“Toda a vida da alma
humana é um movimento na penumbra. Vivemos, num lusco-fusco da consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser”
(Fernando Pessoa, Livro
do Desassossego, #63)
Haver. Ser. Universo. Via Láctea. Sistema Solar. Terra. América. Do Sul. Brasil. Belo Horizonte. Baixo Anchieta. Pium-í. 512. Casa C.
Fevereiro 2014.
Vivemos tempos difíceis do ponto de vista do mal-estar na
civilização, como Freud colocava. Esse mal-estar é caracterizado pelos tipos de
relações que se estabelecem entre as pessoas. Vemos no Brasil uma crescente
cisão social se consolidando, o que pode levar a uma guerra civil num sentido
mais específico do termo – pois já há uma guerra civil não declarada.
Especialmente após as manifestações de junho de 2013, todos os segmentos
sociais estão se sentindo no direito de reivindicar algo – sejam eles da
chamada ‘direita’ (vulgos ‘coxinhas’, ‘reaças’, ‘fascistoides’, etc.), sejam
eles da chamada ‘esquerda’ (vulgos ‘comunistas’, ‘petralhas’, etc.). Não direi todos,
mas grande parte dos debates sobre o acirramento do conflito social que tem se
estabelecido é polarizado entre essas duas (o)posições políticas – ou seria
melhor dizer éticas?
Nunca fui muito chegado a oposições: o bem contra o mal, o
belo contra o feio, o certo contra o errado, a esquerda contra a direita, etc.
Isso porque quando se defende a oposição, sempre se está em um dos lados dela: ‘isso
é bom’ (porque sei o que é o bem), ‘isso é belo’ (porque aquilo é feio), etc.
Ora, me parece óbvio que o significado de cada uma dessas palavras – o ‘bem’, o
‘belo’, o ‘certo’ – não é universal, variando no tempo e no espaço (social).
Então, hoje posso estar do lado do ‘bem’, mas daqui a algum tempo posso
perfeitamente perceber que o que eu considerava ‘bem’ é, retrospectivamente,
‘mal’. E me surpreendo enquanto dividido entre as duas (o)posições: é o
lusco-fusco da consciência. O filósofo Heidegger, alemão, aderiu à ideologia
nazista para depois perceber a cagada que era fazê-lo, se arrependendo disso
profundamente. Por muito tempo ficou estigmatizado como um cara ‘do mal’, até
recuperar alguma credibilidade. Vemos como é fácil uma posição ‘do bem’,
claramente oposta ao ‘mal’, se tornar, na verdade, o próprio ‘mal’. Fernando
Pessoa é límpido nesse aspecto: “não sei o que é o bem, nem sei se o faço
quando julgo que o faço” (Livro do Desassossego, #208). Consolidar-se numa das
(o)posições e combater a Outra está no coração daquilo que Freud chamou de
‘narcisismo das pequenas diferenças’, na qual tomamos como bode expiatório de
nossos grupos (ou de nosso próprio ‘eu’) o outro no que ele tem de mais íntimo
conosco. Um grande exemplo disso é a disputa de arianos vs. judeus. Hitler
disse uma frase que mostra nitidamente o que é esse narcisismo: “O judeu habita
em nós. Porém é mais fácil combate-lo na sua forma corporal do que sob a forma
de um demônio invisível” (http://www.scielo.br/pdf/pc/v19n1/05.pdf). É
precisamente o demônio invisível que habita em nós o nosso próprio Outro, que
sempre desconhecemos tão bem, presos que estamos na (o)posição com a qual nos
identificamos, sem perceber que, mais cedo ou mais tarde, seremos (se já não
somos) o Outro. E esse movimento entre uma posição e outra é feito na
penumbra...
Assim, o que me incomoda na crescente cisão sócio-política
entre a esquerda e a direita no Brasil é a identificação cada vez mais
decantada sobre o que é ser de ‘esquerda’ e o que é ser de ‘direita’. Ora,
vejamos o governo Dilma, do PT, que é praticamente “o” nome tradicional da
esquerda nesse país – vide a fundação do partido com Lula, proletário, etc.
Logo que assumiu, o governo Dilma (o do Lula nem tanto, eu diria)
sistematicamente tem cumprido uma agenda tradicionalmente ligada à direita:
sempre beneficiando as grandes empresas que exploram, segundo os descaminhos do
capitalismo, os próprios trabalhadores que fundaram o partido, como FIFA, Belo
Sun, EBX, Odebrecht, etc.; fazendo alianças com partidos de direita para se manter no
poder ao preço da decadência de sua ideologia original esquerdista (vide Lula
defendendo Sarney...); promovendo remoções populacionais higienistas e
‘progressistas’ (pois índios e pobres são pessoas ‘atrasadas’); o descaso com questões
ambientais e de direitos humanos em prol de empresários ruralistas, e várias
outras posturas que sempre foram consideradas de direita. Com uma ex-querda
destas, ninguém precisa de direita. Isso já mostra o reviramento que houve na
posição política do PT e da esquerda desde que chegou ao poder.
Não apenas no plano político há uma ‘esquerda’ e uma
‘direita’ que frequentemente invertem papeis (geralmente é a esquerda se
‘direitificando’, não o contrário), mas no plano de cada um de nós, seres ditos
humanos, há uma cisão (o termo freudiano é Spaltung) entre (o)posições.
Chama-se mecanismo mental, vulgo Inconsciente. O que quero dizer é que o
próprio mecanismo mental dos seres humanos é fundado em uma divisão entre
(o)posições que se reviram uma na outra com extrema facilidade (apesar das inércias estacionárias) – como vemos
acontecer todos os dias na vida: é o judeu que mora em Hitler, é a direita que mora na esquerda, o mal que mora no bem, o ódio que mora no amor. E
vice-versa. Por isso é que não gosto muito das oposições, pois elas sempre
fazem o desfavor de exacerbar um dos lados em detrimento do outro. Prefiro quando elas transitam entre si, mais indiferentemente.
Mas também sei que tentar escapar das oposições é um sonho
que não se torna realidade. Jamais. Isso porque tudo o que existe, existe como
sendo alguma coisa e não outra, logo participando do jogo de oposição: sou
Bernardo, e não outra pessoa (qualquer que seja). A gravidade cai pra baixo, e
não pra cima; estou em Belo Horizonte, e não em outro lugar; o azul não é
vermelho, o dia não é a noite, etc. As realidades se constituem como reificação
de um dos polos da oposição – notem que não falo do real, mas sim das
realidades; o real é outra coisa. Então não há escapatória das realidades, elas
se impõem: o fundamento da própria existência é oposicional, modal. Logo, há
que se fazer escolhas – não há
escolha quanto a isso. De modo que ou se é de ‘esquerda’, ou se é de ‘direita’.
No senso comum que vige em nossas redes sociais de cada dia,
me alinho com o que a geral chama de ‘esquerda’. Mas se isso incluir o atual
PT, não me considero isso mais. Além disso, outras posturas de pessoas de
‘esquerda’ me desagradam; a arrogância de acharem que eles, sim, sabem o que é
o Bem, pois os direitistas são uns trogloditas, uns ‘coxinhas’, uns babacas,
desconhecendo a própria Spaltung que
os constituem: há o ‘coxinha’ dentro de cada um de nós; vejo mais uma vez o
narcisismo das pequenas diferenças aí. Os direitistas fazem a mesmíssima coisa,
só que com as palavras ‘comunistas’, ‘petralhas’, e tal. Todos se xingando por
pertencerem a grupos diferentes, mas no coração de cada um o Outro está lá,
latente. E é difícil se alinhar com o que os esquerdistas e o s direitistas
dizem ser a esquerda e a direita porque até a diferença entre essas duas
(o)posições políticas varia se você perguntar pra um ‘esquerdista’ e para um
‘direitista’
É claro que, na hora de um embate do qual não se pode ficar
‘em cima do muro’ - como uma guerra civil, por exemplo - há que se tomar partido.
Aliás, partido é o próprio nome de uma realidade; sempre parciária, sempre
hemiplégica. Então quero aqui tomar o meu
partido, não antes sem definir, para meu próprio uso na hora de tomar algum, o
que sejam ‘esquerda’ e ‘direita’, com o mínimo de ambiguidade possível, para
manter alguma coerência comigo mesmo.
Para tal, parto do pensamento de Deleuze e o adapto a uns
esquemas que já tenho em mente. Não sou leitor de Deleuze, mas conheço algumas
coisas de sua obra. Ele tem uma entrevista em que faz um abecedário de
definições de termos filosóficos, políticos, etc. Perguntaram a ele: “’E’, de
esquerda; o que é ser de esquerda?” Primeiramente, ele responde que não há
governo de esquerda – que o diga o PT! “Não é que não hajam diferenças entre os
governos. O que pode existir é um governo favorável a algumas exigências de
esquerda. Mas não existe governo de esquerda porque a esquerda nada tem a ver
com governo”. Como podemos entender essa última frase? Eduardo Viveiros de
Castro dá uma ideia a partir de uma própria cisão que há na esquerda, entre
‘tradicional’ e ‘libertária’: a primeira, “com sua incapacidade de escapar de
uma visão produtivista da relação entre homem e natureza, de sua fascinação não
dita pela força disciplinar do Estado, pela organização política sob a forma do
partido e pela sua crença na história como realização progressiva que marca com
o selo do arcaísmo aquilo que sempre esteve fora do processo de modernização
capitalista. Contra isso, apareceria uma ‘esquerda libertária’, à sua maneira
tributária dos ideais antitotalitários de maio de 1968, ciosa da afirmação das
diferenças e desconfiada dos arranjos institucionais que a esquerda tradicional
procuraria preservar”. A ‘esquerda’ tradicional é o que Deleuze chama de
‘governo favorável a exigências de esquerda’ (aqui cabe tranquilamente o PT),
enquanto a esquerda esquerda mesmo seria a ‘libertária’ (existe algum partido
que se encaixe aqui?).
Mas, levando a discussão para termos mais abstratos e
formais, Deleuze precisa melhor do que se trata: é uma questão de percepção.
Ele não fará a oposição em termos de esquerda e direita, mas de esquerda e
não-esquerda. “Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro
de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os
outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo”. É um
pensamento que, de diferença em diferença, de particularidade em particularidade
(começando com a maior delas, o próprio ‘eu'), tece uma malha social ‘universalizante’:
forma um ‘todo’ a partir das partes, sem abrir mão delas. Mas, como sabemos, a
soma das partes não é o todo: não existe síntese, por mais que Hegel sonhe. Nada de harmonia aí. O
importante é notar que parte-se da diferença particular para atingir um suposto universal. Parte-se do ‘eu’ para o ‘nós’: o 'nós' é fundamentado no 'eu'. É como pensar que os problemas da
China estão tão longe quanto o país está do Brasil – isso nada tem a ver
conosco, já temos os nossos próprios problemas. Essa é a raiz do
segregacionismo, do narcisismo das pequenas diferenças – o termo é preciso
porque mostra que fica-se idolatrando a própria diferença, identificado a ela,
recusando-se a ser outro, a haver outro. Como no esforço de Hitler para não deixar o judeu
dentro dele sair do armário - ele se esforçava para olhar no espelho e ver apenas o Hitler, e não o judeu. É a posição geradora de nacionalismos, de ufanismos, de 'dois pesos-duas medidas', do culto à ordem-tal-como-eu-a-entendo - é só ver como a ditadura se instalou no Brasil para restaurar a ordem e o progresso da nação...
Enquanto a percepção dos esquerdistas seria o contrário:
primeiro, eles “percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois o continente –
europeu, por exemplo –, depois a França, até chegarmos à rua Bizerte, e a mim.
(...) Primeiro, percebe-se o horizonte. (...) Ser de esquerda é começar pela
ponta”, e, adaptando o que ele disse, ser de esquerda é perceber que os
problemas da China estão mais próximos de nós do que os problemas do nosso
bairro – talvez os problemas da China estejam causando os do nosso bairro, e vice-versa. Neste tipo de percepção, não se parte das diferenças individuais de cada
logradouro ou de cada indivíduo, cada parte – aliás, o indivíduo não existe,
visto que o ser humano é dividido ‘por natureza’ (ou ‘por cultura’, como
queiram) – para se chegar a um impossível Todo enquanto soma delas. Parte-se de
uma indiferença (no sentido de que não interessa qual é a sua situação em
particular, não interessa qual é a sua especificidade, a sua diferença, o seu
endereço) que está no ‘contorno’, no ‘mundo’, ou seja, é um para-todos em que
não há espaço para privilégios particulares: em suma, o que Parmênides chamava
de Um. Um-niversal, eu diria. Quer dizer, parte-se do Todo (o Um) para
abordagem da interdependência e indistinção entre as oposições, as partes. Em
linguagem utópica poderia-se dizer: como resolver os problemas do mundo para
que eu consiga resolver os meus? – já que não há fronteira entre os meus
problemas e os do mundo porque sou parte desse mundo e esse mundo é parte de mim.
Parte-se do ‘nós’, quer dizer, da indiferença quanto às particularidades, para
o ‘eu’, que já não pode ser mais considerado como sozinho: ‘eu’ é que passa pelo
‘nós’. O Um como regente dos processos do Múltiplo, e não o contrário. O Um não
como síntese entre oposições, isso não existe, mas o Todo como o Absoluto, o
que significa nada mais nada menos do que o pré-opositivo como tal, chamado de
Real, ou pré-ontológico, se quiserem. Essa postura implica a garantia das
diferenças, pois, se se é indiferente às diferenças, todas têm espaço, tanto faz
(valetudo em latim é saúde). Isso é o
contrário do segregacionismo. É um agregacionismo, pois agrega valor aos
discriminados, aos diferentes: todos
são iguais perante o Um, que trata a todos indiferentemente, ou seja, com o
mesmo valor. Ninguém é mais (diferente) que ninguém. Todos são igualmente
diferentes, logo as possibilidades de existência das diferenças se equiparam
entre si – todas as diferenças têm que ter a mesma possibilidade de existência.
Vemos que há uma oposição muito clara entre os dois tipos de
percepção. Vou retomá-las em outros termos, os de uma certa psicanálise. A
percepção de esquerda começa no que Deleuze chamou de ‘mundo’, ou ‘contorno’;
quero chamar isso de existência, ou, pra ser mais preciso, de Haver. Se há algo que vincula todas as
pessoas, independente de credo, cor, raça, nacionalidade, etc.,
independentemente de quaisquer diferenças em particular entre si, é o fato que há, para todos nós: todos nós
compartilhamos a existência, pré-ontologicamente. Há o Haver, para todos; mas ninguém
sabe como haver, como existir (se
sendo atleticano ou cruzeirense, ariano ou judeu, etc.) – é só a partir daí que
a ontologia entra. Haver é fora da oposição em que se engendram os seres, as
diferenças em particular: todas as diferenças estão nele, mas, como tal, haver
se situa para além delas – chama-se real, impossível de ser apreendido, como Lacan
e Kant queriam; tudo é-feito de Haver. Haver é o ‘contorno’, é o Um; já o 'endereço' é o que se forma dentro do haver, ou seja, as diferenças, as
particularidades (que vem de partícula, lembro-lhe), as oposições: as formações
do Haver. Vemos aqui as funções do Todo e da Parte (donde a palavra
‘partido’): o Haver e as suas formações.
A função do Haver indiscerne fronteiras, borra limites, acende a penumbra, o que
permite a percepção de que há uma indistinção entre os problemas ‘de lá’ e os
‘de cá’; permite a percepção da homogeneidade
existencial entre ‘eu’ e o ‘outro’, ou seja: ‘eu é outro’, como dizia Rimbaud; ‘o outro sou eu’, é o complemento
dessa frase. Toma-se um choque do Haver quando uma situação de indistinção
entre (o)posições emerge: eu e tu, por mais que sejamos opostos, temos uma
única coisa em comum: existirmos, juntos,
dentro do mesmo barco, chamado Haver – que, obviamente, nunca veio de lugar
nenhum e nem nunca vai pra lugar nenhum, presos que estamos, todos, independentemente do que nos difere enquanto tais, na imanência
absoluta da existência. Perceber isso é perceber o ‘mundo’ e o ‘contorno’. Tem-se
aí o vetor da esquerda deleuziana: da indiferença entre as diferenças – todas
são interdependentes a ponto de não ser possível discernir completamente entre
uma e outra coisa. É a alteridade da identidade. É perceber que, como na
anedota do arqueiro zen, quando atiro no outro, acerto em cheio a minha própria
nuca.
Enquanto que a direita é aquela posição tomada a partir das
formações do Haver, que, como tais, sempre se medem a partir de sua diferença
para com as outras formações: é Hitler identificado com a diferença que o
constitui (ser ‘ariano’), recalcando (esse é o termo) as outras diferenças
(judeus). É a identidade da alteridade: uma alteridade (uma diferença)
identificada consigo própria, impermeável à sua transmutação para com a
alteridade de si – é Hitler querendo matar do lado de fora o judeu que habitava seu
coração (veja que Hitler era, afinal, humano...). Assim, só a minha diferença é
privilegiada quanto às demais: minha diferença é mais diferente que as outras,
e nisso se perde completamente o contato com o Outro. As formações do Haver
resistem, recalcitram quanto à possibilidade de seu reviramento em Outro: eu é eu,
eu não é você: isso é assim, aquilo é assado. A fronteira, a distinção, se impõe enquanto segregação de todo e
qualquer tipo: físico (pois o universo é feito de matéria, não de antimatéria - esta última está segregada do nosso universo), social, racial, sexual, individual etc.
Podemos então resumir o que foi dito alinhando o pensamento
de direita com o paradigma das formações do Haver, onde prevalecem as
diferenças entre as diferenças, ou seja, faz
diferença o outro ser diferente de mim, pois não há a menor chance de eu
ser outro – resisto na minha identidade, minha propriedade privada maior; e
alinhamos a esquerda com a indiferença
entre as diferenças, quer dizer, não faz
diferença que você seja diferente de mim; ambos existimos, estamos jogados
no Haver, sem saber de onde viemos nem para onde vamos, e, pelo menos nisso,
somos todos Um. É o reconhecimento de que, se hoje sou do bem e você é do mal,
há a possibilidade de amanhã isso se revirar, e eu estar na pior... É uma identidade que não se
identifica consigo mesma: sem propriedade privada, na penumbra entre ‘eu’ e ‘outro’.
Então temos os dois vetores: um que vai do múltiplo das
diferenças rumo ao Um, e outro que vai do Um da indiferença rumo ao múltiplo.
Não há Terceiro Lugar aí; estamos falando da existência e de seus modos; a
existência, o Haver, é Um porque só há um Haver, só há “O” Haver, só há a
existência, e, obviamente, não há o Não-Haver, não existe a inexistência – como
o próprio nome diz. É o estado puro da Imanência: não existe transcendência.
Logo, o que há é o Um, sem oposto inexistente – não existe o oposto do Haver e,
como tal, Haver é pré-opositivo, pré-ontológico. Como surge então a oposição?
Como se faz o Ser, o Partido? Ora, só pode ser de 'dentro' do próprio Haver (já que não existe o externo Não-Haver), para consigo mesmo: a
chamada auto-diferença. Só há Uma oposição no seio do Haver, e é consigo mesmo:
ou o Haver se manifesta como (o)posições, diferenças, realidades (como tais,
múltiplas), ou o Haver se manifesta como Um, como real, como o próprio Terceiro
Lugar indiferente às oposições entre as suas formações – o Haver é bífido, ele
é uma única e mesma Spaltung. Mas
essas oposições são mutuamente excludentes (por isso não há terceiro aí) – ou o
Haver comparece como diferença ou como indiferença – ecce Spaltung! Em suma, a
oposição é entre posturas direitistas, ancoradas no Ser, nas diferenças, e posturas esquerdistas, navegantes do Haver, na indiferença. Por isso, há que se
tomar partido, sim, pois não se constitui realidade ficando em cima do muro; é
a famosa covardia, fruto da angústia. Angustiar de nada adianta se não se faz
uma escolha – aliás, não há escolha: há que escolher (o que não é dizer que se
é obrigado, que é inevitável escolher um lado em específico – não: o inevitável
é escolher). Por isso, aqui se escolhe a esquerda, se entendida nesses termos. Escolho
por gosto (ou seja, sintoma) pessoal, não por motivos ‘nobres’ (como quem sabe
o que é o Bem). Acho que é preciso se olhar no espelho e ver o Outro, não a
própria imagem - é o que fundamenta minha decisão. Tento ver o coxinha que há em mim também... Mas não posso obrigar ninguém a ser como eu, a ter essa mesma
postura: não posso impossibilitar
alguém de ser diferente de mim (isso seria incoerente a indiferença) - a não ser que me impossibilitem de ser (in)diferente: nesse caso, há que se partir pra guerra, para não ser um voluntário da servidão. O que eu posso
fazer é possibilitar que outros
pensem assim (espero que não todos, pois aí iria tudo por águabaixo), que tomem o meu partido, a Esquerda. Por isso o texto e as
argumentações.
Mas por quê chamar isso de ‘esquerda’, visto que no próprio
seio da definição tradicional de esquerda há uma cisão, além do lastro de
direita horroroso que passou a se decantar nessa palavra ao longo dos tempos?
Por mim, chamem isso do que quiserem; pouco importa. Inclusive seria muito bom
que se chamasse isso de ‘direita’, mas o lastro é qual horroroso, até mais. Chamem
do que quiserem: o importante é a postura, a percepção; destas só existem duas, dentro do mesmo Um. O que vai
ser?