quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Felipão e Circo

Felipão foi anunciado como o novo técnico da Seleção de Futebol, aquele circo do qual o brasileiro é o grande palhaço (vide CBF, FIFA, Copa do Mundo, Ricardo Teixeira, etc.). Não que isso tenha importância suficiente para que eu escrevesse um texto, mas o que pesquei disso (ou fui fisgado) foi uma declaração que ele fez na sua primeira entrevista como técnico. Sabemos que fizeram sacanagem com o Mano Menezes, que parecia estar começando a engatar um pouco o time. Demitiram-no logo após ganhar um título, apesar de ter perdido o jogo final mas vencido nos pênaltis. Aí o Presidente da CBF, tal de Marins, coloca simplesmente os dois últimos campeões com a seleção: Parreira e Felipão. Só porquê eles já ganharam quer dizer que vão ganhar essa? O melhor técnico atualmente é o Muricy. Porquê não ele?

Enfim, foda-se esse circo.

O interessante aqui vocês já vão ver: o Felipão, ao ser questionado sobre a pressão que vai haver sobre os jogadores (e, claro, sobre ele mesmo), disse uma frase que, como diz Lacan, ressoou. "Se o jogador entrar sem pressão nenhuma, pensando que o objetivo é jogar a Copa, não pode ser assim. Fui jogador do interior. Eu era bom. O pessoal dizia que não, mas eu era bom. E tem pressão. Eles têm que saber. Nossos jogadores sabem que seria um dos títulos mais importantes que o Brasil já conquistou. Tem que trabalhar bem esse aspecto. Se não tiver pressão, vai trabalhar no Banco do Brasil, senta no escritório e não faz nada" (disponível em: http://g1.globo.com/economia/noticia/2012/11/bb-diz-torcer-para-que-conquistas-do-volei-inspirem-felipao-na-selecao.html) - disse, enquanto atrás dele figurava o nome do Itaú, patrocinador da Seleção. 

Claro que o Banco do Brasil ficou uma arara com essa fala, e publicou nota 'lamentando' a declaração. Segue trecho: "O Banco do Brasil lamenta o comentário infeliz do técnico Luiz Felipe Scolari e afirma que se orgulha por contar com 116 mil funcionários que todos os dias vestem a camisa do Banco, com as cores do Brasil, e trabalham com dedicação e compromisso para atender com excelência às necessidades de nossos clientes e do nosso país" (Ibid). Ou seja, não é que os funcionários trabalhem sem pressão, eles trabalham com dedicação e compromisso. Mas não sob pressão. O BB trata muito bem seus client... ops, funcionários.

Já a Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro também ficaram putos com Felipão.  Seu presidente disse: "Não só o trabalhador do Banco do Brasil sofre pressão, mas também os dos outros bancos. Por mês, cerca de 1.200 funcionários são afastados no país por problemas de saúde, por pressão dos bancos que pressionam os bancários a cumprirem metas absurdas e a venderem produtos que os clientes não querem comprar" (ibid). Assino embaixo. É toda hora bancário ligando oferecendo dinheiro, oferecendo empréstimo. Aluna minha me comentou que ofereceram-lhe 2.000 reais para ela pagar em suaves prestações que totalizariam 4.000 reais. "Te empresto e vc fica um tempão se fudendo pra me pagar o dobro"! Zygmunt Bauman é muito claro quanto a isso: "Nós hipotecamos o futuro", ou seja, de tanto dever e não poder pagar por ele (futuro), alguém irá tomá-lo de nós - vide crise de '2008'. É ruim, hein!

Bom, se a Psicanálise serve pra alguma coisa, é pra que pelo menos as pessoas saquem as dimensões do que quer que se diga. Lacan chamou isso de diz-menções e Freud nos ensinou a manejar a técnica para conduzir o tratamento do dito para isso, para as ressonâncias. Cito a Interpretação de Sonhos: "Os pensamentos oníricos a que chegamos por meio da análise revelam-se como um complexo psíquico da mais intrincada estrutura possível" (Grifo meu). Pequena pausa para você refletir sobre a frase. Prossigo: "Suas partes mantêm entre si as mais variadas relações lógicas. representam primeiros planos e panos de fundo, condições, digressões e ilustrações, sequências de prova e contra-argumentações. Não falta a esse material nenhuma das características que nos são familiares por nosso pensamento de vigília, Ora, quando tudo isso tem de ser transformado num sonho, o material psíquico é submetido a uma pressão que o condensa enormemente a uma fragmentação interna e a um deslocamento que criam, por assim dizer, novas superfícies" (p. 678). E Lacan é simplesmente textual quando diz "eu garanto que, numa frase, se possa fazer com que qualquer palavra venha dizer qualquer sentido" (LACAN). É o que vou fazer agora, tentando também com isso mostrar com esse exemplo um dos artifícios possíveis para que se esteja na posição analítica.

Repito: Felipão diz que não há pressão no banco do Brasil. Me pergunto se algum dos jogadores que serão reservas na Copa pensarão nesta frase; ou se os que já se consideram reservas pensaram nela. Isso porque 'Banco do Brasil' ressoa, pois é homofônico, como 'banco [de reservas] do Brasil', jargão altamente usado no linguajar futebolístico. Lacan diz que "é o equívoco, a pluralidade de sentido, que favorece a passagem do inconsciente no discurso". Assim, não há pressão no 'banco do Brasil'? Quem trabalha lá? E mais, quem é o dono?: é o técnico que está assumindo o posto de Pai da "família banco do Brasil" (como diz trecho da carta do BB): Luiz Felipe Scolari. Felipão está dizendo que não há pressão nele, nem na comissão técnica, nem nos reservas (que são quem trabalham no Banco), mas sim em quem está em campo ("Se o jogador entrar [em campo, é claro] sem pressão nenhuma, pensando que o objetivo é jogar a Copa, não pode ser assim"). É, logicamente, uma maneira de ele tirar o corpo fora se o Brasil perder a Copa. Ele não quer se sentir pressionado por uma eventual derrota. É como se ele dissesse (aliás, não é como se ele dissesse, é o que ele está dizendo logicamente, ou seja, a la Deus, falando certo por linhas tortas): a derrota será dentro de campo, dos que realmente jogam, dos que estão pressionados, oras!, e não de quem senta no 'banco' (Felipão disse "senta no escritório") e 'não faz nada', fica só olhando o jogo, sem pressão alguma. De modo que, repito, logicamente (e eu traço essa lógica neste parágrafo), a fala de Felipão ressoa em outro sentido, no qual, curiosamente, ele está falando de si mesmo (como sempre estamos), enquanto trabalhador do banco do Brasil. 

Se essa lógica lhes parece forçada, ilógica, absurda, que não faz sentido, 'nada a ver', apenas lembrem das frases do Freud e do Lacan que vou recitar: "Os pensamentos oníricos a que chegamos por meio da análise revelam-se como um complexo psíquico da mais intrincada estrutura possível". Não é à toa que pedi uma pausa naquele momento. Isso quer dizer: da mais intrincada lógica possível. Uma lógica em que nunca há apenas um sentido para o que se coloca. "Eu garanto que, numa frase, se possa fazer com que qualquer palavra venha dizer qualquer sentido", diz Lacan, pois, como disse Freud, "suas [do pensamento, do dito] partes mantêm entre si as mais variadas relações lógicas". Eu diria "suas partes mantêm entre si toda e qualquer relação lógica possível". São frases de grande magnitude, muito importantes para se entender o suspensamento psicanalítico. E vocês querem lógica bizarra, forçada,  absurda, etc., e que ninguém ousa discutir? Vão estudar física quântica e verão o quanto logicamente a psicanálise está dizendo a mesma coisa, inclusive de modo até mais tragável... Pois, ora, se um elétron pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, uma palavra também pode.

O Inconsciente é a falta radical de sentido absoluto para o que quer que se diga, e Isso sempre pode ressoar, se desfazer como sentido para que possam surgir novos sentidos; eu ousaria dizer que a lógica da psicanálise é a lógica das possibilidades. A análise, e é isso o que seu nome significa, é precisamente essa decomposição de um sentido para a recomposição de outro a partir desse mesmo material apodrecido. E para quê? Para que a pessoa aprenda a manejar cada vez mais (as) possibilidades do que quer que haja, ampliando assim a diz-menção da sua existência. Serve também pra que o palhaço não se contente apenas com Felipão e Circo...

PS: É interessante que a reportagem da Globo sobre a fala de Felipão tenha saído na seção de Economia, e não na de Esportes... O assunto é sério, né?



REFERÊNCIAS: 

FREUD, A Interpretação dos sonhos. ESB, vol. V.

LACAN, A Terceira. Disponível em: http://www.freud-lacan.com/articles/article.php?url_article=jlacan031105_2

BAUMAN, Zygmunt. Entrevista à Globo News. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=OcPD1pLdkoQ

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Homossexualidade: a importância de sua discriminação

O Projeto de Lei no. 122/06, que visa "criminalizar a discriminação motivada unicamente na orientação sexual ou na identidade de gênero da pessoa discriminada" (disponível em: http://www.plc122.com.br/entenda-plc122/#axzz2DY0u28gy), ou mais popularmente conhecido como lei da Homofobia, tem gerado calorosos debates entre Homossexuais e os Evangélicos, esses últimos representados na figura do Pastor Silas Malafaia, conhecido dos brasileiros por seu programa de televisão. Debates que inevitavelmente chegam ao tema da intolerância entre essas duas formações. De um lado, Malafaia é considerado homofóbico pelos homossexuais, e do outro, o próprio Malafaia os considera intolerantes por quererem impedi-lo de expressar e propagar suas opiniões, que são contra o estilo de vida homossexual. De modo que ambos se consideram tolerantes contra o Outro intolerante. Narcisismo das pequenas diferenças, ou guerra do gosto.

Malafaia, que, por sinal, fala muito bem, é também psicólogo (!). Ele é contra o projeto de lei. Isso porque, segundo ele, o projeto, que criminaliza a homofobia, na verdade criminaliza quaisquer posições contrárias ao homossexualismo. Cito a critica que Malafaia faz ao artigo 16o., paragrafo 5o. do projeto, que diz que "O disposto neste artigo envolve a prática de qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica." disponível em: http://www.vitoriaemcristo.org/_gutenweb/_site/hotsite/PL-122/):

"Aqui está o ápice do absurdo: o que é ação constrangedora, intimidatória, de ordem moral, ética, filosófica e psicológica? Com este parágrafo a Bíblia vira um livro homofóbico, pois qualquer homossexual poderá reivindicar que se sente constrangido, intimidado pelos capítulos da Bíblia que condenam a prática homossexual. É a ditadura da minoria querendo colocar a mordaça na maioria. O Brasil é formado por 90% de cristãos. Não queremos impedir ou cercear ninguém que tenha a prática homossexual, mas não pode haver lei que impeça a liberdade de expressão e religiosa que são garantidas no Artigo 5º da Constituição brasileira. Para qualquer violência que se cometa contra o homossexual está prevista, em lei, reparação a ele; bem como assim está para os heterossexuais. A PL-122 não tem nada a ver com a defesa do homossexual, mas, sim, quer criminalizar os contrários à prática homossexual — e fazem isso escorados na questão do racismo e da religião" (Disponível em: http://www.vitoriaemcristo.org/_gutenweb/_site/hotsite/PL-122/).

A questão em jogo é da liberdade de expressão versus crime de ódio ou homofobia. Como bem aponta o pastor - e com toda a retórica que caracteriza o seu discurso -, a Bíblia se tornaria criminosa, porque alguém pode se sentir ofendido com os ensinamentos que ela prega. E é bom abrir o olho quanto ao tiro pela culatra que essa lei poderia causar: criminalizar a liberdade de expressão. 

Por outro lado, a lei é importante, apesar de certos poréns. Ora, já é direito de qualquer cidadão, indiferentemente à sua orientação sexual, não ser agredido, ofendido moralmente, filosoficamente, etc., então, porquê fazer uma lei específica para homossexuais? Estariam eles querendo privilégios sociais, ao terem uma lei que se aplique especificamente a eles, para que evangélicos não os xinguem? Isso seria paradoxal quanto ao que eles mesmos reivindicam: tratamento igualitário. 

Sabemos que homossexuais travam uma grande luta em favor da igualdade de direitos, e que, graças a essa luta, muitas conquistas foram alcançadas, pois hojendia, comparativamente a cinquenta anos atrás, por exemplo, há uma maior indiferença quanto à sexualidade (homo ou hétero) das pessoas. Hojendia não há o mesmo nível de discriminação do que em tempos idos. Mas a luta não foi para que eles ganhassem o direito de serem tratados mais igualmente (ou mais indiferentemente, como prefiro colocar); foi para que esses direitos, que já são indiferentes a quaisquer orientações sexuais, fossem de fato aplicados a eles, coisa que não eram até que a luta homossexual conquistasse mais poder junto à sociedade e fizesse com que seus direitos fossem exercidos por ela. De modo que é importante destacar todos os preconceitos sofridos por essas pessoas que têm orientação homossexual, para que a sociedade se informe cada vez mais sobre o que é homossexualidade e como ela é apenas mais uma das orientações sexuais possíveis. Não tivessem feito se ouvir, os Homossexuais ainda estariam vivendo grandes discriminações, maiores do que as que vemos hoje.

Agora, o projeto de lei fala em criminalizar a discriminação contra os LGBT. O que é discriminar? O dicionário etimológico Lexikon diz o seguinte: "linha divisória, discernimento, combate", ou seja: diferenciação, o que coloca imediatamente a guerra do gosto, a guerra dos interesses de cada diferença social. Os homossexuais precisaram SE discriminar, ou seja mostrar como sua diferença, seu discernimento no mundo, precisava ser ouvido, para que fosse possível um tratamento mais igualitário (ou seja, mais indiferente, que não os discriminassem) pela sociedade. De modo que é importante haver uma discriminação de grupos sociais considerados 'minorias' (só se for em quantidade de poder, não em quantidade de adeptos), tais como ocorreu com negros, escravos, mulheres, etc. para que eles não sejam discriminados por serem 'diferentes'. E um projeto de lei como o 122 é exatamente uma tentativa de conferir uma maior capacidade de poder àquele grupo historicamente oprimido, e nesse ponto é inteiramente justificável essa discriminação. É preciso descriminar sua discriminação, ou seja, sua diferença no mundo - lembrando que o pai da computação, figura de inestimável valor na história da humanidade, Alan Turing, que era homossexual, foi condenado pela justiça britânica a tomar estrogênio (hormônio responsável por características femininas nos corpos), simplesmente por ser homossexual. É a criminalização da discriminação; sua diferença (opção sexual), sua discriminação, foi criminalizada.

Para ficar claro o que estou dizendo, estou jogando com duas definições de discriminação: uma (e fundamental) é a diferença; discriminar é diferenciar, e graças a Deus (e a lutas homossexuais por exemplo) temos hoje um maior poder de sermos discriminantes e discriminados, ou seja, exercer nossas diferenças dentro do mundo - melhor do que há 50 anos atrás. Já a discriminação à qual se refere o projeto de lei é não indiferenciar, por exemplo, as possibilidades de discriminação (orientação, diferenciação) sexual: a única discriminação possível é hétero. Ora, a luta homossexual (quer dizer, discriminar os homossexuais, mostrar e dar mais poder à sua diferença) é justamente por uma indiscriminação de opções sexuais: homens podem se beijar em público tanto quanto um homem e uma mulher, ou uma mulher e outra mulher. Isso é indiferença, indiscriminação quanto a que sexo beija ou deixa de beijar qual sexo. Daí a importância de haver discriminação da causa homossexual (assim como da causa negra, feminina, etc.), para que ela ganhe força e seja descriminada e indiscriminada no seio da sociedade.

Lembrei de alguém que nunca foi acusado (pelo menos que eu tenha ouvido falar) de discriminação (segunda definição): Tim Maia. Lembram do "só não vale dançar homem com homem e nem mulher com mulher"? "O resto vale!" Liberdade de expressão ou homofobia?

PS: Seguem, em ordem, link para vídeo com o depoimento do pastor Silas Malafaia na Câmara contra o PL 122, e argumentações de Jean Wyllys, deputado federal ativista do movimento LGBT, contra Silas Malafaia.

http://www.youtube.com/watch?v=TCnAGmuXOUc&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=nSX0aIOJCgs



terça-feira, 13 de novembro de 2012

'Crime de ódio: liberdade de expressão?' ou 'Do cálculo do sarcasmo'

Negócio é o seguinte: dois artigos de revista, um da Veja, revista de maior circulação neste país da piada pronta, e o outro d'O Tempo, jornal de grande circulação em Belo Horizonte. 

No primeiro, tratava-se de criticar as supostas regalias que os homossexuais estariam demandando da sociedade, como se eles tivessem direitos especiais por serem homossexuais, e isso seria (de acordo com JR Guzzo) um tiro pela culatra, pois se eles querem ser tratados iguais, que parem então de pedir direitos só para eles. E cita pelo menos dois desses direitos "duvidosos": o direito homossexual de doar sangue e o de casar. Quanto ao primeiro, Guzzo diz que nem todos podem doar sangue, o que é fato. A população que não pode doar sangue são, segundo ele próprio, pessoas com diabetes, hepatites e cardiopatas (com certeza ele queria falar da AIDS, mas se conteve...). Ou seja, pessoas que estão com doenças não podem doar sangue - o que é completamente razoável, afinal, quem quer receber sangue que só vai fazer piorar a situação? Freud nos ensina que é importante escutar dois assuntos que nada têm a ver com o outro, mas que são enunciados em sequência: isso implica sua conexão (ou, em termos freudianos, sua associação 'livre'), de modo que os dois assuntos estão, sim encadeados. Com isso, deduzo que Guzzo simplesmente chamou os homossexuais de doentes, que não podem doar sangue porque talvez infectem os machos desse Brasil com viadagem. Mas ele não ficou por aí. Seu segundo argumento, o da restrição ao casamento entre homossexuais, foi ao subsolo do fundo do poço. Cito: "o mesmo acontece em relação ao casamento, que tem limites muito claros: o primeiro deles é que o casamento é, por lei, a união entre um homem e uma mulher; não pode ser outra coisa". Bom, a primeira oração está correta; o casamento é, de fato, por lei, a união entre um homem e uma mulher. Ainda não está decretada uma lei que autorize o casamento homossexual. Já a segunda oração é simplesmente idiota: 'não pode ser outra coisa'. Isso é a coisa mais animalesca que se pode dizer, já que o ser dito humano é simplesmente a sede de quaisquer possibilidades de existência nesse universo.  Tudo pode ser outra coisa. E lembremos, é claro, que nenhuma lei nunca foi mudada neste país. Sempre vivemos com as mesmas leis desde o nosso nascimento enquanto nação, e nunca poderemos mudá-las...

Mas a coisa não parou por aí. Ainda em seu artigo Guzzo continua a tentar impor sua animalidade. Comentando outras restrições para o casamento, diz que quaisquer outras uniões, que não sejam entre homens e mulheres, não geram filhos, nem uma família, nem laços de parentesco. Com toda sua animalidade, Guzzo restringe o casamento à parte animal do ser humano: a produção, via cópula, de descendentes e laços de família. O ser dito humano pode fazer família em nível estritamente simbólico, como por exemplo, no caso mais famoso desse tipo de laço: 'somos todos irmãos filhos de Deus', com o qual opera o cristianismo. Inclusive já há orientações de políticas públicas que consideram como família vínculos não co-sanguíneos entre pessoas. Isso sem falar em filhos adotivos (como, de fato, todo filho é). 

Mas o subsolo do poço foi o seguinte: o último item de restrições para o casamento, segundo Guzzo, é mais radical. E cito com água na boca essa daqui: "um homem também não pode se casar com uma cabra, por exemplo. Pode até ter uma relação estável com ela, mas não pode se casar". Ele está certo: hoje em dia, a lei não permite o casamento entre um cabra(-da-peste) e uma cabra. Tal como o casamento gay. A lei não permite. E, como uma lei não pode ser mudada...

Mas, apesar de tudo isso, tenho que concordar com uma parte de seu artigo. Segue: "qualquer artigo na imprensa que critique o homossexualismo é considerado "homofóbico"; insiste-se que sua publicação não deve ser protegida pela liberdade de expressão, pois "pregar o ódio é crime". Mas se alguém diz que não gosta de gays, ou algo parecido, não está praticando crime algum - a lei. afinal, não obriga nenhum cidadão a gostar de homossexuais, ou de espinafre, ou de seja lá o que for. Na verdade, não obriga ninguém a gostar de ninguém; apenas exige que todos respeitem os direitos de todos". Há diferença (apesar de muitas vezes ela ser indiscernível) entre pregar o ódio, que é previsto no código penal, e dizer que não se gosta de gays (o problema do indiscernível está justamente no 'ou algo parecido', a que Guzzo se refere), que realmente não é crime, é liberdade de expressão. Se não pudermos dizer que acaso não gostamos de gays, estamos em maus lençois...

Bom, pra finalizar essa primeira parte, sobre Guzzo, me pareceu que ele não quer ver, ou escutar, que, mesmo com os inúmeros 'progressos' alcançados pelos homossexuais na busca da uma indiferença de direitos (não vou falar em igualdade, pois ninguém é igual a ninguém, seja perante a lei, seja na ausência dela), há discriminação (ou seja, diferenciação), há tolerância para com eles... E se tem uma coisa que é nojenta nas hipocrisias desse planeta é a tal da tolerância (cf. abaixo, "Brasil, um País de Quem?"). Se o Brasil fosse um país sério, e não o país da piada pronta, iniciaríamos imediatamente uma campanha seriíssima (sem aspas) a favor do casamento entre homem-caba-macho e cabras (fêmeas, é claro... homossexualismo não!). Nada melhor do que fazer uma piada séria para combater uma séria piada sem graça.

Mas, e ainda, temos nosso segundo caso de bestialidade humana na semana. O colunista Walter Navarro (que às vezes por acaso escuto na BandNews com muito desgosto) me lança um artigo falando sobre a questão dos Guarani-Kaiowá. Começo pelo título do artigo: "Garani Kaiowá é o c... Meu nome agora é Enéias, p...". Sim, é realmente esse o título do artigo. Bem chulo, bem brasileiro. Nada contra falar palavrões em si em meios de comunicação de maior alcance, acho até importante. Mas no caso, o conteúdo do artigo mostra que não convinha o contexto desses palavrões. Vejamos por quê. 

Primeiro, ele começa criticando os outrora chamados ativistas de sofá: pessoas que se utilizam das redes sociais para propagar informações que acaso ajudem em alguma causa - como precisamente aconteceu com a questão Kaiowá. Se não tivessem havido os twitaços, nem a ampla repercussão nas mídias alternativas (como Facebook e twitter), o governo não teria sentido a pressão popular, nem teria marcado a reunião de urgência que marcou, na qual se decidiu pela revogação da reintegração de posse por parte dos fazendeiros que tiveram suas terras 'invadidas' pelos índios. Ele chama esse ativismo de "coisa mais chata, brega, hipócrita e programa de índio". Tudo bem, ele pode achar o que ele quiser disso... ele tem todo o direito de ser um idiota e se expressar como tal... 

E prossegue: "uma dessas chatas do Facebook reclamou da minha gozação dizendo que todo brasileiro é Guarani-Kaiowá. Eu não! Nunca nem ouvi falar, e se tiver que escolher, prefiro descender dos tapaxotas ou tapaxanas. Mas bom mesmo é de destapar...". Bom, ele realmente não tem que ser Guarani-Kaiowá, nem brasileiro e nem heterossexual. Isso é problema dele, o que ele é ou deixa de ser: por mim, podia inclusive desapareSER. Agora, já me parece cruzar a linha da liberdade de expressão para crime de ódio fazer pouco dos (nomes dos) índios, como os Tapajós. Mas cabe discussão.

Mas em seguida, o cara solta realmente a pérola do artigo: "Como diriam o Marechal Rondon e os Irmãos Villas-Boas: 'Índio bom é índio morto'! 'Matar, se preciso for, morrer nunca'". Se isso não configurar o crime de ódio, não sei mais o que o seria. Vejamos (ou melhor, leiamos, pra não ficar com cara de revista Veja) o que a lei 7716 do código penal, de 5 de Janeiro de 1989, diz em seu artigo 20: "Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa". A questão que fica é: o crime de ódio é liberdade de expressão? Se Navarro não for enquadrado, e punido conforme a lei, a resposta é sim, e tudo o que a lei classifica como crime de ódio tem que ser imediatamente considerada uma legítima liberdade de expressão. Caso contrário, resposta não. Pois não vejo como fazer troça, incitar a violência e a discriminação racial pode não ser crime de ódio. Lógico que cada caso é um caso, não é matéria simples fazer hermenêutica de lei, e as decisões têm que ser tomadas ad hoc. Mas neste caso... pouco-caso com os índios. 

Os dois artigos, da Veja e d'O Tempo, estão tratando do mesmo tema: liberdade de expressão x crime de ódio. No primeiro, se houver crime de ódio, ele se daria pela lógica ardilosa com que Guzzo tenta desclassificar a busca de direitos dos homossexuais. Se não houver, ele é simplesmente mais um animal que fala merda por aí: com todo o direito.

Mas o artigo de Navarro tem muito mais elementos enquadráveis no artigo 20 da lei 7716 (que na minha humilde opinião de leigo em direito, está ainda malescrita, por não distinguir com mais precisão o que significa discriminação, preconceito, etc). Além de todo o contexto, desde o título até a última linha, a frase clamando a morte dos índios é totalmente configurável como crime. 

PS 1: Bom, acabo de ver umas postagens que disseram que o próprio texto é uma ironia ou um sarcasmo. Se isso for, quanto melhor; mas seria bom uma desambiguação por parte do autor, pois o mal-entendito gerado foi bem grande, e, com certeza o prejudicou (haja visto que ele retirou sua página do Facebook do ar após o artigo circular na rede nesta manhã). Talvez ele tenha sido tão inteligente nesse artigo que nós, a "protérvia ignara" (termo que ele usa no texto), não conseguimos captar o refinadíssimo duplo-sentido do seu texto. Quem quis criar o mal-entendito foi ele... O problema é que um artigo assim corre o sério risco de ser o tiro pela culatra: ao invés de mostrar a crítica de forma sutil, esconde-a demais, causa um erro de comunicação (e ele, como comunicador, deveria saber calcular isso melhor). Como se diz: brincadeira tem hora (quer dizer, cálculo)...

PS 2: uma única frase do texto de Navarro pode corroborar a ideia de que se trata de ironia. Ao citar o Marechal Rondon, Navarro, troca os lugares das palavras 'matar' e 'morrer'. A frase original foi: "morrer se for preciso, mas matar nunca". Não sei se calculado ou não.

De modo que, para concluir, digo: o texto de Navarro é sarcástico? Se sim, é uma liberdade de expressão (ainda que mal calculada como sarcasmo); se não, crime de ódio.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Whatever doesn't kill you makes you... str@nger


Toda vez que algo traumático acontece na vida de alguém, algo muda. Nitidamente acontece um 'antes' e um 'depois' de cada porrada do Haver, ou seja, o antes e o depois de se deparar com a infinitude da existência, chamada Real. Um trauma é um acontecimento de contingencia que te lembra (erinnern) que é impossível morrer, quer dizer, é impossível não haver a existência, e esse é O Desejo humano por excelência. Traumas são eventos na existência que te apontam o desejo de que exista a inexistência (ou que inexista a existência): "pára tudo que eu quero descer" significa, como diz Édipo: "mé funai" ("antes eu não existisse", "antes eu não houvesse"). Mas não há para onde 'descer' da existência, não é possível morrer. Quando um corpo para de funcionar, isso não significa a Morte, pois a Morte seria o gozo absoluto, seria viver a própria morte, ter o gozo dela, experienciá-la. Mas pense bem: se for possível viver a Morte, se houver a existência da Morte, se eu experimentá-la, ela não será a Morte (de acordo com a lógica do conceito freudiano de pulsão de morte), pois o desejo de morrer é o desejo de que nunca tivesse havido desejo em primeiro lugar. E isso é impossível, pois HÁ o desejo, e é desejo de que não tivesse havido desejo! Se houver, qualquer coisa, inclusive ele próprio, o desejo deseja que não haja e que não tenha havido. O que é impossível de saída, pois o desejo que não haja desejo HÁ. Não é possível morrer, ou seja, haver experiência de Morte, haver a satisfação total que só a Morte traria, já que nada na vida, na existência, (se) satisfaz por inteiro. O trauma é passar pela experiência de quase-Morte, digamos assim, quando se saca que não há Morte, e é isso que traumatiza: haver, sem escapatória, condenados a satisfações aleijadas, pois nenhuma prótese cura a existência: condenados à Vida - isso sem pecado original.

Felizmente - ou não - podemos esquecer que não podemos morrer e chafurdamos na existência, ou melhor, nas coisas da existência: escolhemos um modo particular para tentar morrer, produzimos um sintoma. Que nada mais é que um cover aleijado daquela satisfação total(mente) impossível: simulacro da inexistência, simulacro da Morte (que não há). Por isso Lacan disse: "a Morte entra no domínio da fé". O desejo é acreditar na Morte, e isso é inclusive arreligioso. Mas, retomando, quando estamos chafurdados num sintoma, num modo particular de haver, ficamos estagnados, seguindo programas que se instalaram em nossa linguagem e isso nos normaliza, nos dita as normas de haver, o que nos animaliza. É muito fácil esquecer que se é humano: mais de 90% do tempo somos animais ou robôs. Somos normais, obedecendo ordens, programações culturais, familiares, sociais, etc. Tudo isso são tentativas frustradas de morrer. Os programas, os sintomas, são modos particulares de chegar à Morte, mas por meio da Vida, da existência. Aí fica-se morrendo a vida inteira num programa falido, que só serve para atrapalhar que se morra em outras formas de vida: ele resiste. É nesse momento que se procura alguma coisa, uma auto-ajuda, um espírito ou um psicanalista. 

Desses três, o único que vai utilizar o trauma como cura (isso inclusive a ponto de usar a auto-ajuda ou o espírito para tal) é o analista. Isso porque sua postura deveria ser a de conduzir aquele rebanho de sintomas que as pessoas o entregam para o cume da relação entre haver e não haver, ou seja, entre a vida e a morte, a existência e a inexistência. É apenas passando por esse lugar que pode haver reprogramação de uma pessoa, o que pode deslocar seus sintomas, ou diluí-los na economia psíquica, que é o que se conceitua como 'cura' na psicanalise: é mais como uma procura por cura, e os arranjos emergentes dessa procura são as próprias curas para o incurável, que é haver, ainda. A cura é um processo, tal como a verdade, e não um resultado, uma configuração estática. Mas a pessoa só se dá conta de que ela pode ser qualquer coisa (ou seja, (pro)curar-se) quando ela se dá conta que não pode fazer nada quanto à possibilidade de realizar seu verdadeiro desejo: morrer. Já que não vai se conseguir o que se realmente queria, qualquer coisa serve pra satisfazer um pouquinho... é só o que dá pra fazer mesmo... Aí, fica-se mais disponível para diferentes formas de viver, ou seja, diferentes formas de morrer. De modo que, quando de algum modo, em alguma situação da existência, isso acontece, quer dizer, quando se toma consciência de que não é possível a Morte (e isso é traumático), tanto faz como se vive... nisso, o sintoma fica mais patético... aí percebe-se que não se precisa dele, pois não é o único, pode-se arrumar outro. É o que geralmente acontece. E então a pessoa se estranha, estranha as novas possibilidades de ser. Imaginem, ou lembrem, como é passar de heterossexual a homossexual. Estranho! Isso acontece porque a pessoa passou por esse Cais Absoluto, em que a consciência da inexistência da inexistência indiferencia as formas normalizadas de existir, de haver, e abre a possibilidade de que formas estranhas compareçam, novos sintomas, que nada mais são do que os novos modos de crer na Morte.

Enfim, tudo isso para falar do filme do Batman, o Cavaleiro das Trevas, que tem a atuação primorosa de Heath Ledger, aquele ator que viveu o Coringa e morreu de suicídio após vivê-lo. Em certo ponto do filme, uma pessoa pergunta ao Coringa: "what do you believe in?", se referindo aos sintomas que ele mesmo acreditava que deviam imperar: honra, moral, etc. Ao que o Joker responde: "I believe whatever doesn't kill you simply makes you... stranger"! Muito melhor do que Nietzsche. Para quem não entendeu, é o seguinte: a frase original é em alemão e é: "o que não te mata, te faz mais forte". Traduzida pro inglês, fica "whatever doesn't kill you makes you stronger". Ao trocar 'stronger' (mais forte) por 'stranger' (mais estranho), o Coringa ressalta o lugar para onde o analista conduz os sintomas que se lhe apresentam: para o lugar onde não se morre, e do qual só se pode retornar como um estranho às formas até então vigentes de viver. Sacar que é impossível morrer é o que te faz estranhar quaisquer modos de viver, e isso abre outras possibilidades de viver, quer dizer, de morrer. Apurando mais um pouco a frase, vemos que "whatever" é melhor descrito como "o que quer que", de modo que "o que quer que não te mata, te faz mais estranho". Isso se traduz em: o que quer que te lembre que é impossível morrer te faz mais estranho.

O analista, para haver, deve ser Coringa...