domingo, 16 de junho de 2013

Cuidado com o povo!

Em primeiro lugar, quero deixar claro que, diante da impossibilidade de agradar gregos e troianos, farei o que é possível: não me preocupar em agradar nenhum dos dois. Apenas escrever sobre o que vi na Manifestação em Belo Horizonte no dia 15/06/2013 e sobre o que li após o evento. 

Bom, cheguei à Manifestação quando ela já se encontrava na avenida João Pinheiro. Vi muita gente. Grande maioria de jovens, suponho que entre uns 15 e 35 anos - o que já indica uma sintomática: onde estão os nossos pais - aqueles na faixa dos 50, 60 anos? Por quê eles também não se juntaram ao protesto? É uma manifestação de filhos? 

Outra coisa evidente foi a heterogeneidade de causas em manifestação. A criação do evento na internet definiu o protesto contra a tarifa de ônibus, mas o que se viu na rua foram os mais diversos motivos para protestar: corrupção fora de controle na política, hipocrisia e lavagem cerebral da mídia mainstream, leis e projetos políticos claramente segregatórios, violência estatal, simpatias quanto a outros movimentos sociais (como em SP e Turquia), liberdade de expressão, etc. O movimento social se considerava APARTIDÁRIO, ou seja, sem um partido político definido. No entanto, como o movimento era heterogêneo e pregava a liberdade de expressão, obviamente haviam bandeiras de alguns partidos. Isso irritou aqueles que eram adeptos do 'apartidarismo' de modo que houveram vaias e protestos contra os próprios protestantes (não estou falando da religião, é claro). Esse fato, por si só, mostra que o que se chama de movimento apartidário é, em si mesmo, um partido: o partido dos que não querem partido. Uma oposição política, partidária, foi criada dentro da manifestação, deixando claro não existe posição política no mundo que não seja partidária - especialmente as que se consideram apolíticas. No seio mesmo da manifestação há o partido partidários e o partido dos apartidários. Como o filósofo Slavoj Zizek nos diz: "Na sociedade humana, a política é o princípio estrutural que a tudo engloba, assim, qualquer neutralização de algum conteúdo parcial indicando-o como “apolítico” é um gesto político par excellence". Isso é outra maneira de dizer que o modo com que uma pessoa constitui seu ser no mundo (seja ser atleticano, brasileiro, petista, homem, professor, etc.) é um gesto político, de modo que inventei o nome de 'ontopolítico' para dar conta dessa indiferença entre o ontológico e o político. Cada pessoa da manifestação foi lá com seu ser, ou seja com seu partido. 

Também ouvi críticas à manifestação dizendo que essa heterogeneidade não diz exatamente o que quer, que fica um movimento disperso e sem propostas concretas. Ora, mas isso já foi dito sobre os movimento Occupy que se espalharam por todo o mundo. A pergunta a eles foi: "o que vocês querem?" pergunta sobre o desejo por excelência. Como se sabe, não havia um plano concreto, com propostas concretas e efetivas para mudar o sistema político-econômico vigente no mundo sob a forma do capitalismo. Até porque não se sabe ainda como produzir um novo sistema: ainda não se consegue ver além do horizonte capitalista. Zizek, que esteve em NY ano passado para um discurso no local do movimento, apontou para o fato de que conseguimos imaginar várias formas de o mundo acabar (lembram do 'fim do mundo' do ano passado?), mas não consegue imaginar um sistema não-capitalista que não recaia nos fracassos socialistas do passado. Ou seja, as pessoas não sabem muito bem o que querem; no entanto, no momento não é esse o ponto mais importante da onda de protestos. O IMPORTANTE AGORA É SABER O QUE NÃO QUEREMOS. Tanto Zizek quanto Vladimir Safatle, que também discursou para o Occupy SP dizem isso: "As pessoas que passam por aqui não veem palavras de ordem, no sentido forte do termo. Tipo, 'queremos isso, isso e isso'. A princípio, isso pode parecer um problema. Mas eu diria que isso é uma grande virtude. Por quê? (...) Para que novas propostas apareçam, é necessário que nós saibamos quais são os verdadeiros problemas. (...) Porque sentimento de insatisfação, angústia diante do presente, vocês estão descobrindo que o mundo inteiro tem. Esse é o motor da crítica; é o profundo sentimento de mal-estar e de desconforto que vocês sentem, e por isso vocês estão aqui". Essa é para mim, a "causa" que está levando tanta gente diferente às ruas: o mal-estar. Os nomes desse mal-estar, dessa causa do desejo, são diferentes para cada sub-grupo, mas se tantas diferenças partidárias estão nas ruas, juntas pelo menos no ato de estarem lá fora, é porque há, sim, alguma unidade disso tudo. Se tem algo que faz os seres chamados 'humanos' verdadeiramente humanos, é sua capacidade de dizer NÃO a quaisquer esquemas já dados, sejam eles naturais ou culturais. Nenhuma das conquistas tecnológicas ou sociais partiram do 'sim'. Pensem nos pré-históricos: a escuridão incomodava. Eles desejavam a não-escuridão, mas não sabiam como produzir luz à noite. Foram anos até saberem que queriam 'o fogo'. E mais vários anos até conseguirem produzir o fogo. Antes do sim, ou seja, antes do nome do que se deseja, o desejo deseja o não-isso. Isso é o fundamental nessas manifestações. É claro que será necessário pensar no que fazer. Mas é num momento posterior à emergência do desejo enquanto tal, que não tem conteúdo: o desejo é desejo de não-isso, é um desejo de oposição. Esse é o momento que estamos vivendo: o de um emergência do Desejo, em larga escala, na política mundial. 

Parece-me que um dos grandes desafios desses neo-movimentos é justamente o de conseguirmos lidar com tantas diferenças que se unem: continuar unidos, suportando (no sentido de aguentar as diferenças dar-lhes suporte) e sustentando essas mesmas diferenças - continuar unidos, mesmo 'partidos'. Não penso que 'partidos políticos' (os tradicionais) devam ser banidos das manifestações, como muitos opinam: todos os partidos estão lá pelo mesmo mal-estar; este último, sim, independe de partido - não é à toa que tantos '(a)partidos' estão nas ruas. Entendo que, no geral, o próprio movimento de manifestações são o único e verdadeiro partido de 'oposição' que existe no país. Oposição aqui entendida como a capacidade humana de dizer o NÃO à situação (política) que se apresenta no momento. Os protestos formam um partido apartidário - o que não os exime de serem um partido, já que são uma parte da sociedade, oposta ao governo. Isso precisa ser admitido pelos manifestantes para que uma maior coesão e organização, necessários para futuras reivindicações e propostas mais concretas. Não existe posição 'apolítica' que não seja política - o que certamente é uma dificuldade para se compreender o que significa esse novo modo de fazer política, em que uma dissolução partidária se apresenta de dentro dos próprios partidos. Não temos condições de compreender isso nesse momento, em que os eventos estão no seu surgimento e desenrolar - isso terá sido compreendido apenas num momento posterior (e não sabemos quando) ao que está acontecendo. Nesse meio tempo, que consigamos acolher o máximo possível as diferenças que convergem para um mesmo objetivo: o de dizer não, de protestar.

Cito longamente Luiz Eduardo Soares, cientista social, em suas reflexões sobre os eventos - e que fala bem melhor que eu:

"não sei o que esse movimento, em sua heterogeneidade, está inventando e nos está dizendo, e está dizendo a si mesmo, ao constituir-se. Não sei que narrativa nova produzirá, ou melhor, já produziu. E aqui estão as perguntas que me parecem chave: por que, no marasmo gerado pelo ceticismo político, tantos vão às ruas, apaixonando-se pela ação coletiva, correndo risco de ferir-se, ou mesmo morrer, ou de ser preso? Qual o novo sentido de um grupo que se forja nas redes e nas ruas, tecendo sua unidade na diferença, caminhando lado a lado, experimentando uma solidariedade de outro tipo, uma fraternidade sem bandeiras, a despeito da (e por causa da) multiplicidade de desejos provavelmente muito diferentes e objetivos difusos?

A força da multidão foi reencontrada pelos jovens e pelos cidadãos que passam perto e se deixam atrair pelo magnetismo de um pertencimento precário, provisório, sem rosto, mas com alma. Que alma tem o movimento? Sim, intuo, suponho, sinto que ele tem alma, isto é, uma unidade toda sua --não verbalizada-- e uma personalidade. Intuo que esta alma não seja aquela que se derivaria –como o negativo ou o avesso-- de uma comparação com o que sabemos: não sendo, o movimento, organizado ao modo antigo, deduzir-se-ia que seria inorgânico; não tendo uma plataforma clara e uma visão compartilhada que incorporasse as mediações, deduzir-se-ia que seria irracional, despolitizado, quando não selvagem. As visões negativas correspondem ao preenchimento das lacunas de nossa ignorância com as figuras do que já sabemos. Creio que nos conviria optar pela humildade, em vez de precipitarmo-nos em julgamentos e análises. Não me parece razoável dizer o que o movimento não é tomando as gerações passadas por molde e vendo como irrealização e incompletude aquilo que é simplesmente diferente e ainda não conseguimos compreender. Há no movimento magnetismo, há conexão metonímica com questões centrais para o Brasil e o mundo, há um diálogo tácito, consciente e inconsciente, com a humanidade em escala planetária, com nossa memória social e com a tradição de nossa cultura política. Há coragem de perder o medo e de renunciar à apatia. Há, nesses eventos, no movimento pelo passe livre, ou dê-se a ele o nome que se queira, a disposição de aprender, fazendo. Há coragem para criar e, portanto, para errar. De nossa parte, os anciãos e os governantes, autorreferidos e inseguros, ameaçados em nossos esquemas cognitivos e práticos, caberia escutar, acompanhar, respeitar, repelir a violência policial (e qualquer outra), admitir nossa ignorância, e considerar a hipótese de que algo novo esteja surgindo e essa novidade talvez seja virtuosa e republicana, quem sabe a reinvenção da política democrática. Talvez a melhor forma de escutar seja tentar unir-se ao coro, na rua. Para (re)aprender a falar."

Fecho meu comentário com um pedido e um alerta para os governos: CUIDADO COM O POVO!!




Zizek em Occupy NY:


Safatle em Ocuppy SP: