quinta-feira, 23 de abril de 2015

Ilatência da memória

O estatuto do trauma nas ciências da mente está tradicionalmente ligado à noção de memória. Seja um choque físico, um acidente violento, a perda de um membro (do corpo ou da família), seja uma palavra maldita, um olhar lascivo, sejam as segundas intenções de um suave toque, qualquer evento que provoque uma ferida (τραύμα), que deixe uma marca no tecido de significações de um sujeito, inscreve-se nele como uma lembrança, cujas ramificações são os caminhos da formação de seus sintomas. E a sua terapêutica, inversamente, é partir dos sintomas e seguir o seus emaranhados fios até se chegar ao seu núcleo genético – a lembrança traumática, a qual, ao ser exposta à luz da consciência, dissolve o sentido do sintoma, uma vez que seu enigma, assim decifrado, tem o mesmo destino da esfinge: desaparecer no abismo. 

No entanto, sabemos que também a Esfinge, tal como a Fênix, ressurge das cinzas e retorna para nos afligir. A revelação da lembrança não é suficiente para escapar das determinações de última instância dos sintomas, os quais insistem em se repetir, mesmo depois de “decifrados”. De modo que ficamos assim presos nos grilhões do sintoma, do impossível, reféns de nós mesmos. Ora, o que precisamos compreender é como nos livrar destes grilhões, como sair de nós mesmos, como abrir-nos à nossa própria possibilidade de alteridade.

Houve uma época, imemorial, antes de nos tornarmos quem passamos a ser, em que nosso próprio ser ainda estava em suspenso: ainda não éramos. Essa época é a nossa pré-história, um tempo mí(s)tico antes que a linguagem se decantasse em ser, quando ela era apenas o embrião do que hoje somos. Como podemos nós tocar essa nossa própria Arche – a qual não é apenas um ponto no passado, mas perpassa cada assintótico passo que damos em direção a nós mesmos? Como lembrar de nós mesmos antes de sequer passarmos a ser? Como lembrar de quem (ou quando) ainda não éramos – quando ainda podíamos ser qualquer um ou qualquer outro? Essa parece ser uma questão-chave para compreendermos como a alteridade pode tocar nossa própria identidade.

Para esboçarmos uma resposta é preciso distinguir entre lembrança e memória. A lembrança, ela sempre tem um conteúdo, um objeto, é sempre lembrança de algo: de uma palavra, de uma imagem; em suma, de um ser – que, como tal, se faz na e pela linguagem, pelo sistema de marcações e distinções puras que se instaura na Existência, no Haver. Ao passo que a memória não tem conteúdo, objeto, não é memória de algo, não se relaciona com o ser – pelo contrário, a memória é a exposição do pré-ontológico como tal. E o pré-ontológico, ele (ainda) não é: simplesmente , logicamente (e não cronologicamente) anterior a quaisquer sobredeterminações linguageir’ontológicas que se decantam e nos formam. 

A lembrança é, nesse aspecto, antinômica à memória. A lembrança diz respeito a tudo que é ontológico, encadeado e sobredeterminado – pois que os seres se engendram e se determinam uns aos outros na cascata da causalidade. É o trauma determinando o sintoma, que determina outro sintoma, ad infinitum; é própria relação de necessidade entre os termos da equação. Ao passo que a memória é justamente a potência da hiperdeterminação, do pré-ontológico como impossibilidade de ser (pois que ainda não é, apenas , irrepresentável como tal), mas ao mesmo tempo como a pura possibilidade do ser (pois que como ainda não é, qualquer coisa pode ser – representada). Se por um lado, a lembrança é feita de linguagem, de determinações ontológicas, a memória é “feita” precisamente do que escapa à própria linguagem, do que não tem nome, nem nunca terá: a memória é a exposição do real. Fica então claro o antagonismo entre a lembrança e a memória quando entendemos que a lembrança é o esquecimento da memória – tal como a linguagem é a latência (lethe) do real, o esquecimento da sua potência de hiperdeterminação. 

No entanto, a linguagem se impõe. Não temos acesso às coisas que não pela mediação dos nomes – o real nos escapa a cada vez que tentamos nomeá-lo, capturá-lo. Como podemos então acessar a nossa memória, e não apenas as nossas lembranças? Como podemos dar um passo aquém de nós mesmos, aquém do que somos, aquém do próprio ser, para tocar o pré-ontológico, o real, e retornarmos ao mundo, simbólico e ontológico como tal, alterados em nossa identidade, tendo ido assim além de nós mesmos? Como é possível escapar da linguagem de dentro dela mesma?

‘Quando o dedo aponta para e lua, o tolo olha para dedo’, diz o provérbio chinês. O dedo aqui media a relação do olho – sujeito – com a lua – objeto. No entanto, o que o tolo não consegue perceber na linguagem é o dedo que aponta para si mesmo: é o dedo não apenas como mediador, mas como a coisa mesma – o sábio então entende que temos relação mediada com todas as coisas, exceto com a própria linguagem: nossa relação com a linguagem, com a mediação, é imediata. E assim temos a revelação, mística como tal (pois que se afasta do mundo, do ser), do fora-da-linguagem, de dentro dela mesma – quando a própria linguagem já não faz sentido, não media nada, quando “Vênus” ainda não é “estrela da tarde”, nem “estrela da manhã”: quando “Vênus” ainda não é, mas resume-se a um abissal flatus vocis. A palavra então subitamente se converte na própria coisa. E o que se revela aí é justamente a anonímia do próprio nome (e do nome próprio), a anonímia da própria linguagem, velada que estava enquanto ficávamos a olhar para a lua. 

Dessa forma, a ilatência (aletheia) da linguagem é a sua memória, sua verdade: que ela nada quer dizer, que ela nada significa – quer dizer, que ela significa o próprio nada. Aqui reencontramos o trauma, porém não mais como uma lembrança, como um ser, como um destino escrito para o humano numa rede de sobredeterminações, mas justamente como a memória do vazio de sentido da linguagem, que é hiperdeterminante. E realizar sua anamnese é na verdade rememorar, tal como Platão dizia do conhecimento, a nossa hilflosigkeit, o nosso desamparo diante do nada, diante de haver, sem saber o que podemos ou devemos ser; e esse desamparo – essa ferida – é o preço que se paga por uma efêmera libertação do que se é.


("A memória", René Magritte)