terça-feira, 29 de janeiro de 2013

A psicanálise se autoriza de si mesma

"O Tao é vazio, mas inesgotável"

(Lao-Tsé, "Tao Te King", #4)

"Conhecer o Não-saber é elevação.
Não saber esse Conhecimento é doença."
(Ibid., #71)



O que é a psicanálise? Lacan dizia que essa pergunta responde a si própria, já que a psicanálise é essa própria questão. Sabemos que Freud queria de tudo quanto é jeito dar um estatuto científico pra psicanálise, tanto que fez um livro renegado por ele mesmo, chamado “Projeto para uma psicologia científica”. Tá na cara que deu com os burros n’água, pois não conseguiu dar esse estatuto a ela. Psicanálise é algo que oscila entre psicologia, filosofia e até mesmo mágica, como já chegou a dizer um cientista chamado Richard Feynman...

Podemos dizer que a psicanálise é ciência? Depende do que se considera que seja ciência. O que é ciência? É só recorrer aos milhares de livros de epistemologia para descobrir que há uma constelação de definições, altamente contraditórias. Quem tradicionalmente se ocupa disso é a filosofia, que fica em palpos de aranha pra (não) dar conta do recado. Mas gente como Kuhn e Feyerabend, por exemplo, mostram como que a ideia de objetividade simplesmente não se sustenta objetivamente...O que há são apenas ‘pluralismos culturais’, dentre os quais a ciência dita ‘objetiva’ é vista como apenas um caso dentre os inúmeros modos de conhecer.

Ora, se a própria ciência já não consegue entender a si mesmo, tadinha, como é que a psicanálise fica? Se a própria ciência tem dúvidas sobre seu estatuto científico, como é que a psicanálise poderia se atrever a supor que seu próprio fundamento seria científico? Lacan, junto com Popper, dizia que a psicanálise não poderia ser ciência, por causa do critério de demarcação de Popper, que diz que se uma hipótese (como a do inconsciente) não puder ser testável, ou seja, falsificável, não é ciência. Ok, mas esse é o modo que Karl Popper, aquele ser humano, entende o que é e o que não é ciência. Mas tivemos desde então Kuhn, Feyerabend... Ou seja, dizer que a psicanálise não é ciência também não serve, pois se ela souber o que não é ciência, é porque ela sabe o que é. E achar que se sabe, objetivamente, o que é ciência é ser pouco científico...

Então, dizer que a psicanálise é ciência não serve; dizer que ela não é, também não. O mínimo que devemos fazer então é não procurar fundamentar a psicanálise num discurso ‘científico’: há que se achar outro lugar pra ela.

Seria então filosofia? Lacan, curiosamente chamava a psicanálise de filosofia. Só que ao contrário: ela seria uma anti-filosofia. Isso porque, ao contrário da produção grega, a psicanálise estaria em outro discurso, avesso ao sentido – charco no qual se banha a filosofia, com, por exemplo, Heidegger e seu sentido do Ser... Outro modo de dizer que a filosofia nada tem a ver com o real, já que ele é precisamente o que não pode ser filosofado. Mas o curioso é que Lacan tenha definido a psicanálise, nesse aspecto, por uma denegação: ‘a psicanálise não é uma filosofia’, tipo o cara que sonha com uma mulher e diz: ’não é minha mãe’...

Se a orientação da psicanálise é em torno do real, ou seja, do que é impossível de ser escrito, dito, visto, entendido, etc., e a filosofia tenta justamente falar ele (tipo ‘o que é o ser?’, ‘o que é ético’...), a psicanálise não pode ser uma filosofia mesmo. Isso porque o real que a psicanálise visa é uma experiência, e, como tal, indizível em si mesma, absolutamente arrebatadora de qualquer palavra, de qualquer discernimento. O que a psicanálise precisa entender é qual o estatuto dessa experiência (não-científica) de indizível, de ausência de lei. E esse estatuto não é fundamentável cientificamente nem filosoficamente, já que ambas se mostraram um desastre nesse papel.

Ora, o que sobra, então? A psicanálise é o quê? Ela é alguma coisa? Ou não responderemos à pergunta? Como indagar sobre o estatuto do real que a com-cerne? Lacan diria que essa é uma pergunta louca, mas também diria que “há que ousar formulá-la como tal, para afirmar de que modo, seguindo a experiência instituída, poderiam surgir proposições a ser demonstradas para sustentá-la” ("Escritos", p. 535).

Em seu seminário 20, Lacan fala sobre santa Tereza D’Àvila e São João da Cruz, que tiveram experiências limítrofes na linguagem (como ‘experimentar Deus’, ou seja, experimentar a falta de sentido do real) e retornar com uma ‘jaculação mística’, como diz Lacan, ou seja, um testemunho, em linguagem, de uma experiência para além dela. “É claro que o testemunho essencial dos místicos é justamente o de dizer que eles o experimentam, mas que nada sabem dele” (p. 82). É esse tipo de testemunho que a psicanálise visa: conduzir o sujeito ao real, para que então ele possa contar a sua singular experiência ‘de Lá’, após retornar para o simbólico que corre na análise. Mas essa não é uma experiência abordável nem científica, nem filosoficamente. E nem mesmo psicanaliticamente... Nada do que se diga é capaz de esgotar o escopo do indizível - como diz o sábio Lao-Tsé (#4).

Ser afetado pelo real é ter uma experiência incomunicável de ‘despertar’ da realidade, na qual nos chafurdamos sintomaticamente, para o vazio de seu sentido, ou seja: ter a experiência real de contingência de uma realidade, e não de sua necessidade. O sintoma, enquanto realidade, se impõe como uma necessidade, sempre se repetindo, nunca deixando de comparecer. Tocar o real (que é o mesmo que ser tocado por ele) é experimentar esse sintoma como uma contingência, ou seja, como algo que não é necessário. Pois o real é a única necessidade; realidades são contingentes – quaisquer que sejam. A ilusão, o imaginário, que há na realidade é tomá-la por necessária, e a suspensão da realidade lograda no despertar é a experiência de que as realidades são necessariamente contingentes.

A incomunicabilidade dessa experiência, a sua impossibilidade de ser falsificável (pra ficarmos apenas com um critério de cientificidade), indemonstrável (no sentido filosófico) e indizível (no sentido psicanalítico) impõe que a psicanálise não tente reduzi-la a epistemologias com seus ‘critérios de demarcação’ ou demonstração, e a mantenha no seu lugar: inabordável. Inabordável significa ‘sagrado’, que vem do latim sacer, ‘lugar reservado e respeitável’ (Dicionário etimológico Lexikon, p. 697). De modo que a experiência do real é uma experiência sagrada, inabordável, e falar dela, como o fizeram santa Tereza e São João da Cruz, é ‘ganir diante do Nada’, como diz Hilda Hilst, em “Do Desejo”.

Como não há garantias científicas e nem filosóficas para estatuir a experiência psicanalítica, que nome podemos dar a seu estatuto? Começo pela definição desse nome: “em que há mistério ou razão incompreensível” (segundo o Priberam). De modo que o mínimo que podemos afirmar sobre o estatuto de atingimento de um real é que ele é místico: não sabemos o que ocorre na experiência de real, nem como ela se dá. E reduzi-la a ser científica ou filosófica é confundir a realidade de cada um desses conhecimentos com o conhecimento da experiência do real (Lao-Tsé #71).

Porém, aqui, trata-se de uma mística do vazio, e não de uma mística religiosa, que sempre coloca uma máscara no real e chama-o de Deus, ou Alá. Pelo contrário, a mística psicanalítica é Arreligiosa, pois não coloca no lugar do real nem Deus, nem a Ciência, nem a Filosofia. Ela aponta para o lugar sagrado, e nisso ela é religiosa: justamente porque aponta o sagrado. Mas é como o dedo de São João Batista no último quadro pintado por Da Vinci: apontando para uma região imprecisa, indiscernível, em que é impossível dizer para onde. Apontando para o lugar Nenhum: onde o real há. Como a psicanálise pretende não colocar conteúdos nesse lugar, ela é Arreligiosa: não há saber, seja ele de qualquer religião (incluindo aí a ciência, a filosofia, qualquer discurso), que coincida com o real. A mística é o que melhor explicita a inefabilidade da experiência psicanalítica, e é por isso que ela é o que expressa de maneira melhor (ou melhor, de maneira menos pior...) o estatuto da experiência do real, de onde a psicanálise parte. É como Clarice Lispector reescrevendo a vida após tropeçar num rato morto. Sabe-se lá como ou porque aquilo foi um despertar para ela naquele momento; poderia ter passado em branco. E sua escrita foi sua jaculação mística, tentando explicar a sua experiência de real.

Se chamo a psicanálise de mística aqui é para que ela não tenha que fundamentar sua experiência em moldes científicos ou filosóficos, pois que a lógica real do inconsciente tem o escopo muito maior do que essas lógicas. “É preciso estabelecer um discurso da psicanálise que dê conta de si mesmo. Não se trata de isolacionismo, e sim de dar conta pelo menos de seu próprio discursar, e em cima de algo que não se possa contestar a partir de externalidade alguma [como ciência, filosofia], o que é mais difícil” (MAGNO, 2006, p. 142). Poderíamos dizer, uma vez que, segundo Lacan, o psicanalista se autoriza de si mesmo - com ou sem outro que lhe diga que ele é analista -, que a psicanálise se autoriza de si mesma - com ou sem ciência ou filosofia que a digam o que é ser psicanálise. 




"Quando curiosamente te perguntarem, buscando saber 
o que é aquilo,
Não deves afirmar ou negar nada.
Pois o que quer que seja afirmado não é a verdade
E o que quer que seja negado não é verdadeiro.
Como alguém poderá dizer com certeza o que aquilo 
possa ser
Enquanto por si mesmo não tiver compreendido plenamente o que é?
E, após tê-lo compreendido, que palavra deve ser enviada de uma região
Onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha 
por onde possa seguir?
Portanto, aos seus questionamentos oferece-lhes apenas o silêncio,
Silêncio – e um dedo apontando o caminho."
(Verso Budista)

domingo, 27 de janeiro de 2013

Quem ama, odeia


Quando ouvi dizer que Michael Haneke tinha lançado um filme que se chamava “Amor”, fiquei com a pulga atrás da orelha. Com certeza, não seria nada daquela imagem que todos fazem do amor, como a coisa mais pura e humana que existe; não, eu esperava alguma porrada, algum soco, algum pontapé – já que essa é uma de suas marcas registradas.

O casal de idosos Anne e Georges vivem uma vida simples, vão a um concerto de piano, chegam em casa, trocam palavras carinhosas, e todo aquele imaginário que temos sobre dois velhinhos que foram a vida inteira casados e vivem uma velhice feliz, que é o que todos nós imaginamos quando amamos, certo?

Até que aquilo que Freud chamava de “O Estranho” surge; uma manhã, os dois tomando café enquanto Georges contava uma história. Anne não reagia, não falava, não tinha expressão fisionômica alguma, nem se movia; era como se estivesse morta, de olhos abertos, na mesa de jantar. Georges sacudiu-a, e nada. Foi até o quarto para se trocar e leva-la ao hospital, e quando voltou ela continuava seu café como se nada tivesse acontecido, o que gerou um mal-entendido sobre o que de fato havia ocorrido: ambos estranharam a situação. O assunto foi então deixado de lado.

Mas o que havia ocorrido foi um entupimento da carótida; Anne precisou se submeter a uma operação que não teve muito sucesso e ficou paralisada no seu lado direito; era, a partir daí alguém que precisaria de cuidados especiais para o resto da vida (cuja expectativa já não era muito mais longa, devido à idade já avançada).

E aqui começa a entrar o gênio de Haneke para retratar a prova de amor Georges para com Anne. Um dos grandes sintomas do diretor em seus filmes é fazer tomadas longas, em que a cena onde algo está acontecendo não aparece na imagem: Haneke costuma esconder da cena momentos cruciais da narrativa, como em “Violência Gratuita” onde um espancamento que ocorre na cozinha é ‘mostrado’ com uma imagem da sala de estar onde uma TV está ligada passando futebol americano, e o som do espancamento ao fundo. De modo que, como ele mesmo diz: “Ao mostrar ou não mostrar certas situações você pode tornar um filme insuportável para o público”. Se no caso de Violência Gratuita era o não mostrar que causa o horror, em “Amor”, é justamente o contrário: ele mostra de maneira excessiva o amor, nos momentos mais insuportáveis; quando Georges ajuda Anne a fazer um movimento dos mais simples, o de sair da cadeira de rodas para se sentar numa poltrona, por exemplo; ou quando ela tem que atravessar uma sala de 3 metros para chegar à cadeira de rodas, o que leva uma eternidade; quando ela vai ao banheiro e ele lhe veste. Enfim, todas as dificuldades locomotoras de alguém incapacitado para tal, que geram uma lentidão, dificuldade e angústia enormes são mostrados até o último segundo por Haneke, o que torna o filme muito difícil de assistir. É um suplício, mostrado na lentidão da sua temporalidade. Haneke gosta disso, tendo dito que a cena ideal de um filme é a que faça o espectador não querer assisti-la...

Cada vez mais o estado de Anne se deteriora, a ponto de não conseguir articular mais as palavras para formar frases coerentes – perde a capacidade de fala. Além disso, grita o dia inteiro de dor, apenas parando quando Georges vem, acaricia sua mão esquerda e conta histórias ou canta pra ela.

Como se vê, Georges ajuda a esposa em todos os sentidos: na saúde e na doença, no melhor e no pior, etc. Quando retornou do hospital, após a cirurgia, Anne fez Georges prometer nunca mais levá-la a um hospital. À medida que seu estado piorava, manifestou o desejo de não seguir vivendo assim, que seria melhor morrer, para não ter que passar por uma situação tão difícil, e nem fazer o marido passar por ela também.

Goerges faz tudo o que é preciso para dar à sua esposa uma vida que seja um pouco digna, dentro das condições em que se encontram, com muita dedicação, com muito amor – por mais difícil que isso lhe seja. Pois, como mostra Haneke – com requintes de crueldade –, os momentos em que é mais preciso amar são exatamente os mais insuportáveis, de modo que o próprio amar torna-se insuportável. Ficar 24 horas por dia tendo que cuidar muito mais da vida de outro do que da própria, lidando com gritos, dor, excrementos, é enlouquecedor. Georges estava cansado e mal dava conta de continuar a cuidar de sua esposa: ele próprio precisava de cuidados.

Durante o filme, e por já conhecer um pouco da obra do diretor, comecei a me questionar. Georges estava amando demais, fazia tudo, vivia para manter a vida da esposa. Mas e a sua própria vida? Esse era o preço que ele estava pagando por esse amor. E, como a psicanálise mostra que não há amor sem ódio, fiquei esperando pelo surgimento do ódio no filme. Tudo na relação de Georges para com a situação de Anne era apenas amor – mas onde estava o ódio, contraparte inseparável do amor? Essa é uma questão clínica. 

Anne começou a recusar alimentação – com certeza a situação estava ficando mais e mais insuportável para ela também. Georges insistiu em dar-lhe água até que ela cuspiu-a em sua cara. Nesse momento, Georges a bateu. Cena nada imaginária: um velho batendo numa velha moribunda.

Em outra situação, enquanto acalmava Anne em uma das crises de gritos de dor, Georges contava uma história sobre uma situação insuportável de sua infância. A história era longa, a cena torturante de uma impossibilidade de acabar de vez com o sofrimento de Anne se arrastava – até que repentinamente, Georges pega o travesseiro e asfixia Anne até a morte.



O filme se chama “Amor”, mas poderia muito bem ser chamado de “Ódio”. Isso porque o que é essencial na mente humana é justamente a possibilidade de efetuar a função contrária do que se comparece. É o que Freud chamou de ambivalência da mente. “Em quase todos os casos em que existe uma intensa ligação emocional com uma pessoa em particular, descobrimos que por trás do terno amor há uma hostilidade oculta no inconsciente. Esse é o exemplo clássico, o protótipo, da ambivalência das emoções humanas” (FREUD, “Totem e Tabu”). O fundo do inconsciente não comporta oposições, de modo que nunca existe apenas amor em uma relação: a sua contraparte há, mas está recalcada. Ou seja, todos aqueles gestos de amor insuportável por parte de Georges também eram compostos de ódio pela própria esposa, por ela estar em uma situação que, mesmo não sendo 'culpa' dela, vem dela. Mas como Georges não se permite culpá-la por estar doente, enfatiza ainda mais seu amor, a um custo muito grande, o de abandonar os próprios afazeres, a própria vida, em prol da vida dela – sintomas de sua própria culpa por também odiá-la por privá-lo da vida que antes tinham. Não quero com isso dizer que o que ele verdadeiramente sentia era ódio, mas, sim, que não era apenas amor, pois em nenhuma relação existe apenas o amor, tal como também nunca existe apenas o ódio. O inconsciente é interesseiro e decide amar ou odiar de acordo com conveniências. Penso que é nisso que reside o maior valor do filme, pois é um filme sobre o amor, mas não sem uma crítica a ele. Haneke diz que se interessa em fazer uma análise da obra dentro da própria obra, e nisso “Amor” não decepciona: mostra o que há de ódio nessa imagem que fazemos de amar.

Por isso, digo que Haneke ocupa a posição analítica em seus filmes: quando se pensa estar seguindo determinado caminho, determinado sentido no andamento do filme, ele coloca a posição antitética, o sentido oposto, naquele mesmo caminho que se percorria. E isso é a base da técnica analítica, que poderíamos dizer, junto com MDMagno, que se expressa mais ou menos assim: “sempre que um homem lhes colocar uma questão, respondam com seu antônimo, de modo que um par de opostos se formará, como ir e vir. Quando a interdependência de ambos é inteiramente abolida, não há, em sentido absoluto, nem ida nem vinda. Se alguém estiver fixado em uma visão, desafiem-no com a visão oposta – não para convertê-lo a esta visão, mas para deslocá-lo de todas as visões de mundo de modo a poder escapulir entre elas”.

Podemos chamar o assassinato de Anne de crime de amor. Claro que Georges queria acabar com o sofrimento de Anne por amor a ela, mas também queria acabar com o próprio sofrimento, por ódio a ela - como se diz 'tirá-la de sua miséria', com toda a ambivalência que a frase comporta. É precisamente a grande cena ambivalente do filme: ele a mata por amor ou por ódio? Lacan tem uma frase que diz: “não conhecer de modo algum o ódio é não conhecer de modo algum o amor” (Seminário 20, p. 95). Concluo dizendo que, até por ter odiado Anne, Georges amou-a.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Obsessivo ou obsessivo?


Quando se ouve falar das estrutras clínicas em psicanálise, muitas vezes a impressão que fica é de que se trata de uma descrição comportamental que se repete em muitas pessoas. A lógica que fundamenta esses comportamentos não é explícita, fica sempre reduzida a esses comportamentos histéricos ou obsessivos, tipo: “obsessivo gosta de racionalidade”, “a histérica quer roubar a cena”, e etc.

No entanto, esses comportamentos são apenas casos, conteúdos da lógica que rege o inconsciente. Tomem por exemplo o famigerado Complexo de Édipo. Foi a maneira que Freud achou na época de abordar o buraco negro do inconsciente. Mas o édipo não é estrutural; querer matar o pai e casar com a mãe é um comportamento, não é a estrutura lógica que o determina. Foi preciso a existência de um Lacan pras pessoas entenderem que essa anedota chamada édipo se fundamentada na estrutura do significante. A lógica do significante é o que determina haver complexo de édipo, que é um modo de expressão dessa lógica mesma; porém não é a única. Apenas pensem num complexo de édipo de uma família moderna, onde há duas mães, por exemplo. Realmente, o menino vai querer casar com a mãe e matar o pai... E a menina vai entrar no complexo de castração comparando o pênis do pai com a falta de pênis da mãe...

Não se trata de ‘romances familiares’, ou coisa do gênero. A radicalidade do conceito de inconsciente é hierarquicamente superior a quaisquer conteúdos que possamos imaginar. Por isso só a lógica pode formular o limite para seu entendimento. Não fundamentar uma abordagem clínica nessas premissas é fazer clínica de conteúdos, é entender a situação que se apresenta em termos de valores, casos, e não de estrutura, quer dizer, de vazio. Qual é a raiz lógica que fundamenta as estruturas clínicas psicanalíticas? Não pode ser “o obsessivo gosta de racionalidade”; isso é casuístico demais. Pois o que é racionalidade? Aí vem uma cascata de sentido; e isso é igual cu: todo mundo tem o seu. O que quero destacar aqui é o fundamento mínimo da lógica obsessiva, para mostrar como ela até se relaciona com seus conteúdos, mas uma operação analítica na clínica só é propriamente analítica quando incide sobre esse processo lógico mínimo que fundamenta as manifestações obsessivas.

Freud, quando começou a estudar os obsessivos, percebia esses conteúdos nos seus casos: obsessivos eram pessoas que tinham pensamentos horríveis, sem saber porque, e se sentiam muito culpados por isso: sofriam muito. Outra característica comum entre eles é o fato de terem muitas dúvidas, especialmente sobre coisas impossíveis de saber (morte, por exemplo), e essas dúvidas por sua vez levam a pessoa a não conseguir tomar decisões na vida, e enquanto não tomam tais decisões, as coisas permanecem como estão: sofríveis. Como dizia Freud, o cara prefere adoecer a tomar uma decisão na vida. Por que isso? “Ah, porque ele não teve pai”, e todo esse papo edípico judaico, como fosse algo ‘natural’ ter pai, e sem isso a pessoa fica doente. Independente de pais, família, etc., o inconsciente é uma lógica, que inclusive possibilita a existência da família; mas ela não é a única organização social possível, e não é a fundamental, já que devido ao ‘deserto do real’, como diz Zizek, o ser humano não tem qualquer organização social necessária, natural. O real é a impossibilidade de haver essa organização social humana como natural: é sempre artificial. Inclusive a família, ou seja, o pai, a mãe, o filho...

De modo que o dito obsessivo é assim, obsessivo é assado: mas o que é uma estrutura obsessiva, que faz ele ser assim ou assado? Pois enquanto analista, pouco me interessa ele ser assim ou assado, como se eu tivesse que determinar o que ele deve ser – ou não ser. Me interessa é como intervir para que eu justamente não faça isso, que eu não lhe dê conteúdo algum, mas lhe dê o vazio de onde ele poderá determinar se será assim ou assado. O que é praticamente impossível, pois quando se diz alguma coisa, está-se em cheio no conteúdo. Daí o diz-afio: como dizer o vazio? Entendamos a lógica.

No seu núcleo, o obsessivo é alguém que tem muitas dúvidas; em bom brasileiro, ele é alguém que não sabe se caga ou sai da moita. Essa indecisão faz a relação do obsessivo com o tempo ser a mais prolongada possível: não sei o que fazer, então não posso decidir enquanto não souber. Mal sabe ele que só saberá o que decidir quando de fato decidir... De modo que o obsessivo não resolve, não termina as coisas: eles ficam flutuando entre os lados da decisão (“fazer isso ou aquilo?”), e a sua situação indecisa se estende em direção ao infinito. É irritante. E aí fazem estudo racionalíssimos (obsessivo é racional né) sobre os prós e os contras de cada pólo da decisão, estudos mais e mais minuciosos, fractalmente, para que só fique estudando e não decida o que fazer. Ou então ele faz uma coisa e depois faz algo oposto, e volta pra primeira coisa, e volta pra oposta... Oscilando pra não decidir com qual realmente ficar: tenta ficar com as duas.

Agora imagine a porção de problema e aporrinhação que as indecisões causam: as ciosas da vida têm limites, prazos. A pessoa fica na indecisão e perde o prazo, perde o momento de fazer algo que gostaria, mas estava em dúvida se fazia. E por aí vai.

Então, afinal: o que é um sintoma obsessivo, para além de ser racional, indeciso, procrastinador? Qual o seu modo de funcionamento?

Entendamos aqui que a mente humana é um aparelho de indiferenciação de oposições, que Freud chamou de princípio de prazer. O ser humano se satisfaz com qualquer coisa. E, quando digo qualquer coisa é QUALQUER COISA mesmo, sem quaisquer tipos de inibições, restrições ou proibições. O que é outra maneira de dizer que quaisquer possibilidades satisfazem o inconsciente. É só você ir à parte obscura da internet, chamada Deep Web que você verá o que quero dizer. Isso quer dizer que entre me satisfazer com isso (chamemo-lo de +) ou aquilo (-), o princípio de prazer quer os dois em um só, ou seja, não quer que haja aí uma oposição: não quer ter que escolher um ou outro, pois escolher um exige a perda do outro. E, se tem uma coisa que o princípio de prazer não quer é perder.

De modo que a dúvida obsessiva, o seu protelamento, a sua indecisão, seus pensamentos impuros, cujos sintomas são, por exemplo, rituais de lavar a mão depois de cagar cantando parabéns pra si mesmo (como woody allen mostra no filme ‘whatever works’), são derivados da lógica obsessiva, que se formula da seguinte maneira: o obsessivo se defende da disjunção da realidade. A realidade de cada um, assim como a própria physis, é disjunta: ou se tem pênis ou se tem vagina; ou se cai pra baixo ou se cai pra cima; ou caso ou compro uma bicicleta; ou isso, ou aquilo; em suma: ou (+) ou (-). O problema do obsessivo é justamente querer funcionar no que Freud chamou de princípio de prazer (tentando não haver oposição, escolha) em oposição ao princípio de realidade (que impõe a disjunção): ele adoece de querer ser E não ser... E fica tentando ora ser, ora não ser, porque não decide qual dos dois vai ser...

Vemos então, de maneira muito simples até, o cerne da questão obsessiva: a defesa contra a disjunção. Toda a realidade é composta de oposições: ou sou isso, ou aquilo. Estar em um dos lados dessa oposição é não estar do outro lado: se sou, logo não não sou. E a perda desse outro lado da oposição é o que aterroriza o obsessivo: não posso perder nem um grão da minha vida, senão, não estou vivo. Aí está a grande dúvida obsessiva: estou vivo ou morto? Diante de todas essas dúvidas e sintomatizações o obsessivo não quer que surja a oposição. Isso porque surgir a oposição é perder a compleição que no fundo ele deseja, e acha ser possível. Não é possível estar em (+) e em (-) ao mesmo tempo: a realidade não é apenas disjunta, a realidade é a própria disjunção. Assim, diante da bifurcação de um caminho, o obsessivo fica parado em frente a ela, teorizando qual via pegar... Enquanto isso, envelhece e não anda. 

PS: se você já escolheu um título pro texto, não está mais na lógica obsessiva. Se não, ainda tá achando que não dá na mesma fazer uma escolha ou outra. Mas qualquer escolha dá na mesma, qualquer escolha dá na mesma perda...

sábado, 5 de janeiro de 2013

O Inconsciente: Santo Graal da Neurociência



O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem – esse alguém então percebeu seu mistério de coisa. Para isso, há que surpreendê-lo quando está sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em uma simples imagem de uma agulha, tão sensível é o espelho na sua qualidade de reflexão levíssima. (Clarice Lispector, “Os espelhos”)



René Magritte, "A reprodução interdita"


A psicanálise tem como ponto central na origem da sua descoberta do inconsciente a questão sobre o sentido na ordem da mente humana. Foi ao conferir sentidos a sonhos, lapsos e chistes que Freud pôde começar a compreensão da própria ‘lógica’, como diria Deleuze, que rege esses fenômenos. Isso o levou a descobrir que a mente humana é essencialmente uma máquina de produção de sentido, em mecanismos que vão desde o trabalho do sonho aos caminhos da formação dos sintomas. “A introdução de uma ordem de determinações na existência humana, no domínio do sentido, se chama razão. A descoberta de Freud é a redescoberta, num terreno não cultivado, da razão” (LACAN, 1986, p. 12 - grifo meu). Essa razão é o cerne da psicanálise e é em sua direção que ela deve se apontar. Mas de que razão exatamente se trata?

Quando Freud introduz o sentido como determinação radical entre os elementos da mente (ou seja, as representações, as ideias), ficou a pergunta: trata-se de um processo cerebral, anatômico, físico? Ou eram fenômenos puramente psíquicos, que não têm existência física alguma? A princípio, Freud adscreve o mecanismo ao cérebro em seu Projeto para uma Psicologia Científica. Isso porque “a intenção é prover uma psicologia que seja ciência natural: isto é, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis” (FREUD, ESB vol. 1, p. 347). Isso mostra que à época, Freud queria que a mente se reduzisse ao físico, ao material, e não a algo além dele, algo metafísico. Há uma materialidade dos elementos mentais, e Freud tentou adscrevê-la a algo físico, orgânico, cerebral: “os neurônios devem ser encarados como as partículas materiais” (ibid.). No entanto, abandona rapidamente essa ideia (a ponto de nunca querer ter publicado seu ‘Projeto’) e adota a tese metafísica. A partir de então, e, sobretudo a partir de Lacan, a psicanálise sempre se manteve do lado ‘mente’, em sua dicotomia ao ‘corpo’, na qual seu conceito principal, o de inconsciente, foi considerado como uma estrutura não-anatômica, não-física. Psicanalistas, lacanianos famosos, no Brasil, como Maria Rita Kehl, dizem, como ela o fez num congresso de Neurologia e Psicanálise, com todas as letras: “pra psicanálise, o psíquico não é um lugar no cérebro”, “então a gente pode dizer: o psíquico não é uma instância espacial, neuronal, cerebral” (KEHL). Isso é dizer que o sentido, a razão desde a descoberta freudiana, não é algo físico, cerebral, o que Antonio Quinet, outro famoso nome brasileiro, ratifica: “este postulado freudiano de um lugar psíquico não é localizável no cérebro – o que é bom frisar para combater a ideia dos neurocientistas que continuam até hoje a desenvolver, na prática, as teorias da localização cerebral do século XIX. É um lugar simbólico” (QUINET, 2012, p. 21-22).

Quando eu estudava na faculdade, no primeiro semestre de psicanálise, ingênuos que éramos, um de meus colegas perguntou o seguinte para a professora: “mas onde está o inconsciente? É tipo por aqui?” (passando a mão na parte de trás da cabeça). Não me lembro o que ela respondeu, mas provavelmente não foi uma boa resposta, pois o mínimo que ela deveria ter respondido era como era possível haver alguma coisa que não fosse física. E isso ela não conseguiu responder. E nem Freud, e nem Lacan. O processo do inconsciente foi considerado psíquico (no sentido de não-físico) porque não se localizaram alterações ou lesões cerebrais quando se produziam sintomas neuróticos na época de Freud. Em seu 'Projeto', Freud diz que há uma 'alteração funcional sem lesão', e por isso é que ele pede licença (!) para entrar no terreno da psicologia: essa alteração é uma alteração da conepção, da idéia de uma determinada parte do corpo, por exemplo. Já no tempo de Lacan, a causalidade psíquica foi estabelecida a partir dos distúrbios de linguagem na psicose, tais como não fazer metáforas. Para Lacan, metáfora, ou seja, linguagem, não é localizável anatomicamente, ou seja, fisicamente. Mas onde está a metáfora, o sentido, então?

Lembremos rapidamente aqui a historia do sentido na psicanalise de Freud a Lacan. No mecanismo dos sonhos, Freud destaca os processos de condensação e deslocamento; o primeiro era um elemento mental que substituía vários outros ao mesmo tempo, assim condensando-os em si; o segundo como deslocamento de um desses elementos para outro. Lacan, usando o recurso da linguística de Roman Jakobson, redefine os processos freudianos como metáfora e metonímia, respectivamente, que são as figuras de linguagem da qual o inconsciente se vale para produção de seus construtos. O sentido emerge justamente de articulações metafóricas e metonímicas dos elementos do inconsciente (o qual é a própria estrutura articulatória), chamados por Freud de ‘representações’ e por Lacan de ‘significantes’. Esses significantes não são localizáveis no cérebro, eles são apenas a ‘imagem acústica’ que se produz quando um animal humano emite diferentes sons, quer dizer, quando o animal humano fala.

Isso particularmente sempre me intrigou ao começar os estudos de psicologia. Suponhamos um caso freudiano clássico, uma mulher com paralisia facial no lado esquerdo, sem quaisquer alterações, anormalidades cerebrais. A mera fala do psicanalista é capaz de desamarrar aquele sintoma, curando-o: como isso é possível? Como é que a linguagem, como algo 'não-físico', não anatômico, pode causar fisicamente qualquer coisa, como uma cura, neste caso? O que é a fala?

A fala é um processo físico: uma corrente elétrica ativa um circuito neuronal, eletroquímico, que leva da intenção de falar (ou seja, do pensamento de que se vai dizer algo) até o movimento da boca, que então vibra as cordas vocais, articula posicionamento da língua e dos lábios para emitir determinada configuração sonora (e som nada mais é do que moléculas de ar vibrando) que atravessará o ar para atingir uma membrana no ouvido do ouvinte, chamada tímpano, que por sua vez movimenta um grupo de três ossos cuja vibração é convertida em um impulso elétrico que percorre um circuito neuronal até uma área no cérebro que processa aquela informação e lhe confere sentido, assim, por exemplo, curando aquele sintoma em particular. Todo o processo descrito aqui, exceto a palavra ‘sentido’, é um processo físico, material, especificamente eletroquímico e mecânico. Mas o sentido é tido como algo não físico. Por quê?

O interessante é que o significante, que é condição do sentido, mesmo não sendo físico, é suposto ser material. Isso está tanto em Freud como em Lacan. O que quer dizer ‘material’ nesse contexto, então? Quinet responde que “é a materialidade sonora dos significantes (a própria imagem acústica da palavra e que, portanto, dispensa seu significado)” (2012, p. 30). Ora, mas diante de todo esse processo físico na qual se constitui a formação do sentido, pergunto: onde a imagem acústica se forma? Como não seria no próprio cérebro? Como é que no ser humano, que nada mais é do que um outro tipo de primata, o cérebro (evoluído a partir do macaco) possibilita a criação de algo que não seja ‘cerebral’, quer dizer, físico? Como é que o cérebro produz uma 'imagem acústica' fora de si mesmo?

A psicanálise freud-lacaniana, desde aquele Projeto para uma Psicologia científica, não mais se debruçou sobre os limites entre físico e psíquico. Seu movimento foi de entender principalmente a lógica pela qual os elementos do inconsciente (fossem eles físicos ou psíquicos) se articulam. Isso foi muito bem feito por Freud e Lacan. Porém, o inconsciente, o mental, não para aí. Ele é determinado não apenas por elementos propriamente psíquicos (como nos casos das neuroses clássicas), mas por condições cerebrais também. É só ver os efeitos psíquicos que várias drogas causam pelo cérebro, ou condições genéticas, etc. Isso porque o psicanalista pode facilmente ser ludibriado por um sintoma cerebral que ele pensa ser de ‘linguagem’, psíquico; isso atrapalha a clínica, e limita o escopo do entendimento da situação com a qual o analista se depara. E até que ponto o sintoma tem determinantes cerebrais e até que ponto psíquicos é um interregno de praticamente impossível mapeamento completo.

Psicanálise e neurociência não podem se considerar antagônicas; elas têm que trabalhar para que cada vez mais estejam em coerência nas suas formulações. A psicanálise clama ter descoberto nada mais nada menos do que a razão, que é do sentido, como mecanismo fundamental dos processos psíquicos. Se isso é, é de se esperar que mais cedo ou mais tarde, a neurociência descubra o que, no cérebro, a partir da sua evolução entre o macaco e o homem, possibilitou o surgimento dessa razão.

Não é à toa que MD Magno, psicanalista brasileiro pioneiro do lacanismo no país, propõe exatamente isso em 1983: alguma formação cerebral capaz de produzir, secretar, a lógica que os outros animais não têm, que é a lógica do significante. Essa lógica, grosso modo, pode ser formulada da seguinte maneira: para cada elemento psíquico que se coloque no inconsciente, outro elemento é requisitado como sentido daquele primeiro. É como a relação entre conteúdo manifesto e conteúdo latente do sonho: para cada elemento manifesto há, pelo menos, um outro, latente, que se configura como sentido do manifesto. Cada elemento possui um avesso de si mesmo, um Outro, com o qual se articula de modo unilátero: é indiscernível o fim de um e o começo do Outro. É daí que emerge o sentido, dessa própria articulação entre coisas diferentes (ou seja, opostas) que se significam. Por isso MD Magno diz que a razão do inconsciente é catóptrica: palavra que vem do grego katoptron, que significa ‘espelho’. Mas não é a razão especular entre imagens, como Lacan coloca. É o vazio radical do espelho, onde qualquer coisa que se coloca produz um avesso; no entanto, o espelho catóptrico não é como um espelho normal, que só vira ao avesso os lados. É um espelho no qual, se se lhe apresenta luz, ele reflete a escuridão; se se lhe apresenta dia, ele reflete noite, e etc. Ou seja, é um avessamento radical de seus elementos: o espelho reflete opostos. Como exemplo, se alguém sonhou com uma borboleta, o fato de que ‘borboleta’ sempre significa alguma outra coisa que não ‘borboleta’ (talvez a liberdade, devido às asas, ou um trauma, etc.) mostra claramente a catoptria do espelho: se ‘borboleta’ é o conteúdo manifesto do sonho, o conteúdo latente é ‘não-borboleta’; duas imagens (simbólicas) do mesmo espelho (o real). Como diz Lacan: “o que essa estrutura da cadeia significante revela é a possibilidade que eu tenho, justamente na medida em que sua língua me é comum com outros sujeitos, isto é, em que essa língua existe, de me servir dela para expressar algo completamente diferente do que ela diz” (1998, p. 507). Assim, o espelho espelha o contrário, como Magritte mostra muito bem: seu espelho é o oposto de um espelho especular, imaginário e é nisso que ele é catóptrico, real. O significante comporta uma 'significação antitética de palavras primitivas' na qual é impossível saber os limites de seus sentidos, sempre sendo possível um equívoco (l'une-bévue) de significação.

Para Magno, essa lógica catóptrica é que deve estar instalada em alguma função cerebral - e não necessariamente num único ponto ou tipo de função, mas pode ser um conjunto complexo de diferentes funções cerebrais que produzem a catoptria. Mas a aposta de Magno é de que há uma base física, cerebral, para a lógica do inconsciente, lógica esteada na questão do sentido e que foi desenvolvida dentro da psicanálise como lógica catóptrica.




No entanto, a psicanálise, que, pelo menos até Lacan, desvincula o sentido de quaisquer localizações físicas, não é a única a investigar a lógica do sentido. As neurociências - e até mesmo a física quântica! - entraram de vez no campo e têm feito descobertas e asserções que nenhum psicanalista deveria ignorar. Duas são do maior interesse para o entendimento cada vez mais refinado do que possa ser o inconsciente. Mas antes de entrar nas especificidades dessas descobertas, vamos lembrar de maneira básica, o que é o cérebro e seu funcionamento mínimo.

O cérebro é um órgão composto de células específicas, chamadas de neurônios. Em média, cada cérebro tem aproximadamente 100 bilhões de neurônios, que são as unidades funcionais e estruturais do sistema nervoso. Cada neurônio pode ter pontos de contato, chamados ‘sinapses’, com milhares de outros neurônios, de modo que a complexidade de suas conexões ultrapassa o número de átomos existentes no universo.

O estudo do cérebro é feito basicamente através de imagens: ligue detectores no cérebro e peça ao sujeito que execute uma ação qualquer, como mexer um dedo. As partes do cérebro que se estimularem (através dos impulsos eletroquímicos) estão envolvidas no processo de mexer o dedo. Outra maneira é mapear um neurônio por vez para saber que tipo de função ele executa. Por exemplo, a célula não se estimula quando se emite um som, mas quando se emite luz, ela se estimula, o que dá certa confiança em dizer que aquele neurônio está envolvido com imagens, e não com sons. Assim, cada parte do cérebro está envolvida com uma função altamente específica: a parte de trás é majoritariamente responsável pela visão, por exemplo. Se houver uma lesão lá, o que você perde é apenas a visão, e não outras funções, como audição. Existem áreas específicas apenas para a compreensão de movimentos por exemplo. E pessoas com lesão nessa área não conseguem muitas vezes atravessar uma rua, pois não conseguem ver os carros se movendo, elas veem apenas uma sucessão de estados parados do carro, mais e mais perto (ou longe), e assim, não conseguem calcular sua velocidade, o que as deixa receosas para executar a ação. Outra área, chamada giro fusiforme, é relacionada com o reconhecimento de rostos, apenas. Ou seja, algo muito específico. Lesões nesta área levam a sintomas como não reconhecer rostos extremamente familiares, mas o reconhecimento de voz continua intacto.

Um fenômeno que interessa particularmente à psicanálise é o chamado de membro-fantasma. Um sujeito teve, digamos, uma mão amputada, mas continua a senti-la: tem dor, coceiras, sente que mexe com os dedos, etc. Seria isso apenas um fenômeno mental imaginário? Uma alucinação? Mais interessante ainda: quando uma pessoa que tem membro-fantasma observa uma pessoa tocando outra naquela região onde ela está amputada, ela sente o toque no seu membro-fantasma! Apenas a observação a faz sentir o toque que não tocou nela! Só pode ser uma alucinação, um fenômeno imaginário de identificação, certo?

V.S. Ramachandran, neurocientista indiano, forneceu uma explicação cerebral para o fenômeno, a partir das descobertas de um grupo de cientistas italianos liderado por Giaccomo Rizzolatti. Existem neurônios chamados de ‘neurônios de comando motor’, responsáveis por orquestrar a cascata de contrações musculares que resultam, por exemplo, no movimento de um dedo, ou de uma mão, ou qualquer outro. Tanto macacos quanto humanos possuem esses neurônios. Rizzolatti descobriu que aproximadamente 20% desses neurônios ativavam não apenas quando alguém faz o movimento, mas quando simplesmente observa outra pessoa (geralmente da mesma espécie) fazer o mesmo movimento. Essa classe de neurônios foi imediatamente chamada de ‘monkey see, monkey do’, ou ‘neurônios-espelho’, como são agora conhecidos, porque eles imitavam o movimento de outrem. Da mesma forma, na parte do cérebro responsável pelo sentido do tato, os neurônios espelho se ativam à mera visão de alguém ser tocado no braço, por exemplo. E uma questão importante nesse caso é: se meus neurônios de tato se ligam quando vejo alguém ser tocado, como é que eu não sinto o toque? Como o cérebro sabe a diferença? A hipótese é de que o braço do observador, que não está sendo tocado, envia a informação de que não há nada tocando-o, e isso bloqueia o envio de informação do cérebro para o braço com a sensação de toque. E uma maneira de testar isso foi justamente com amputados: como neles não há braços para enviar o sinal de que não estão sendo tocados, eles devem sentir o toque. E foi exatamente o que aconteceu. Mais extraordinário ainda, pessoas que apenas tiveram os braços meramente anestesiados, de modo a não enviar informação sobre toques para o cérebro, também sentiram o toque no seu braço anestesiado!

A descoberta desses neurônios é de extrema importância para a psicanálise, pelo fato de que eles são ativados tanto em uma das pessoas em jogo, quanto na outra, de modo que “a única coisa que está separando a sua mente da minha mente é a pele. Nossos cérebros estão interligados” (RAMACHANDRAN b). “Você é capaz de criar uma simulação de realidade virtual do que está acontecendo no cérebro do outro macaco” (Ibid.) Esse modo de articulação entre eu/outro, no qual os limites entre suas mentes se borram, se indiferenciam, é o lugar da lógica do significante, ou seja, da lógica catóptrica.


Sendo, antes de tudo, uma máquina de avessamento ou Revirão, a mente é a competência de articular as informações recebidas no regime de sua enantiose, isto é, no regime de pura e simplesmente poder efetivar a função contrária do que comparece. Por enantiose ou enantiomorfismo devemos entender a operação de avessamento de toda e qualquer formação que nossa mente é capaz de sonhar ou pensar por ser sua competência fundamental a habilidade de propor uma formação reversa. Assim – questão cara à teoria dos neurônios-espelho –, se há imitação de um “outro” é porque a função revirão opera avessando o que comparece como “externo” em “interno”. Faz-se o que o “outro” está fazendo porque há a capacidade de virar pelo avesso a articulação que se apresenta. A máquina de reviramento incorpora tudo que emerge recortadamente como sendo “outro”. Nesse sentido, a função catóptrica indiferencia as barreiras operacionais que recortam e constroem as noções ligadas ao jogo da alteridade (MAGNO, 2008, p. 174).


De modo que a lógica do espelho dos neurônios parece ser também catóptrica, e não meramente especular, mimética. As duas funções do espelho estão aí embutidas, tanto o imaginário lacaniano quanto a catoptria de Magno.

Veja bem, isso não é dizer que esse neurônio é o inconsciente, mas que a função que ele apresenta é absolutamente compatível com a função do espelho no Inconsciente: a reversão lógica do reviramento de significação. O eu e o outro se espelham, tal como um significante espelha o outro. Se por um lado, Lacan propõe a função do espelho como reconhecimento da imagem, Magno mostra aí que há o reconhecimento do próprio espelho, enquanto articulador catóptrico das imagens, o que inclusive é o que causa o júbilo da criança diante do espelho.

Ramachandran diz que o neurônio-espelho é “um neurônio de empatia. Então empatia não é mais um conceito abstrato, filosófico, metafórico. Você vê no nível da circuitaria neuronal (...), que está dissolvendo a barreira entre você e outro ser humano (...). Eu digo que isso não é só filosofia, não é só metáfora: seus neurônios estão dissolvendo a barreira por você” (RAMACHANDRAN b). Em outras palavras, como disse Lacan, citando Rimbaud: “eu sou outro”.

Agora, se macacos também portam esses neurônios, porque eles também não fazem função catóptrica? Por quê eles não são humanos? Ramachandran diz que é a quantidade desses neurônios que possibilitam complexificações cerebrais suficientes para dar ignição à lógica catóptrica. O ser humano tem muito mais deles do que o macaco.

Assim, a questão dos neurônios espelho está intimamente associada com a emergência do sentido, do significado, e isso também no nível das representações. Ramachandran tem tentado retornar à questão dos qualia e do self como aquilo que falta a qualquer mapeamento neuronal, físico, sobre qualquer sentido humano: sua experiência consciente e subjetiva das coisas. Os qualias são as representações das quais se tem consciência (RAMACHANDRAN b); por exemplo, se você for espetado por uma agulha, sentirá a sensação – isso é qualia: a experiência subjetiva, consciente, e incomunicável para outros, de estar sendo espetado por uma agulha. Já o self é a possibilidade de refletir (como quem fala de espelho...) sobre a própria qualia: “eu sei que experiencio aquele qualia e eu sei que eu experiencio aquele qualia” (Ibid.). De modo que Ramachandran acha que esses não são dois conceitos separados, mas devem ser considerados simultaneamente, “como dois lados de uma banda de Möebius” (Ibid.): não há qualia, ou seja, experiência subjetiva, sem o self, pois não há um estado anterior, chamado qualia, sobre o qual o self reflete; não há um sem outro; e ambos estão intimamente relacionados à linguagem, na área de Wernicke no cérebro. “Para que a qualia tenha qualquer significado deve haver significado” (Ibid.). Ramachandran exemplifica da seguinte maneira: uma mosca que vê uma fruta e põe sua probóscide (aquela coisinha com a qual ela pica) para comer a fruta, está criando uma representação daquela fruta no seu cérebro, pois são sinais neurais; ela não está copiando a fruta em seu cérebro. Assim que a representação é criada, a mosca solta sua probóscide. Para Ramachandran, não há qualia aí nessa representação. Para uma pessoa, a fruta (suponha que seja maçã) evoca o ‘pecado original’, ou sua professora, ou, se você for um Newton... evoca a gravidade. São virtualmente infinitas possibilidades de significado. E isso é unicamente humano. “E isso acontece... eu acho que são conjuntos de circuitos no cérebro” (Ibid.). Eses conjuntos geram


não apenas a representação sensória, mas o self ‘inspecionando’ a informação sensória que entra. Isso é território perigoso, pois quando você fala ‘inspeciona’, faz você pensar na falácia do homúnculo, de uma pequena pessoa que está olhando. Não é o que eu digo. Estou dizendo que em algum estado da evolução, ao invés de apenas a representação sensória, começou-se a criar o que chamo de meta-representação, uma representação da representação – ao contrário da mosca – que permite que se manipulem símbolos internamente na cabeça. E isso está intimamente conectado com coisas como sentido. [...] e nesse conjunto todo há a emergência dessa propriedade dual do qualia e do self, que eu acho ser única nos humanos (Ibid.).


Temos então o qualia como representação sensorial e o self como meta-representação, e a articulação de ambos, ao modo da banda de Möebius, é o que gera o sentido. Isso é exatamente como o que Lacan e Magno colocam como articulação entre significantes. Isso vem de Freud, que cunhou dois termos: Vorstellung (representação) e Vorstellungrepräsentant (representante da representação), as quais ele adscreve ao inconsciente, como representação de coisa, e ao pré-consciente/consciente, como representação de palavra, respectivamente. A Vorstellungrepräsentant é análoga ao que Ramachandran chama de meta-representação, que articula as infinitas possibilidades de sentido para as Vorstellungen. E essa é a própria função do significante: representar outro significante.

Para Ramachandran, toda a discussão está concentrada numa questão, que é “o Santo Graal da Neurociência”: como os neurônios instanciam o sentido? (Ibid.) A psicanálise, a partir dos achados freudianos, formulou uma lógica que responde a essa pergunta num nível abstrato, discursivo, linguageiro, "não físico"; mas a neurociência parece estar percorrendo o mesmo caminho lógico por uma via neuronal, cerebral, mostrando à psicanálise a condição física para a possibilidade da emergência da função catóptrica que caracteriza o inconsciente. Isso, por sua vez, à própria maneira dos neurônios-espelho, dissolveria a fronteira entre físico e psíquico, natural e cultural, uma vez que, até mesmo segundo Freud, investigar o inconsciente (tido como construto puramente cultural) é investigar “algo que pertence ao próprio núcleo da natureza” (FREUD, ESB vol. 1, p. 336). Pois, se o cérebro porta, comporta, condiciona a lógica significante, é porque ele mesmo é “estruturado como uma linguagem”, como diz Lacan.

Ramachandran também discute a questão da metáfora. Como sabemos, Lacan mostra que a metáfora é mecanismo significante, de uma substituição de um significante por outro, o que gera a articulação fundamental entre Vorstellung e Vorstellungrepräsentant, constituindo assim o advento do sentido. Quer dizer, a articulação não é especular, como se um elemento tenha qualquer semelhança com o outro (como diz Lacan, não se trata de analogia); pelo contrário, é uma articulação de diferença radical, de oposição, ou seja, é articulação catóptrica: um elemento nada tem a ver com o outro, mas mesmo assim são dois aspectos da mesma coisa. Lembremos com Freud que “as representações opostas são preferencialmente expressas nos sonhos por um único elemento. O ‘não’ parece inexistir no que concerne aos sonhos. A oposição entre dois pensamentos, a relação de inversão, pode ser representada nos sonhos de maneira realmente notável. Pode ser representada pela transformação de outra parte do conteúdo onírico em seu oposto” (ESB, V, p. 679). 

O neurocientista indiano começa a compreender a metáfora a partir de um fenômeno muito interessante e que, segundo ele, a ciência sempre renegou por não ser compatível com seu paradigma (qualquer semelhança com Freud...): a sinestesia. Ela é uma condição em que representações dessemelhantes, diferentes, até mesmo opostas, entram em relação. Por exemplo, se eu disser que a nota musical 'dó' tem a cor verde: se a nota toca, eu digo que aquela representação é verde. Ora, está-se tomando uma representação auditiva (som) e articulando-a a uma representação visual (cor), representações que são evidentemente conflituosas, e até certo ponto, realmente opostas. Outro exemplo é o tipo de sinestesia mais comum: números e cores. Assim, o 1 é azul, 2 é vermelho e etc. Lacan dizia que só se pode falar por metáforas: a sinestesia mostra isso num nível muito forte, o corporal, cerebral. ‘Literalmente’, é revirar a palavra de um ‘sentido’ (‘visão’, ‘audição’...) para outro...

Novamente pergunto-me: trata-se de um fenômeno puramente linguageiro, ‘psíquico’? A metáfora é algo que de nunca, forma alguma, será descrita em termos físicos, cerebrais? As pesquisas de Ramachandran sugerem que não; há uma lógica cerebral homóloga à lógica metafórica do significante. Isso porque nos mapeamentos cerebrais de sinestetas as áreas especializadas em enxergar cores acendem junto com as áreas que representam números, ou sons, e das outras combinações de sentidos. De modo que, por mais que o olho não veja, o cérebro processa o número ou o som como tendo uma cor associada a ele: o cérebro vê a cor, 'literalmente'. Por quê isso acontece? Porque as áreas responsáveis pelas diferentes funções (como números e cores, por exemplo) estão muito próximas umas das outras, o que causa, caso certo tipo de gene esteja desligado, um cross-wiring entre elas, ou seja, uma maior interconexão do que geralmente ocorre na formação cerebral 'normal' (que é uma maior especificidade de cada área do cérebro, menos conectadas). De modo que uma informação sobre número ‘vaza’ para a área das cores, assim articulando os dois significantes.

Se um mesmo gene for expresso mais difusamente por todo o cérebro então você terá maiores oportunidades de articular regiões cerebrais aparentemente não relacionadas, e consequentemente domínios conceituais aparentemente não relacionados. Isso é a base da metáfora. O que artistas, poetas e romancistas têm em comum? A habilidade de ligar ideias e conceitos aparentemente não relacionados (RAMACHANDRAN b).


Essa ideia de articular oposições, ou melhor, ‘conceitos aparentemente não relacionados’ é a neutralidade do espelho catóptrico, diante do qual a luz reflete a sombra, o bem reflete o mal, o som reflete a cor, e, especialmente, o eu reflete o outro. É o mesmo aparelho de dissolução de barreiras que “recortam e constroem as noções ligadas ao jogo da alteridade” (MAGNO, 2008, p. 174), que é propriamente o que Lacan falava sobre o equívoco do significante. De modo que é necessário supor alguma relação entre a lógica dos neurônios-espelho, supostos serem o rudimento da linguagem humana, e da genética que possibilita o cross-wiring, fornecendo as bases do pensamento metafórico na linguagem; pois, como a psicanálise nos mostra, a própria linguagem se institui a partir da metáfora. A relação catóptrica da metáfora é o próprio cerne da linguagem, ou melhor, o próprio cerne do Inconsciente, que, antes de ser língua, linguagem, é essa própria lógica de catoptria. As pesquisas neurológicas têm sugerido então que a catoptria não apenas se manifesta no nível linguageiro ‘psíquico’ (não-físico) mas no nível físico também, no cérebro.




E isso chega a um nível ainda mais radical a partir das pesquisas de um anestesiologista e de um físico: respectivamente Stuart Hameroff e nada mais nada menos que sir Roger Penrose. É sabido que dentro dos neurônios existem estruturas chamadas de microtúbulos, que são como ‘ossos’ da estrutura neuronal, determinando sua arquitetura (HAMEROFF). “Microtúbulos são perfeitamente desenhados para ser o computador de bordo da célula e processar informação no nível molecular” (HAMEROFF). A novidade que os autores propõem é que esse processamento é quântico, ou seja, processa os dois lados da oposição de uma só vez, assim como a neutralidade do espelho também processa os elementos do inconsciente na sua bifididade, ou, como diria Lacan, L’une-bévue, na equivocidade do significante, da significação antitética de palavras primitivas. Um processo essencialmente quântico é precisamente da ordem da superposição dos estados ortogonais das oposições, ou seja, da própria lógica catóptrica. É nesse vazio da superfície do espelho que uma oposição surge; o espelho sendo o que superpõe as oposições.

No nível do cérebro, o processamento clássico é, como diz Ramachandran, uma cascata de reações entre os circuitos neuronais; funciona como um efeito dominó: um neurônio acionando outro pelos seus pontos de contato e distribuindo a informação ao longo desse circuito sináptico. Já um processo cerebral quântico seria a interação entre dois neurônios que não estão conectados sinapticamente, acontecendo assim uma 'ação à distância' entre eles. É como se o efeito dominó ocorresse entre duas peças que não se encostam ao caírem. É uma articulação instantânea entre, por exemplo, um neurônio do hemisfério esquerdo com um do hemisfério direito sem passar por qualquer circuito. E a alteração da propriedade de um deles (por exemplo, corrente elétrica) instantaneamente afeta à distância a propriedade do seu par. A aposta de Hameroff e Penrose é de que esse processamento quântico da articulação neuronal se dá através dos microtúbulos dos neurônios, que articulam-se quanticamente.

Para testar a validade da hipótese, seria necessário obter um fenômeno quântico em seres vivos, o que é muito difícil, porque eles são grandes demais para a escala em que os fenômenos quânticos acontecem; além disso, são muito quentes, o que também dissiparia o fenômeno enquanto quântico. Porém já foi demonstrado que fenômenos quânticos ocorrem em certos organismos vivos, como pássaros (em seu sistema de navegação), plantas (na fotossíntese), e até mesmo no olfato humano. A pesquisa é recente, feita por Vladko Vedral (revista Scientific American, julho 2011). A possibilidade de se verificar efeitos quânticos em cérebros humanos tem se mostrado sustentável. Se isso for confirmado, mostrará a catoptria do processamento cerebral no seu nível mais fundamental enquanto materialidade: no nível físico das articulações subatômicas. Ou seja, mostrará a lógica que a psicanálise descobriu antecipadamente lógica da 'matéria significante', porém no nível físico, quebrando a barreira entre a oposição físico x psíquico, e isso ao próprio modo catóptrico, pois o núcleo do funcionamento psíquico é fundamentalmente quântico.

O processo quântico que articula os dois neurônios é chamado de emaranhamento. Ele articula neurônios que não estão conectados sinapticamente, bem afastados de contato um do outro, ‘aparentemente não relacionados’, como diria Ramachandran. Porém, um responde à ativação do outro como dois significantes se articulam na produção da metáfora: por catoptria. Um e outro neurônio se conectam como as duas imagens de um espelho catóptrico, que de algum modo se coloca entre eles e os põe a se representar. Modo esse que ninguém na física quântica entende e que Lacan costumava chamar de real.

Se por um lado, os neurônios espelho funcionam dissolvendo a barreira física entre um cérebro e outro, por outro lado, o emaranhamento quântico de microtúbulos funciona dissolvendo a barreira física entre um neurônio e outro. Mas ambos os lados só fazem refletir a unilateralidade da catoptria: seja cérebro, neurônio, representação, significante, seja qual for o material que sustente essa lógica, a psicanálise vem destacar o vazio lógico da estrutura catóptrica para mostrar a intercambialidade dos elementos que acaso ocupem essa estrutura. É no vazio do espelho que as oposições se refletem, se articulam como tais; mas o espelho não é conteúdo, ele simplesmente causa a articulação dos conteúdos: o espelho equivoca: transforma a agulha na sua própria imagem, ou seja, faz a agulha representar a si mesma. É isso que Magno aposta que os neurocientistas eventualmente descobrirão, ou melhor, comprovarão no laboratório, uma vez que as pesquisas de Ramachandran e Penrose & Hameroff parecem já ter descoberto o mecanismo lógico da psique funcionando fisicamente. Mas a descoberta original dessa lógica é psicanalítica, e cada vez mais tem sido sustentada pelas novas descobertas no campo da ciência a partir dos achados em física quântica, neurociências, etc. “Quero dizer que a mente imita com eficiência e eficácia a bifididade que os físicos encontram dentro da ordem quântica na microfísica” (MAGNO, 2011). Ou, se quiserem acreditar no Lacan, ele também diz:


O sujeito participa do real, justamente, por ser aparentemente impossível. Ou, melhor dizendo, se tivesse que empregar uma figura que não surge aí por acaso, diria que ocorre com ele o que ocorre com o elétron, no ponto em que este se propõe a nós na junção da teoria ondulatória com a teoria corpuscular. Somos forçados a admitir que é precisamente como sendo o mesmo que esse elétron passa ao mesmo tempo por dois buracos distantes (Jacques Lacan, Seminário XVII).

O real não é o mundo. Não há nenhuma esperança de atingir o real pela representação. Não vou começar a arguir aqui a teoria dos quanta, da onda, do corpúsculo. Seria melhor de qualquer forma que vocês estivessem por dentro, mesmo que isso não lhes interesse (LACAN, A Terceira).


Repetindo, não se trata aqui de adscrever um lugar cerebral específico como responsável pela existência do inconsciente (lembro de uma professora minha que tentou defender a localização do superego no lobo frontal), mas simplesmente destacar que a funcionalidade lógica da estrutura linguageira do inconsciente tem que ter algum substrato no cérebro. Foi a evolução do cérebro, num processo de complexificação da sua estrutura desde os primatas até os humanos, que propiciou a possibilidade lógica de um funcionamento mental significante, catóptrico, propriamente humano, e não meramente como linguagem animal. Por isso, a psicanálise não precisa ‘combater’, como diz Quinet, a neurociência, pois se acaso as teorias dos neurônios-espelho e dos microtúbulos forem refutadas, isso não afetará a lógica proposta pela psicanálise; mostrará apenas que os cientistas terão que procurar essa funcionalidade de outras maneiras. Cabe a eles descobrirem como o cérebro possibilita a emergência da função catóptrica na mente. A psicanálise já mostrou como isso funciona logicamente; a neurociência que o demonstre neurologicamente! E com essas descobertas, como as de Ramachandran e Hameroff & Penrose, os passos estão indo nessa direção.

Portanto, falar que o psíquico não é uma instância física, espacial, neuronal, coloca a velha oposição mental x físico, o que é ir na direção contrária ao que Freud dizia, que a lógica do inconsciente não comporta oposição. Não se trata de o inconsciente ser ou mental ou físico, natural ou cultural. O inconsciente é lógico, ou seja, articula o natural e o cultural como as duas imagens de seu espelho. E negar a possibilidade dessa articulação é falta de análise da própria teoria, o que sintomatiza a psicanálise em um narcisismo da sua pequena diferença (a diferença físico x psíquico), e, ao invés de trabalhar no sentido da dissolução das barreiras entre as oposições, que é o próprio movimento de cura na psicanálise, o próprio movimento do inconsciente, esse ‘combate’ só faz reforçar ainda mais a resistência a esse movimento. Por isso, “é legítimo aplicar o método psicanalítico à coletividade que o sustenta” (LACAN, 1998, p. 245), para ver se a teoria não se reduz a palavras gastas (LACAN, 1986, p. 9), já que o pensamento freudiano é o mais perpetuamente aberto à revisão (Ibid.). Não é preciso ficar na defensiva, na onda paranoica de combate a outras teorias da mente, pois se a psicanálise e a neurociência dissolverem suas fronteiras, como quem dissolve a barreira físico/psíquico, isso não invalida ou apaga a lógica que Freud trouxe; pelo contrário, ratifica-a. A psicanálise não perderá seu lugar, sua especificidade no mundo; apenas efetivamente integrará e terá sido integrada por outros saberes que estão no mesmo campo lógico que ela (tal como Lacan fez ao articular a psicanálise a tantas outras disciplinas). E aí, ela nem precisará se chamar “Psicanálise” mais; poderia ser Físicanálise, ou qualquer outro nome. A lógica terá sido preservada, porque ela é homogênea aos dois campos. Pois uma vez que a principal pesquisa da neurociência é, como diz Ramachandran, a instanciação do sentido pelos neurônios, e uma vez que a lógica do sentido é a estrutura catóptrica descoberta no inconsciente por Freud, fica claro que o Inconsciente é o Santo Graal da neurociência, por ser a lógica da articulação de oposições a partir da qual o sentido, logicamente humano, é gerado nesta espécie particular de macaco, chamado Homo Sapiens Sapiens.



REFERÊNCIAS:

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.


_____________. O Seminário, livro 19. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.

_____________. O Seminário, livro 17. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

_____________. O Seminário, livro 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

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