Freud chamou de 'pobreza psicológica' a vinculação entre sujeitos em um grupo quando os laços que os unem são de identificação, sem a promoção das diferenças em cada sujeito. E citou os Estados Unidos no rol dos 'países pobres'...
Me pergunto se é ou não pobreza. Mas coloquemos os fatos - tanto o ocorrido quanto o narrado.
Annie Levitz, 16 anos, teve que ser operada por causa de um problema localizado num músculo entre a mão e o antebraço, conhecido como síndrome do túnel carpal. Foi uma lesão causada por esforço repetitivo: enviar mais de quatro mil mensagens de celular por mês. O que equivale a 133 mensagens por dia; se considerarmos que ela dorme por 7 horas ao dia, temos 7 mensagens por hora, ou seja, uma mensagem a cada 8 minutos em que estiver acordada. Mensagns cujos conteúdos eram da estirpe de:
- "What's up?"
- "What's up?"
- "Nothing" (Grifo meu)
Trocando em miúdos, escreve-se nada, fala-se nada, conversa-se nada (na afirmativa - não quero dizer que elas não conversam nada).
O que aconteceu é que Annie, de tanto segurar o celular para enviar mensagens (pra quem tantas mensagens?), não conseguia mais segurar outros objetos, como copos, pratos, que caíam (slipped away from) de suas mãos. Aí, ela passou a estranhar a situação.
A mãe, mesmo ciente dessa quantidade de mensagens, não quis tirar o telefone de Annie, porque o telefone "é toda a vida social dela" (fonte: http://abcnews.go.com/Technology/video/texting-teen-carpal-tunnel-syndrome-10148475 - grifo meu). Isso é algo digno de nota. Essa mãe está dizendo que, sem o celular, a garota não terá social life, o que se petrifica como "não há social life sem celular". E, já que não se sai disso, não há para essa mãe como evitar que a filha continue enviando mensagens.
Após a operação, parece que a garota aprendeu sua lição: agora são apenas 2.000 mensagens ao dia! (Deve ser porque agora ela deve estar usando apenas uma mão...)
O que eu quero supor é que há uma paralização na capacidade de des-ser nesse caso. A filha não consegue não ser alguém que manda mensagens até estourar o braço; a mãe, não consegue não ser alguém que limita toda a possibilidade de vida social da filha ao uso de mensagens de texto por celular. O ser está instalado (entalado, enlatado) nesses corpos com uma pega sintomática da maior força, mais do que os corpos podem suportar (dar suporte). E essa incapacidade de equivocar seus princípios as leva ao seus fins. O síndrome é sintoma das duas (pois a mãe também investe economicamente nesse sintoma, já que paga a conta de telefone), apenas fisicamente se manifestando em um dos corpos.
Ora, por quê será que Annie não pôde conter seu mental a ponto de pelo menos poupar o seu físico? Por quê sua mãe se mostrou tão refratária aos equívocos (efeitos) do significante, ao petrificar signicamente seus princípios?
Quero lembrar que uma característica marcante na psicose é exatamente essa não tolerância aos efeitos de equívoco do significante. Como é que uma mãe baseia o cagaço de 'castrar' a filha do celular ao dizer que dessa forma castraria TODA a vida social da filha? Que tipo de lógica hemiplégica (aleijada) é essa, que desconsidera radicalmente a Possibilidade que o Inconsciente oferece, de overcome as sobredeterminações simbólicas ao fazer referência ao real dessa possibilidade de Outra-coisa? O problema é que também a neurose não quer tolerar o equívoco, o vazio que preenchemos com nossas bobajadas quotidianas, imundanas.
Não vou aqui discutir se é excessivo ou não mandar uma mensagem vazia a cada 8 minutos. Todos nos excedemos, de um modo ou de outro; há modos que não arrebentam com o corpo, e há modos que sim. À medida que conseguirmos adequar nosso fóssil (é assim que muitos biólogos se referem) corporal aos nossos modos de gozo, via techné, talvez não tenhamos a mesma opinião sobre o que é excessivo. Então não direi que a sociedade americana é psicótica ou neurótica, porém nota-se neste e em vários outros de seus sintomas que há uma dificuldade de dialetização em suas formações. Por isso, mais do que a filha enviar esse tanto de mensagens, quem me espantou foi a mãe, por ter reduzido a interação social, simbólica da garota ao literal do aparelho de telefone.
Quanta diferença para com os pais de meio século atrás!: rigorosos, severos; hoje, frouxos e permissivos. Nem melhor, nem pior: no entanto, não será dos pais (parece que não há pai em sua casa) que a menina herdará sua capacidade de simbolizar perdas para obter outros ganhos, quer dizer, dialetizar. Ela terá que buscar isso - se algum dia precisar - em outro lugar; coisa que é bem possível.
Freud colocava o Pai como a referência dessa função de simbolização, ou seja, de perda e troca de objetos. Porém, Lacan diz que há várias formas de se acionar a função do Pai, e não necessariamente via genitor, visto que a configuração familiar se mostra irreconhecível para os mais velhos. E talvez hojendia seja um momento em que ainda não se sabe muito bem como fazer função paterna sem Pai; porque, neste caso aqui citado, a mãe não a faz. Mas muitas mães por aí ocupam essa função, que talvez algum dia deixe de se chamar paterna (já que o pai é dispensável, importando somente a função - não importa quem a faça). A questão que fica é: como fazer cada vez mais referência a essa função, que permite maiores possibilidades simbólicas aos seres falantes? Segundo MD Magno, o Pai é uma invenção do período neolítico, quando o homem parou de ser vagabundo (nômade), fixando lar; com sua falência, devemos (eticamente) arranjar meios de não perder a função que outrora fora exercida majoritariamente pelo Pai, porque senão vamos arrebentar a boca do balão que nos sustenta no físico, tal como Annie; não dará tempo de inventarmos um corpo que nos suporte...