segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Políticas do Ser e políticas do Haver

“Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos, num lusco-fusco da consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser”

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, #63)

Haver. Ser. Universo. Via Láctea. Sistema Solar. Terra. América. Do Sul. Brasil. Belo Horizonte. Baixo Anchieta. Pium-í. 512. Casa C. 

Fevereiro 2014.

Vivemos tempos difíceis do ponto de vista do mal-estar na civilização, como Freud colocava. Esse mal-estar é caracterizado pelos tipos de relações que se estabelecem entre as pessoas. Vemos no Brasil uma crescente cisão social se consolidando, o que pode levar a uma guerra civil num sentido mais específico do termo – pois já há uma guerra civil não declarada. Especialmente após as manifestações de junho de 2013, todos os segmentos sociais estão se sentindo no direito de reivindicar algo – sejam eles da chamada ‘direita’ (vulgos ‘coxinhas’, ‘reaças’, ‘fascistoides’, etc.), sejam eles da chamada ‘esquerda’ (vulgos ‘comunistas’, ‘petralhas’, etc.). Não direi todos, mas grande parte dos debates sobre o acirramento do conflito social que tem se estabelecido é polarizado entre essas duas (o)posições políticas – ou seria melhor dizer éticas?

Nunca fui muito chegado a oposições: o bem contra o mal, o belo contra o feio, o certo contra o errado, a esquerda contra a direita, etc. Isso porque quando se defende a oposição, sempre se está em um dos lados dela: ‘isso é bom’ (porque sei o que é o bem), ‘isso é belo’ (porque aquilo é feio), etc. Ora, me parece óbvio que o significado de cada uma dessas palavras – o ‘bem’, o ‘belo’, o ‘certo’ – não é universal, variando no tempo e no espaço (social). Então, hoje posso estar do lado do ‘bem’, mas daqui a algum tempo posso perfeitamente perceber que o que eu considerava ‘bem’ é, retrospectivamente, ‘mal’. E me surpreendo enquanto dividido entre as duas (o)posições: é o lusco-fusco da consciência. O filósofo Heidegger, alemão, aderiu à ideologia nazista para depois perceber a cagada que era fazê-lo, se arrependendo disso profundamente. Por muito tempo ficou estigmatizado como um cara ‘do mal’, até recuperar alguma credibilidade. Vemos como é fácil uma posição ‘do bem’, claramente oposta ao ‘mal’, se tornar, na verdade, o próprio ‘mal’. Fernando Pessoa é límpido nesse aspecto: “não sei o que é o bem, nem sei se o faço quando julgo que o faço” (Livro do Desassossego, #208). Consolidar-se numa das (o)posições e combater a Outra está no coração daquilo que Freud chamou de ‘narcisismo das pequenas diferenças’, na qual tomamos como bode expiatório de nossos grupos (ou de nosso próprio ‘eu’) o outro no que ele tem de mais íntimo conosco. Um grande exemplo disso é a disputa de arianos vs. judeus. Hitler disse uma frase que mostra nitidamente o que é esse narcisismo: “O judeu habita em nós. Porém é mais fácil combate-lo na sua forma corporal do que sob a forma de um demônio invisível” (http://www.scielo.br/pdf/pc/v19n1/05.pdf). É precisamente o demônio invisível que habita em nós o nosso próprio Outro, que sempre desconhecemos tão bem, presos que estamos na (o)posição com a qual nos identificamos, sem perceber que, mais cedo ou mais tarde, seremos (se já não somos) o Outro. E esse movimento entre uma posição e outra é feito na penumbra...

Assim, o que me incomoda na crescente cisão sócio-política entre a esquerda e a direita no Brasil é a identificação cada vez mais decantada sobre o que é ser de ‘esquerda’ e o que é ser de ‘direita’. Ora, vejamos o governo Dilma, do PT, que é praticamente “o” nome tradicional da esquerda nesse país – vide a fundação do partido com Lula, proletário, etc. Logo que assumiu, o governo Dilma (o do Lula nem tanto, eu diria) sistematicamente tem cumprido uma agenda tradicionalmente ligada à direita: sempre beneficiando as grandes empresas que exploram, segundo os descaminhos do capitalismo, os próprios trabalhadores que fundaram o partido, como FIFA, Belo Sun, EBX, Odebrecht, etc.; fazendo alianças com partidos de direita para se manter no poder ao preço da decadência de sua ideologia original esquerdista (vide Lula defendendo Sarney...); promovendo remoções populacionais higienistas e ‘progressistas’ (pois índios e pobres são pessoas ‘atrasadas’); o descaso com questões ambientais e de direitos humanos em prol de empresários ruralistas, e várias outras posturas que sempre foram consideradas de direita. Com uma ex-querda destas, ninguém precisa de direita. Isso já mostra o reviramento que houve na posição política do PT e da esquerda desde que chegou ao poder.

Não apenas no plano político há uma ‘esquerda’ e uma ‘direita’ que frequentemente invertem papeis (geralmente é a esquerda se ‘direitificando’, não o contrário), mas no plano de cada um de nós, seres ditos humanos, há uma cisão (o termo freudiano é Spaltung) entre (o)posições. Chama-se mecanismo mental, vulgo Inconsciente. O que quero dizer é que o próprio mecanismo mental dos seres humanos é fundado em uma divisão entre (o)posições que se reviram uma na outra com extrema facilidade (apesar das inércias estacionárias) – como vemos acontecer todos os dias na vida: é o judeu que mora em Hitler, é a direita que mora na esquerda, o mal que mora no bem, o ódio que mora no amor. E vice-versa. Por isso é que não gosto muito das oposições, pois elas sempre fazem o desfavor de exacerbar um dos lados em detrimento do outro. Prefiro quando elas transitam entre si, mais indiferentemente.

Mas também sei que tentar escapar das oposições é um sonho que não se torna realidade. Jamais. Isso porque tudo o que existe, existe como sendo alguma coisa e não outra, logo participando do jogo de oposição: sou Bernardo, e não outra pessoa (qualquer que seja). A gravidade cai pra baixo, e não pra cima; estou em Belo Horizonte, e não em outro lugar; o azul não é vermelho, o dia não é a noite, etc. As realidades se constituem como reificação de um dos polos da oposição – notem que não falo do real, mas sim das realidades; o real é outra coisa. Então não há escapatória das realidades, elas se impõem: o fundamento da própria existência é oposicional, modal. Logo, há que se fazer escolhas – não há escolha quanto a isso. De modo que ou se é de ‘esquerda’, ou se é de ‘direita’.

No senso comum que vige em nossas redes sociais de cada dia, me alinho com o que a geral chama de ‘esquerda’. Mas se isso incluir o atual PT, não me considero isso mais. Além disso, outras posturas de pessoas de ‘esquerda’ me desagradam; a arrogância de acharem que eles, sim, sabem o que é o Bem, pois os direitistas são uns trogloditas, uns ‘coxinhas’, uns babacas, desconhecendo a própria Spaltung que os constituem: há o ‘coxinha’ dentro de cada um de nós; vejo mais uma vez o narcisismo das pequenas diferenças aí. Os direitistas fazem a mesmíssima coisa, só que com as palavras ‘comunistas’, ‘petralhas’, e tal. Todos se xingando por pertencerem a grupos diferentes, mas no coração de cada um o Outro está lá, latente. E é difícil se alinhar com o que os esquerdistas e o s direitistas dizem ser a esquerda e a direita porque até a diferença entre essas duas (o)posições políticas varia se você perguntar pra um ‘esquerdista’ e para um ‘direitista’

É claro que, na hora de um embate do qual não se pode ficar ‘em cima do muro’ - como uma guerra civil, por exemplo - há que se tomar partido. Aliás, partido é o próprio nome de uma realidade; sempre parciária, sempre hemiplégica. Então quero aqui tomar o meu partido, não antes sem definir, para meu próprio uso na hora de tomar algum, o que sejam ‘esquerda’ e ‘direita’, com o mínimo de ambiguidade possível, para manter alguma coerência comigo mesmo.

Para tal, parto do pensamento de Deleuze e o adapto a uns esquemas que já tenho em mente. Não sou leitor de Deleuze, mas conheço algumas coisas de sua obra. Ele tem uma entrevista em que faz um abecedário de definições de termos filosóficos, políticos, etc. Perguntaram a ele: “’E’, de esquerda; o que é ser de esquerda?” Primeiramente, ele responde que não há governo de esquerda – que o diga o PT! “Não é que não hajam diferenças entre os governos. O que pode existir é um governo favorável a algumas exigências de esquerda. Mas não existe governo de esquerda porque a esquerda nada tem a ver com governo”. Como podemos entender essa última frase? Eduardo Viveiros de Castro dá uma ideia a partir de uma própria cisão que há na esquerda, entre ‘tradicional’ e ‘libertária’: a primeira, “com sua incapacidade de escapar de uma visão produtivista da relação entre homem e natureza, de sua fascinação não dita pela força disciplinar do Estado, pela organização política sob a forma do partido e pela sua crença na história como realização progressiva que marca com o selo do arcaísmo aquilo que sempre esteve fora do processo de modernização capitalista. Contra isso, apareceria uma ‘esquerda libertária’, à sua maneira tributária dos ideais antitotalitários de maio de 1968, ciosa da afirmação das diferenças e desconfiada dos arranjos institucionais que a esquerda tradicional procuraria preservar”. A ‘esquerda’ tradicional é o que Deleuze chama de ‘governo favorável a exigências de esquerda’ (aqui cabe tranquilamente o PT), enquanto a esquerda esquerda mesmo seria a ‘libertária’ (existe algum partido que se encaixe aqui?).

Mas, levando a discussão para termos mais abstratos e formais, Deleuze precisa melhor do que se trata: é uma questão de percepção. Ele não fará a oposição em termos de esquerda e direita, mas de esquerda e não-esquerda. “Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo”. É um pensamento que, de diferença em diferença, de particularidade em particularidade (começando com a maior delas, o próprio ‘eu'), tece uma malha social ‘universalizante’: forma um ‘todo’ a partir das partes, sem abrir mão delas. Mas, como sabemos, a soma das partes não é o todo: não existe síntese, por mais que Hegel sonhe. Nada de harmonia aí. O importante é notar que parte-se da diferença particular para atingir um suposto universal. Parte-se do ‘eu’ para o ‘nós’: o 'nós' é fundamentado no 'eu'. É como pensar que os problemas da China estão tão longe quanto o país está do Brasil – isso nada tem a ver conosco, já temos os nossos próprios problemas. Essa é a raiz do segregacionismo, do narcisismo das pequenas diferenças – o termo é preciso porque mostra que fica-se idolatrando a própria diferença, identificado a ela, recusando-se a ser outro, a haver outro. Como no esforço de Hitler para não deixar o judeu dentro dele sair do armário - ele se esforçava para olhar no espelho e ver apenas o Hitler, e não o judeu. É a posição geradora de nacionalismos, de ufanismos, de 'dois pesos-duas medidas', do culto à ordem-tal-como-eu-a-entendo - é só ver como a ditadura se instalou no Brasil para restaurar a ordem e o progresso da nação...

Enquanto a percepção dos esquerdistas seria o contrário: primeiro, eles “percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois o continente – europeu, por exemplo –, depois a França, até chegarmos à rua Bizerte, e a mim. (...) Primeiro, percebe-se o horizonte. (...) Ser de esquerda é começar pela ponta”, e, adaptando o que ele disse, ser de esquerda é perceber que os problemas da China estão mais próximos de nós do que os problemas do nosso bairro – talvez os problemas da China estejam causando os do nosso bairro, e vice-versa. Neste tipo de percepção, não se parte das diferenças individuais de cada logradouro ou de cada indivíduo, cada parte – aliás, o indivíduo não existe, visto que o ser humano é dividido ‘por natureza’ (ou ‘por cultura’, como queiram) – para se chegar a um impossível Todo enquanto soma delas. Parte-se de uma indiferença (no sentido de que não interessa qual é a sua situação em particular, não interessa qual é a sua especificidade, a sua diferença, o seu endereço) que está no ‘contorno’, no ‘mundo’, ou seja, é um para-todos em que não há espaço para privilégios particulares: em suma, o que Parmênides chamava de Um. Um-niversal, eu diria. Quer dizer, parte-se do Todo (o Um) para abordagem da interdependência e indistinção entre as oposições, as partes. Em linguagem utópica poderia-se dizer: como resolver os problemas do mundo para que eu consiga resolver os meus? – já que não há fronteira entre os meus problemas e os do mundo porque sou parte desse mundo e esse mundo é parte de mim. Parte-se do ‘nós’, quer dizer, da indiferença quanto às particularidades, para o ‘eu’, que já não pode ser mais considerado como sozinho: ‘eu’ é que passa pelo ‘nós’. O Um como regente dos processos do Múltiplo, e não o contrário. O Um não como síntese entre oposições, isso não existe, mas o Todo como o Absoluto, o que significa nada mais nada menos do que o pré-opositivo como tal, chamado de Real, ou pré-ontológico, se quiserem. Essa postura implica a garantia das diferenças, pois, se se é indiferente às diferenças, todas têm espaço, tanto faz (valetudo em latim é saúde). Isso é o contrário do segregacionismo. É um agregacionismo, pois agrega valor aos discriminados, aos diferentes: todos são iguais perante o Um, que trata a todos indiferentemente, ou seja, com o mesmo valor. Ninguém é mais (diferente) que ninguém. Todos são igualmente diferentes, logo as possibilidades de existência das diferenças se equiparam entre si – todas as diferenças têm que ter a mesma possibilidade de existência.

Vemos que há uma oposição muito clara entre os dois tipos de percepção. Vou retomá-las em outros termos, os de uma certa psicanálise. A percepção de esquerda começa no que Deleuze chamou de ‘mundo’, ou ‘contorno’; quero chamar isso de existência, ou, pra ser mais preciso, de Haver. Se há algo que vincula todas as pessoas, independente de credo, cor, raça, nacionalidade, etc., independentemente de quaisquer diferenças em particular entre si, é o fato que , para todos nós: todos nós compartilhamos a existência, pré-ontologicamente. Há o Haver, para todos; mas ninguém sabe como haver, como existir (se sendo atleticano ou cruzeirense, ariano ou judeu, etc.) – é só a partir daí que a ontologia entra. Haver é fora da oposição em que se engendram os seres, as diferenças em particular: todas as diferenças estão nele, mas, como tal, haver se situa para além delas – chama-se real, impossível de ser apreendido, como Lacan e Kant queriam; tudo é-feito de Haver. Haver é o ‘contorno’, é o Um; já o 'endereço' é o que se forma dentro do haver, ou seja, as diferenças, as particularidades (que vem de partícula, lembro-lhe), as oposições: as formações do Haver. Vemos aqui as funções do Todo e da Parte (donde a palavra ‘partido’): o Haver e as suas formações.

A função do Haver indiscerne fronteiras, borra limites, acende a penumbra, o que permite a percepção de que há uma indistinção entre os problemas ‘de lá’ e os ‘de cá’; permite a percepção da homogeneidade existencial entre ‘eu’ e o ‘outro’, ou seja: ‘eu é outro’, como dizia Rimbaud; ‘o outro sou eu’, é o complemento dessa frase. Toma-se um choque do Haver quando uma situação de indistinção entre (o)posições emerge: eu e tu, por mais que sejamos opostos, temos uma única coisa em comum: existirmos, juntos, dentro do mesmo barco, chamado Haver – que, obviamente, nunca veio de lugar nenhum e nem nunca vai pra lugar nenhum, presos que estamos, todos, independentemente do que nos difere enquanto tais, na imanência absoluta da existência. Perceber isso é perceber o ‘mundo’ e o ‘contorno’. Tem-se aí o vetor da esquerda deleuziana: da indiferença entre as diferenças – todas são interdependentes a ponto de não ser possível discernir completamente entre uma e outra coisa. É a alteridade da identidade. É perceber que, como na anedota do arqueiro zen, quando atiro no outro, acerto em cheio a minha própria nuca.

Enquanto que a direita é aquela posição tomada a partir das formações do Haver, que, como tais, sempre se medem a partir de sua diferença para com as outras formações: é Hitler identificado com a diferença que o constitui (ser ‘ariano’), recalcando (esse é o termo) as outras diferenças (judeus). É a identidade da alteridade: uma alteridade (uma diferença) identificada consigo própria, impermeável à sua transmutação para com a alteridade de si – é Hitler querendo matar do lado de fora o judeu que habitava seu coração (veja que Hitler era, afinal, humano...). Assim, só a minha diferença é privilegiada quanto às demais: minha diferença é mais diferente que as outras, e nisso se perde completamente o contato com o Outro. As formações do Haver resistem, recalcitram quanto à possibilidade de seu reviramento em Outro: eu é eu, eu não é você: isso é assim, aquilo é assado. A fronteira, a distinção, se impõe enquanto segregação de todo e qualquer tipo: físico (pois o universo é feito de matéria, não de antimatéria - esta última está segregada do nosso universo), social, racial, sexual, individual etc. 

Podemos então resumir o que foi dito alinhando o pensamento de direita com o paradigma das formações do Haver, onde prevalecem as diferenças entre as diferenças, ou seja, faz diferença o outro ser diferente de mim, pois não há a menor chance de eu ser outro – resisto na minha identidade, minha propriedade privada maior; e alinhamos a esquerda com a indiferença entre as diferenças, quer dizer, não faz diferença que você seja diferente de mim; ambos existimos, estamos jogados no Haver, sem saber de onde viemos nem para onde vamos, e, pelo menos nisso, somos todos Um. É o reconhecimento de que, se hoje sou do bem e você é do mal, há a possibilidade de amanhã isso se revirar, e eu estar na pior... É uma identidade que não se identifica consigo mesma: sem propriedade privada, na penumbra entre ‘eu’ e ‘outro’.

Então temos os dois vetores: um que vai do múltiplo das diferenças rumo ao Um, e outro que vai do Um da indiferença rumo ao múltiplo. Não há Terceiro Lugar aí; estamos falando da existência e de seus modos; a existência, o Haver, é Um porque só há um Haver, só há “O” Haver, só há a existência, e, obviamente, não há o Não-Haver, não existe a inexistência – como o próprio nome diz. É o estado puro da Imanência: não existe transcendência. Logo, o que há é o Um, sem oposto inexistente – não existe o oposto do Haver e, como tal, Haver é pré-opositivo, pré-ontológico. Como surge então a oposição? Como se faz o Ser, o Partido? Ora, só pode ser de 'dentro' do próprio Haver (já que não existe o externo Não-Haver), para consigo mesmo: a chamada auto-diferença. Só há Uma oposição no seio do Haver, e é consigo mesmo: ou o Haver se manifesta como (o)posições, diferenças, realidades (como tais, múltiplas), ou o Haver se manifesta como Um, como real, como o próprio Terceiro Lugar indiferente às oposições entre as suas formações – o Haver é bífido, ele é uma única e mesma Spaltung. Mas essas oposições são mutuamente excludentes (por isso não há terceiro aí) – ou o Haver comparece como diferença ou como indiferença – ecce Spaltung! Em suma, a oposição é entre posturas direitistas, ancoradas no Ser, nas diferenças, e posturas esquerdistas, navegantes do Haver, na indiferença. Por isso, há que se tomar partido, sim, pois não se constitui realidade ficando em cima do muro; é a famosa covardia, fruto da angústia. Angustiar de nada adianta se não se faz uma escolha – aliás, não há escolha: há que escolher (o que não é dizer que se é obrigado, que é inevitável escolher um lado em específico – não: o inevitável é escolher). Por isso, aqui se escolhe a esquerda, se entendida nesses termos. Escolho por gosto (ou seja, sintoma) pessoal, não por motivos ‘nobres’ (como quem sabe o que é o Bem). Acho que é preciso se olhar no espelho e ver o Outro, não a própria imagem - é o que fundamenta minha decisão. Tento ver o coxinha que há em mim também... Mas não posso obrigar ninguém a ser como eu, a ter essa mesma postura: não posso impossibilitar alguém de ser diferente de mim (isso seria incoerente a indiferença) - a não ser que me impossibilitem de ser (in)diferente: nesse caso, há que se partir pra guerra, para não ser um voluntário da servidão. O que eu posso fazer é possibilitar que outros pensem assim (espero que não todos, pois aí iria tudo por águabaixo), que tomem o meu partido, a Esquerda. Por isso o texto e as argumentações.


Mas por quê chamar isso de ‘esquerda’, visto que no próprio seio da definição tradicional de esquerda há uma cisão, além do lastro de direita horroroso que passou a se decantar nessa palavra ao longo dos tempos? Por mim, chamem isso do que quiserem; pouco importa. Inclusive seria muito bom que se chamasse isso de ‘direita’, mas o lastro é qual horroroso, até mais. Chamem do que quiserem: o importante é a postura, a percepção; destas só existem duas, dentro do mesmo Um. O que vai ser? 


terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Sobre "Ninfomaníaca", de Lars von Trier

Socorro!
Não estou sentindo nada
Nem medo, nem calor, nem fogo
Não vai dar mais pra chorar
Nem pra rir...

Socorro!
Alguma alma mesmo que penada
Me empreste suas penas
Já não sinto amor, nem dor
Já não sinto nada...

Socorro!
Alguém me dê um coração
Que esse já não bate nem apanha
Por favor!
Uma emoção pequena, qualquer coisa!
Qualquer coisa que se sinta...
Tem tantos sentimentos
Deve ter algum que sirva
Qualquer coisa que se sinta
Tem tantos sentimentos
Deve ter algum que sirva...

Socorro!
Alguma rua que me dê sentido
Em qualquer cruzamento
Acostamento, encruzilhada
Socorro! Eu já não sinto nada...

("Socorro", Arnaldo Antunes)

(Se você não viu o filme e não quer saber sobre ele antes de tê-lo visto, não leia este texto.)

Ninfomaniaca, o novo filme de Lars von Trier – que já é-nos conhecido de longa data por seus filmes controversos (ou seja, contra o verso, contra a versão dos conceitos em vigor) –, é provocativo pelo nome e pelo marketing. No cartaz oficial, os rostos de uns doze personagens se contorcendo em orgasmo. A antecipação que se tem é a de que o filme há de ser uma putaria, praticamente gozando na cara do espectador. No entanto, o que se vê (pelo menos nessa versão ‘light’, cortada) é um filme muito lúcido sobre a sexualidade humana (encarnada numa mulher) e um questionamento sobre os modos de sofrimento que as pessoas conseguem construir para si.

A trama é basicamente a seguinte: um homem judeu, Seligman (que em hebraico significa ‘homem feliz’) encontra Joe, uma mulher caída num beco, machucada, e a leva para sua casa para cuidar dela. Nisso, Joe começa a contar sobre sua vida, marcada pela sexualidade desde a mais tenra infância: “descobri minha buceta com 2 anos de idade”, diz ela. Desde criança ela teve muito interesse e excitação pelo sexo; ela e sua melhor amiga, “B”, pressionavam suas vaginas contra o chão, dentro do banheiro; contra a corda de escalar, na educação física, etc.

Chegada a puberdade, Joe se dirige até o garoto mais popular da escola – Jerome, um rapaz mais velho que tinha uma moto – e pede-lhe que este tire sua virgindade. É digno de nota as coordenadas simbólicas que esse rapaz tem para ela: ser o mais popular e ter uma moto. Não é à toa que foi ele que ela escolheu para deflorá-la. Porém, foi uma cena de sexo sem a menor emoção; o lugar era a oficina onde ele estava tentando consertar a moto (que não ligava); ela se sentou num colchão, no chão, e ele diz: é melhor você tirar a calcinha, né? Então ele se deita sobre ela e dá 3 estocadas; em seguida a vira e dá mais 5 por trás. Era o fim de sua virgindade; sem beijo, sem carícia, sem carinho, sem emoção, sem amor: sem sexo. Foi um sexo mecânico; ele a tratou como uma moto. Na verdade, ele tratou a moto melhor do que ela, visto que ele estava se dedicando a consertá-la. Foi um sexo reduzido a números: o 3 e o 5 das estocadas que ele deu; a marca não é emotiva, significante. É a marca de um vazio de experiência, de um vazio da própria marca. Ele em seguida se levanta, volta a tentar consertar a moto, como se nada tivesse acontecido ali, segundos antes. Ela se levanta e se vai – não antes sem passar por ele, mexer em algo da moto, que passa então a funcionar. É como se ela tivesse dito: “você não sabe fazer nem uma moto funcionar”. 

Joe passa a ter um certo desgosto por Jerome. Desde então não o viu mais. Então entra em cena a compulsão sexual de Joe. Isso começa com uma brincadeira que ela e sua amiga B se propõem a fazer: entram num trem e quem fizer sexo com o maior número de estranhos ganha um saquinho de chocolates. Assim ela começa a se tornar uma serial fucker; transa com vários e nunca mais do que uma vez com cada. Ela começa a participar de um grupo de pessoas com a mesma filosofia. Só que após um tempo, um dos membros diz que transou três vezes com a mesma pessoa, e foi repreendida por Joe. Essa outra garota então lhe diz: “você acha que sabe tudo de sexo, né? Só que você não sabe o ingrediente secreto do sexo: o amor”. Isso a irrita, pois ela não acredita nisso.

Enquanto ela conta esses casos a Seligman, este funciona como a voz da razão, tentando articular os desvarios dela em termos de conhcimento e ciência; por exemplo, quando ela falava da caça aos homens, ele comparava tudo o que ela dizia com pescaria; a isca, o anzol, as técnicas pra pegar um peixe. Ou os números 3 e 5, como os números da série de Fibonacci, que ele ainda tem a pachorra de explicar-lhe o que seja.

E Joe continua a contar os mais diversos casos que teve com os homens. Conta que era difícil conciliar a logística de ter um emprego normal e ter tempo para fazer sexo com dez homens num mesmo dia – os horários eram seguidos à risca. Às vezes um esperava na sala enquanto ela terminava com o outro. Ela conheceu vários tipos de pênis – e parece que era a isso que os homens eram reduzidos em sua vivência: pirocas. Pois em nenhum desses casos ela sentia emoção. Sua falta de emoção fica demonstrada por uma técnica que ela inventou para produzir “sentimentos”. Quando ela chegava em casa e tinham várias mensagens em sua secretária eletrônica, ela não se lembrava quem eram as pessoas que haviam ligado – ele não conseguia associar qual nome era de qual pica. De modo que pegava um dado, e jogava. A escala de 1 a 6 era a de dar uma resposta calorosa até não dar resposta alguma. Seus “sentimentos” por cada um dos homens eram produzidos pelo lance de dados. Ou seja, não havia sentimento dela por nenhum desses homens. O sexo era sempre mecânico; era como se ela não estivesse realmente lá. Era uma compulsão por fazer sexo sem emoção, sexo insosso. Era apenas um sexo “tapa buraco”: não era erótico, de forma alguma – eram apenas buracos a serem preenchidos por pirocas; não era um sexo entre uma mulher e um homem. Fica claro, então que sua compulsão sexual é uma repetição da sua traumática primeira vez – traumática justamente por não ter emoção. É como se ela estivesse eternamente repetindo essa primeira vez, não se sabe se na busca de algum sentimento ou se na fuga dele – inclusive tem um certo ponto do filme em que ela realmente diz que na verdade não são com muitos homens que ela transou; era como se eles fossem, todos, um único e mesmo amante. Provavelmente ela fugia da possibilidade de sentir algo por alguém; no entanto, ao se jogar tanto por aí, torna-se mais provável que uma contingência a faça sentir algo por algum desses homens. Se pensarmos que ninfas são animais em estágio ainda não desenvolvido (como Seligman explica a Joe), ninfomaníaca adquire o sentido de ser alguém maníaca, fixada, em uma fase mais arcaica do desenvolvimento – como a infância, ou seja, antes de ser desvirginada. Assim, é como se a compulsão de Joe fosse uma compulsão em ser desvirginada (até mesmo para aplacar sua efervescente sexualidade de ninfa), coisa que, de fato, não aconteceu com ela.

E foi uma contingência que a levou a reencontrar Jerome. Ela procurava um emprego como secretária no lugar onde Jerome trabalhava, numa gráfica. Ele tenta transar com ela, mas ela nega, pois ainda tem certo ranço dele pela "primeira vez" que nunca houve. Com isso, ele fica com raiva e dá umas pequenas humilhadas, pedindo por serviços mesquinhos, etc. No entanto, à medida que o tempo passa, ela começa a pensar em partes do corpo de Jerome, em especial as mãos, e tentar encontra-las em outras pessoas, formando um quebra-cabeça: uma peça de um homem qualquer era o nariz dele, outra o cabelo, outra a mão, etc. Ela começa a pensar que ama ele, que está apaixonada por ele, o que é questionável, pois ela não pensa nele, no que há de simbólico nele, tipo sua 'personalidade'. Ele é reduzido às partes do corpo, o que parece mais com algo da ordem do fetiche; não se trata do olhar, do tocar, do dizer (que extrapolam o mero corpo), mas sim do olho, da mão, da boca. Ora, lembremos que ele foi a pessoa que desvirginou o corpo de Joe, mas não desvirginou-a simbolicamente: ela não foi tocada por dentro – Joe é uma virgem de sentimento. Então esse “amor”, essa “fórmula secreta do sexo” talvez seja uma tentativa de sentir alguma coisa com a pessoa que a anestesiou para os próprios sentimentos. Talvez ela esteja tentando se ‘curar’. É questão complexa decidir se há amor aí ou não; não é porque ela chama esse fetiche de “amor” que há, de fato, amor (o que quer que isso lá seja): talvez ela apenas precise que seja ele para que ela possa realmente perder a virgindade. O fato é que ela escreve uma carta se declarando para Jerome e quando vai entrega-la em mãos, ele não está mais na gráfica. Havia fugido com a outra secretária, com quem se casou.

Seligman, em suas comparações didáticas dos sentimentos de Joe, evoca a polifonia de uma das obras de Bach para dizer da polifonia de homens da vida de Joe. Ele toma como exemplo uma peça que tem três vozes em contraponto. Ela, por sua vez, toma esta comparação e compara com três dos homens com quem já teve “relações”. Um deles é um homem meio banana, que faz tudo por ela, só quer o prazer dela, faz tudo o que ela manda. O segundo, ao contrário, é quem domina a cena, como um felino: ele é que a domina. E o terceiro é Jerome, que ela reencontra no parque após ele retornar do casamento falido. E os compara com as três vozes da polifonia, em que o amor, encarnado em Jerome, juntaria o sexo a alguma emoção, formando então o Cantus Firmus (nome da voz principal entre as três): a 'hamornia' musical entre sexo e sentimento.

Ela então descreve a cena de sexo com a pessoa amada: seu corpo treme de tesão, ela parece mais entregue a alguém do que nunca antes - até o modo de filmar já é diferente: trata-se de sexo propriamente humano, não apenas um coito. Enquanto ele a beija, a chupa e a penetra ela solta uma das frases mais importantes do filme – a penúltima frase: “preencha todos os meus buracos”. Ora, Jerome encarna o amor para ela; o amor é o ingrediente secreto do sexo; ela quer que Jerome a preencha; ela quer o que o amor preencha todos os seus buracos. Com isso, ela tem esperança de sentir algo, qualquer coisa. Isso lembra aquela música “Socorro”, de Arnaldo Antunes, citada na epígrafe. O amor, como a última esperança de sentimento, é o seu grito de socorro diante do sofrimento de nada sentir: ela esperava finalmente perder a virgindade com o homem que a desvirginou. Diante do pedido para preenchimento de seu vazio, Jerome se esforça genuinamente: tapa-lhe todos os buracos, até a hora em que o orgasmo vem. Nesse momento, Joe para, inerte, e Jerome pergunta: “qual é o problema? O que foi?” Joe responde: “não sinto nada”, e começa a chorar. O filme termina, orgasmaticamente broxante.

O que é interessante nessa última cena é que, quando ela se toca que não sente nada, isso a afeta. Ela chora, há algo de trágico em constatar isso: há um sentimento. Ela finalmente sente alguma coisa: algo se corta, algo se rompe nisso. Não é como nas outras vezes; é como se ela tivesse descoberto que nada sente, pois até então ela nem sentia que nada sentia: e perceber isso a afetou, a angustiou. E foi justamente com o amor que ela sentiu que nada sente: o amor, de fato, a fez sentir algo: o próprio nada. Pela primeira vez, Joe é marcada: ela perde sua virgindade sentimental. Se na primeira ‘primeira vez’ (e nas suas subsequentes repetições), ela nem diz, e nem sente que nada sente, quer dizer, não há marca de sentimento, nesta segunda ‘primeira vez’ algo parece a marcar: a ausência de sentimento. E isso ela sentiu. Há um paradoxo nessa marcação de ausência de sentimento. Pois pela primeira vez, não sentir nada a afeta, a marca. Talvez ela tenha se dado conta de que não adianta preencher todos os seus buracos: há um buraco impossível de ser preenchido, e esse buraco não é no corpo: é um buraco que não existe.

Quais serão as consequências dessa revelação para Joe? Como ela irá se rearranjar em seu sofrimento a partir dessa experiência de derrelição? Como ela passará a sofrer agora? Aguardemos o volume II, previsto para estrear em Março.