucão nele; Millan a elogia: ela está sendo treinada a domesticar o filho!

Um terceiro exercício é: Millan compra um balde de frango frito e come na frente de Eric, ignorando-o. Isso pega no ponto fraco de Eric, que é o frango frito com pele - o que é tão importante do ponto de vista do seu gozo que há um significante para essa comida: o 'Coronel'. Millan come e passa para a mãe, que tem que ignorá-lo até que ele fique "relaxado e submisso", como quer o encantador. Cartman fica enchendo o saco dela: "me dá!!"; Millan então começa uma série de cutucões até que Cartman caia no chão, imóvel, dominado pela postura fálica exibida pelo dominante. Após algum treino a mãe finalmente consegue que Cartman fique submisso e cabisbaixo. Millan novamente a elogia: "você é a líder da matilha!", como que dizendo que agora ele a obedece. E Cartman o faz. Ela o manda escovar os dentes e ele vai, mas enquanto escova, se pergunta: "o que ela pensa que está fazendo, me mandando escovar os dentes? [Se olha no espelho, estranhando-se] O que está havendo comigo?!". Isso mostra que houve mudança no seu comportamento, mas não na relação de significação dele: por mais que obedeça, ele não acha que o deve, isso lhe é estranho, gera-lhe uma angústia. 

De modo que Cartman melhorou na escola, além de perder peso por comer as coisas saudáveis que a mãe mandava. Millan volta para conversar com a mãe, como uma checagem, e ela lhe diz: "o melhor é que eu não deixo mais ele mandar em mim" (como quem não deixa o cachorro a guiar), ao que o etólogo responde: "bom, Sra. Cartman, muito bom! Parece que você está tratando o seu filho como um filho, e não como um amigo". Isso é bem contemporâneo mesmo: quantas vezes vemos esse tipo de relação entre pais e filhos, e vemos os psicólogos e psicanalistas dizerem que é preciso colocar o filho no seu lugar hierárquico inferior, em verticalidade, e não no mesmo nível, horizontal. Vemos com todas as letras a palavra Pai nessa estrutura discursiva: uma adaptação aos parâmetros sociais esperados: bom aluno, obediente, emagrecendo - quase um politicamente correto, se comportando como um 'filho', exemplar (aqui poderíamos questionar: o que é ser um 'filho'? Que significado se espera desse significante?). Mas a mãe coloca que "só tem um problema: ele luta comigo até o fim. Eu sinto que ele está fazendo o que eu digo, mas por dentro ele é ainda uma criança mimada", mostrando que o que Eric significa de si mesmo está intacto, por mais que o comportamento tenha mudado. 

Cartman vai para a casa de seus amigos e diz: "gente, é sério. Preciso matar minha mãe. Ela nem me deixa vestir mais o que quero", e mostra a roupa de 'bom menino' ridícula que está usando. Ele propõe um plano em que seus amigos a matam, mas eles simplesmente o ignoram, absorvidos que estão no videogame. "Então vou fazer tudo sozinho!", e sai, puto da vida. 

À noite, entra no quarto da mãe enquanto ela dorme, munido de uma faca e guardanapos de papel (pra limpar o sangue, rrsrs...): "Você me forçou a fazer isso. Você não podia simplesmente me amar como um filho. Você teve que me humilhar e me degradar com suas regras. Não vou deixá-la dominar mais a minha vida. Adeus, mãe". É uma linda metáfora do mito freudiano de Édipo, só que ao contrário: o Pai que ele quer matar é justamente a sua mãe (aqui vale dizer que nem Cartman, nem a própria mãe sabem que é seu pai biológico - ela é prostituta -, de modo que ele 'não tem' um pai), pois é ela mesma quem está introduzindo a função de interdição paterna, sua lei. É como se Eric estivesse matando tanto o Pai quanto a própria mãe. 

Porém, bem na hora em que ia cravar-lhe a faca, surge uma série de pensamentos contraditórios: "Talvez eu não tenha o direito de matar minha mãe"; "Não! Ela é minha mãe e eu posso fazer o que eu quiser com ela! É mais importante que eu viva como eu quero!"; "Ela não é um objeto que você possa possuir. Ela é um ser humano!"; "Ela não é um objeto que eu possa possuir. Ela é um ser humano!"; "Não, ela só te faz sofrer"; "Talvez essas mudanças sejam boas pra mim. Talvez..."; "O mundo não gira ao meu redor?"; "O mundo não gira ao meu redor!"; "Idiota!". A contradição entre esses pensamentos é mostrada como as transfigurações do rosto Cartman entre os dois lados da contradição de sua mente. No final, Cartman vomita, sai do quarto enquanto parece sofrer várias mutações até cair no chão, desmaiado. Nada mais claro para indicar a incidência do real em Eric: foi o momento em que ele se vê dividido no núcleo de seu ser, para além das determinações que ele já tinha em si (ser um 'mau garoto', por assim dizer) e as que a sociedade esperava dele (ser o 'bom garoto'). É um momento de Hiperdeterminação, em que o surgimento contingencial dessa angustiante contradição permite um rearranjo das determinações ali em jogo. Eric se deparou com o vazio de sua existência: "sou assim ou sou assado?". Poderíamos dizer que é o momento em que Eric é simplesmente "ou": nem um nem outro, apenas um questionamento puro do seu ser ("Che Vuoi?"), algo que é da ordem do pré-ontológico, como diria Lacan, emulando Heidegger. Um efeito específico e propriamente psicanalítico ocorre, "ou seja, a possibilidade de ser afetad[o] pela determinação última e radical que é capaz de produzir eventos que suspendam as outras formas de determinação em vigor e possibilitem assim o surgimento de novas formações no sistema. Em outras palavras: a possibilidade de ocorrência de neutralização no conjunto das forças que existem em uma dada situação para a emergência do novo" (ALONSO, S/D). É

No dia seguinte, a mãe acorda e vê a faca e os guardanapos na cama e procura Eric. Ele está na cozinha tomando um café da manhã saudável e estudando antes da aula. Ela vê aquilo e fica super-orgulhosa! César Millan chega nesse momento para fazer uma checagem do tratamento. Ela diz que acha que houve a mudança de personalidade, pois Eric faz as coisas por si só agora e parece estar estar aceitando isso. "Eu perdi um amigo, mas ganhei um filho". Millan responde: "É muito mais saudável pra ele, e quando ele crescer, poderá ser seu amigo também". Em agradecimento, ela o convida para ir a uma peça de teatro, claramente interessada nele. Ele recusa, dizendo que seu trabalho terminou ali, e que teria que voltar para Los Angeles. Ela diz: "Mas achei que estávamos ficando amigos", ao que ele responde: "Bem, não. Você é só uma cliente. Boa sorte pra você. Tenho que ir". Cara de decepção dela. Eric se aproxima, dizendo que está indo pra escola e vai chegar mais tarde pois vai estudar com seu amigo. Segue o diálogo final:

MÃE:
Eric, que tal ir comigo assistir ao teatro hoje à noite?

CARTMAN:
Não, valeu. Vou fazer o projeto de ciências. 

MÃE:
E se eu te levasse pra comer um Coronel depois? Daí vamos na loja e compramos um Mega-Ranger!

CARTMAN:
...poderiam ser... DOIS Mega-Rangers?

MÃE: 
Claro, querido. Você pode ter o que quiser... [Abraça o filho, que faz um sorriso de gozo, por ter recuperado sua mãe de volta]. 

Fica claro então o que Freud dizia: 

"No texto de 1914, Freud comentava as relações entre pais e filhos, explicando o amor e o investimento libidinal dos pais nas crianças, segundo a política dos ideais. O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior (FREUD, 1914/1976, p.108). A transformação em jogo do lado dos pais implica a substituição de uma satisfação autoerótica pelos ideais civilizatórios, que visa a amalgamar os ideais com as pulsões. A atitude dos pais afetuosos para com os filhos é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que de há muito abandonaram. Assim, eles se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho e de ocultar e esquecer todas as deficiências dele". (BARROSO, 2010)

A mãe de Cartman, na sua relação com ele, coloca antes de tudo a relação consigo mesma, a relação com aquilo que a comove em primeiro lugar, adestrando-o a ser o 'amigo' que ela não tem (e em cujo lugar ela colocou o 'pai' Millan), que a satisfaz e a aliena de suas próprias dificuldades. Ora, quando o encantador de cães não quis ser seu "amigo", ela não pôde arranjar outro, presa que é da/na própria fantasia, e teve que retornar a mimar o filho para que ele se reencaixasse em seu sintoma. Podemos dizer que ela é apaixonada (pathos) por algo que ela tenta fazer o filho ser: o filho ocupa precisamente o lugar desse seu objeto. "A posição da criança enquanto objeto da subjetividade materna, compensador de seu 'a menos' de gozo [o 'amigo' que ela não tem], somada à demissão paterna, coloca no horizonte de nossa época a tendência à objetalização do sujeito" (Ibid). Como vimos, a 'demissão paterna' afeta tanto crianças como adultos, e as crianças de hoje, com seus sintomas contemporâneos, são o fruto dessa falta de pais de seus próprios pais. Seus pais são os precursores da própria crise paterna que as crianças vivem, foram eles que iniciaram o processo que as crianças de hoje levam adiante. Isso assusta os pais, que têm um ataque de pânico diante do esvaziamento cada vez mais progressivo de sua referência: como se horrorizassem diante do espelho que é essa nova geração de travessia entre um mundo antigo em pleno colapso e um mundo que ainda há de ser 'moderno' (fala-se muito em pós modernidade, mas opino, junto com Magno e Bruno Latour que "nunca fomos modernos" - talvez estejamos começando a sê-lo). A mãe de Cartman tenta introduzir, resgatar um Pai não apenas para vida do filho, mas para própria vida, tentando fazer com que Cartman não seja seu 'amigo', seu gozo particular, pois o modo pelo qual ele responde a essa demanda é insuportável pra ela; no fundo, ela também tenta não fazer de Cartman um objeto de sua fantasia. Mas quando se frustra com a recusa do 'pai adotivo' Millan, ela não dá conta do vazio e tem uma recaída sintomática: seduz Eric a voltar a ser seu 'amigo'. Vejam que quem seduz é a mãe, ela é que propõe o incesto, ela é que não tem pai, não tem referência. Isso se transmite pro filho, que percebe desde o início que o mundo é biruta (como sua mãe) e não há referência mesmo (importante frisar que não é que FALTE referência, ela simplesmente NÃO HÁ, é isso que está sendo percebido). Com essa pressão do gozo de sua mãe na sua falta de referência, Eric então encarna nosso Zeitgeist e responde com os típicos sintomas contemporâneos - e ficamos chocados diante disso: pura hipocrisia, puro reacionarismo, pura denegação dos pais. É normal, considerando que não sabemos o que fazer com esse vazio de referência que se nos apresenta: ainda não conseguimos inventar um futuro, então repetimos cacoetes do passado, assim como a mãe de Eric repete a objetalização do filho após a queda da referência paterna que Millan encarnava - o que reforçará, como consequência, um retorno de Eric à sua posição de 'amigo' (enquanto objeto materno), e não 'filho da mãe' (como seu Ideal perdido - aliás, nunca havido...).



Referências:
Barroso, Suzana. A criança de Freud a Lacan: do Ideal ao objeto. Disponível em: