sábado, 13 de setembro de 2014

Pela política qualquer

"Nunca sentir sinceramente os próprios sentimentos, e elevar seu pálido triunfo ao ponto de olhar indiferentemente para suas próprias ambições, ânsias e desejos; passar pelas suas alegrias e angústias como quem passa por quem não lhe interessa.
O maior domínio de si próprio é a indiferença por si próprio, tendo-se, alma e corpo, por casa e quinta onde o Destino quis que passássemos a nossa vida.
(...)
...perceber que na nossa presença nunca estamos sós, que somos testemunhas de nós mesmos, e que por isso importa agir perante nós mesmos como perante um estranho...
(...)
Cada um de nós é uma sociedade inteira, um bairro todo do Mistério"

(Fernando Pessoa, #428 - "Estética da Indiferença", in "Livro do Desassossego")

"A Coisa é a medida de todos os homens"
(MD Magno)



Pensar a política nos dias de hoje exige a consideração daquilo que Freud apontou no início do século passado, isto é, a consideração da impossibilidade inerente em se governar, educar e psicanalisar. Se nos esquecemos disso, fatalmente recorremos não apenas em erros de respostas frente aos problemas que se colocam, mas, principalmente, em erros da própria problematização, o que é mais grave ainda, uma vez que tais erros obscurecem profundamente o campo de possibilidades de respostas e de ações políticas para sua resolução.

Levar em conta o que é impossível para a política, ou seja, trazer para o campo político a própria noção de impossibilidade é um passo fundamental para que se compreenda o que, de fato, é possível fazer politicamente. Hoje em dia vivemos uma configuração sócio-política em que o capitalismo, essa “democracia de mercado”, se impõe como único sistema possível no mundo  atual - e, para além do qual, mesmo sendo um sistema tão horrível de produção e manutenção de desigualdades, não conseguimos vislumbrar outro horizonte. Durante as ocupações de Wall Street, em 2012, Zizek mostra claramente como é preciso ampliar o campo de possibilidades que está dado para nós: “Em meados de Abril de 2011 o governo chinês proibiu na TV, filmes e romances qualquer história que contivesse uma realidade alternativa ou viagem no tempo. Este é um bom sinal pra China. Essas pessoas ainda sonham com alternativas, logo você deve proibir esse sonho. Aqui, nós não precisamos de uma proibição, porque o sistema dominante chegou mesmo a oprimir nossa capacidade de sonhar. Vejam os filmes que assistimos o tempo todo. Um asteroide destruindo toda a vida e tal. Mas não se consegue imaginar o fim do capitalismo” (Zizek, 2012). Grande parte dos erros de problematização que vivemos atualmente são frutos de uma confusão entre o que é impotência e o que é propriamente impossibilidade. Acreditar que o que não conseguimos pensar é, de fato, impensável é justamente o que obscurece nossa visão de um horizonte além do que nós vivemos, e ao qual, como a bela alma histérica, estamos, na verdade, mais do que adaptados. Por isso, queremos aqui pensar o que é impossível politicamente, ou melhor, pensar o que a política não pode fazer para que se abra diante de nós as possibilidades que ela oferece.

É um tanto lugar-comum nos dias de hoje dizer que não temos que pensar, que a situação tá preta, precisamos é fazer alguma coisa imediatamente. No entanto, o próprio pensamento deve aqui ser encarado como ação, não apenas mera especulação conceitual e infrutífera. Heidegger já dizia que o pensamento, quando pensa, age. Assim, quando recolocamos nossas problematizações a partir de outra perspectiva, novos campos de ação se abrem e novas configurações políticas são possibilitadas.

Então, falemos do impossível. Ora, falar do impossível é falar do real. É falar que há limites ao que é possível saber subjetivamente ou conhecer objetivamente. A psicanálise de Freud a Lacan e a física quântica, ambas “inauguradas” em 1900 com Freud e Planck deixam muito claro como há, de fato, um impossível para o pensamento. Trata-se então de formalizar que impossibilidade é essa, e as implicações políticas que ela causa. O conceito de real é o conceito que se refere a essa impossibilidade inerente ao próprio saber/conhecimento. Mas para compreendermos o que é o real – que é um conceito negativo a princípio –, precisamos entender o que é o simbólico e o imaginário, que são as duas outras categorias funda-mentais do pensamento psicanalítico – ou, como dizia Lacan, do pensamento anti-filosófico.

Sabemos desde Freud que o ser humano é tomado pelo símbolo, pela representação (inclusive a política). A famosa “interpretação dos sonhos” é evidente nesses termos; alguém sonha com, digamos, uma borboleta, e, através do trabalho de associação livre, descobre-se o conteúdo latente do sonho manifesto, que pode ser a própria mãe, por exemplo (que o pai apelidava carinhosamente de ‘borboleta’). O que se evidencia nisso é que a representação manifesta no sonho “borboleta” não significa uma borboleta “real”, o animal que voa, etc. A significação do sonho é metafórica, e não literal, de modo que a palavra “borboleta” passa a significar outra coisa que não “borboleta” – no exemplo hipotético aqui apresentado, ela significa “a minha mãe”. Assim, temos uma palavra qualquer – um significante – que pode representar, significar, qualquer outro significante. Mas o significante em si não tem um sentido fixo, ele varia de pessoa pra pessoa (ou seja, de sujeito para sujeito) e de contexto pra contexto. Então temos o simbólico como esse sistema de significantes que ao se associarem, se encadearem, produzem significação, sentido. Uma vez que significantes não têm significação a priori, qualquer significação que acaso se forje entre eles conta pela ordem do sentido, do imaginário. O imaginário toma a articulação contingencial dos elementos simbólicos por necessária, tal como achar que “borboleta” significa apenas aquele animal; mas essa palavra pode ter qualquer sentido, ou seja, pode ser articulada a qualquer outra palavra para gerar outros sentidos. Em especial o sentido contrário. Em seu texto “A significação antitética das palavras primitivas” Freud nos mostra como várias palavras expressam seu próprio contrário. Em inglês, por exemplo, a palavra “get”, dependendo do uso, do contexto em que é aplicada, significa tanto “dar” quanto “receber”. Quando se a usa como “dar”, exclui-se das possibilidades dessa palavra (pelo menos naquele momento, naquele uso) o “receber”, decantando o sentido da palavra em apenas uma de suas possibilidades de significação. Esse decaimento de suas possibilidades é a própria função do imaginário: criar estabilidade e consistência para uma significação – ou melhor, para que a significação seja propriamente uma, unívoca, determinística.

No entanto, como um significante pode ter quaisquer sentidos que se queira (Saussure dizia que os sentidos eram “arbitrários”; Lacan dizia “contingentes”), conclui-se que não há sentido unívoco para o significante; o significante pode significar qualquer coisa porque ele em si não significa nada – o significante é, essencialmente, insignificante. E como o aparato de constituição das realidades do ser humano é o sistema significante da linguagem – é pela linguagem que amamos, que trabalhamos, que tomamos decisões, que fazemos política, filosofia, etc. –, vivemos a dar sentidos para algo que não tem sentido, para algo ao qual é impossível dar sentido cabal e absoluto. E é justamente a partir dessa falta de sentido inerente à própria linguagem, ao próprio sistema de significação, que algo como a política (ou seja, as múltiplas formas de se dar sentido à realidade humana, e especialmente às suas relações) se inicia. O real é aquilo que o significante, em sua função de dar sentido, não apreende. A linguagem humana é diferente da linguagem dos animais por ser inerentemente tolhida de sentido, e, em certo modo, tolhida de si mesma; a linguagem humana não é inteiramente linguagem, ela tem um rombo, um furo, que impede quaisquer totalizações de significação em seu sistema. É como Agamben diz, que há “o ser-na-linguagem-do-não-linguístico, isto é, a coisa mesma” (2013, p. 89). Não há univocidade de significação na linguagem humana, porque a própria linguagem não é unívoca em si-mesma, ela é propriamente equívoca, dada a inimaginável pluralidade de sentidos que um elemento significante pode criar. É por isso que sempre fracassamos no que dizemos e pensamos, pois ao fazê-los estamos tentando restringir os efeitos que o material que usamos para pensar e dizer (os significantes) tem à nossa própria revelia: muitas vezes dizemos algo “querendo dizer” justamente o contrário, e nem nos damos conta disso. É precisamente do vão entre o dizer e o “querer dizer” que se trata aqui: não há relação unívoca, exata, entre os dois. Por isso, dizer é sempre um fracasso, pois nunca é, realmente, aquilo que sequer dizer.  O real é esse obstáculo, esse vão intransponível entre os dois. “O real é justamente o efeito do fracasso do simbólico em atingir (não o Em-si, mas) a si mesmo, em realizar-se plenamente, mas esse fracasso só acontece porque o simbólico é tolhido em si mesmo. (...) um ‘sujeito do significante’ é literalmente o resultado do fracasso em se tornar si mesmo” (Zizek, 2013, p. 594, negrito meu). O impossível que o real comporta é o de não haver identidade-de-si das coisas (especialmente das pessoas, os “sujeitos do significante”), que podem então sempre transmutar-se em outras, já que não existe identidade, sentido, significação cabal de qualquer elemento existente.

De modo que o real é o impensável, não tem rosto, nem nome, nem identidade, mas só podemos pensar em algo que não tem nome, rosto ou identidade a partir de uma identidade, de um nome, de um rosto: a partir de um sistema de compreensão que qualquer coisa, ou seja, a partir do próprio simbólico – ou melhor, a partir da sua ruptura. “O real não é o Em-si externo que escapa à apreensão simbólica, que o simbólico só pode circundar de maneira inconsistente e antinômica; o real não é senão a lacuna ou o antagonismo que tolhe o simbólico por dentro – o simbólico toca o real de maneira totalmente imanente. Por conseguinte, somos levados ao principal paradoxo do real: ele não é apenas o inacessível Em-si, ele é simultaneamente a Coisa-em-si e o obstáculo que impede nosso acesso à Coisa-em-si” (Ibid.). De modo que cada dizer humano traz consigo a marca do impossível de ser dito, a tal ponto que dizer é, na verdade, tentar dizer o que se quer dizer.

Assim temos as três categorias R,S,I, consideradas a partir da estrutura da linguagem, espaço abstrato em que o ser humano está (não-todo) mergulhado e aparato com o qual manejamos o mundo. No entanto, num esforço de abstração e formalização que vão além da estrutura linguageira, redefiniremos R,S,I a partir de uma lógica que extrapole ser meramente da linguagem, e que seja absolutamente formal, querendo com isso dizer que essas categorias podem ser chave de leitura de quaisquer coisas que se nos apresentem – não apenas coisas “de linguagem”.

Podemos então pensar o simbólico, cuja propriedade é a de nomear, como simplesmente a distinção. Cada Um que se apresente, cada nome que distinga um elemento entre os demais, é efeito do simbólico. Para além, ou aquém, do nome, o que quer que comporte diferenças, oposições, o que quer que as produza, pode ser definido como simbólico. Ora, isso se demonstra pela própria lei do significante, tal como Lacan destaca da obra de Freud: um significante é algo que só serve para articular-se a outro significante. Ele mesmo, enquanto tal, tem a função de colocar Outro significante, ou seja, simplesmente colocar algo que seja diferente dele, que seja não-ele. “Se trata aqui do que nomeia, e simplesmente pelo nome, distingue”, “pois ninguém vai supor que o significante tenha alguma propriedade anterior ao discernimento que ele efetiva” (Milner, 2006, p. 18). Milner nos diz que é simplesmente o fato de que “há discernível” (Ibid., p. 23), que é o próprio fato de haver significante. Já Lacan indicou a mais elementar, a mais nuclear sequência simbólica, “a de uma série linear de sinais que conotem a alternativa da presença e ausência” (1998, p. 433). O significante coloca imediatamente uma diferença dele mesmo para com qualquer outra coisa, ele coloca algo que se lhe opõe, que é o outro significante; de modo que o simbólico se define por ser essencialmente o opositivo em si, é o fundamento de toda e qualquer oposição, discernimento: um significante não existe fora da relação de oposição para com outro significante, ou seja, uma distinção implica necessariamente a outra, da qual ela é distinta. Em suma, o simbólico, enquanto oposição, é simetria pura: uma coisa coloca outra coisa da qual se diferencia. “A primeira rede, do significante, é a estrutura sincrônica do material da linguagem, na medida em que cada elemento adquire nela seu emprego exato por ser diferente dos outros” (Ibid., p. 415). Mais conciso que isso, apenas Milner: “considerar um elemento qualquer apenas sob o ângulo das propriedades mínimas que lhe atribui um sistema ele próprio reduzido a suas propriedades mínimas de sistema, considerar um sistema qualquer apenas do ponto de vista dos elementos mínimos em que ele se divide, é o que estenografa o nome significante” (1996, p. 83).

Já aquilo que confira propriedades (topológicas, de preferência) às distinções, tal como “presente”, ou “ausente”, conta pelo imaginário. Quando a simetria significante se decanta, decai em alguma propriedade, que exclui outra propriedade – tal como uma aplicação em determinado contexto da palavra “get” para expressar “receber”, excluindo sua possibilidade de ser “dar” – temos uma quebra da simetria do elemento significante, que prende-se a um sentido em detrimento da pluralidade de outros sentido possíveis, assim dando univocidade a uma orientação topológica qualquer do significante. Em suma: se o elemento simbólico “get”, que a princípio pode tanto ser “dar” como “receber”, for “conjugado” em algum, e apenas um, desses dois sentidos – por conseguinte, excluindo o outro –, ele passa ao regime imaginário, que é um regime de dissimetrização simbólica. Se o simbólico é essencialmente simetria (entre presença/ausência, +/-, sim/não, 0/1, assim/assado, etc.), “o imaginário, no sentido em que eu coloco, exige a dissimetrização do simbólico para sua sobrevivência sistêmica. (...) Isso se dissimetriza: o válido é para cá, o não-válido é para lá, o estável é para cá, o desejável é para lá...” (MAGNO, 1987, p. 178). O imaginário é tomar um lado por um lado e outro lado por outro lado, esquecendo-se de que um lado sempre pode ser tomado por outro, como na banda de Möebius.

Como já vimos acima, o real só pode ser apreendido em alguma medida como o fracasso do simbólico em simbolizar, quer dizer, como o fracasso do simbólico em discernir. Assim, em qualquer sistema de discernimento, de oposição – ou seja, em qualquer linguagem – quando há indistinção entre elementos opositivos, podemos atestar uma ação do real. Não há marcação de distinção no real, há uma neutralização de distinções e simetrias. O próprio significante “get”, mesmo sendo simbólico (pois é um elemento bem discernido entre os outros elementos significantes), comporta a ação do real, já que ele resta indistinto entre ser “dar” ou “receber” – ele resta como pré-opositivo à sua decantação: enquanto significante, ele não tem sentido algum – ou, melhor dizendo, o sentido que ele pode tomar é completamente indiferente; tanto pode ser um como outro. É como se o real fosse os dois ao mesmo tempo, só que na verdade ele é ne-uter, nem um nem outro, como nos mostra a etimologia de “neutro” – ele é indiferente às oposições, no que as considera todas. Lacan chamava essa esse rombo, essa hiância do real de pré-ontológica (em seu Seminário 11), pois não se pode dizer que o real “seja” algo, tenha qualquer propriedade, uma vez que ele é precisamente o que escapa a qualquer compreensão e categorização (que se fazem apenas de dentro do sistema de oposição, que é a linguagem). De modo que real não é. Por isso mesmo é que gente como MD Magno e Jean-Claude Milner concordam em dizer que o real . Há, como uma pura emergência do sem-sentido, do incompreensível, do propriamente impossível. Uma pura emergência de haver, e não se sabe o quê que há. Poderíamos mesmo dizer que é a emergência do próprio nada; o nada há, há o nada, e é Isso o que não conseguimos compreender. E é justamente desse nada que as coisas, as distinções, as diferenças, surgem, como já diz a física moderna há muitos anos. Em outras palavras, a estrutura, real-simbólico-imaginária é uma estrutura de “produção de distinção a partir da não-distinção” (Magno, 1986 p. 242). De modo que é da neutralidade indiferente do real (que é impossível imaginar com um aparelho simbólico como o nosso) que surgem as configurações simbólico-imaginárias que constituem as realidades nossas de cada dia. A diferença aparece a partir da indiferença. A indiferença é considerada aqui como campo de possibilidade de emergência de quaisquer diferenças - o discernível surge de um campo real, indiscernível, indistinto.

A noção de real implica um esvaziamento substancial, essencial, de quaisquer configurações simbólico-imaginárias que se apresentem, pois elas apresentam apenas um dos lados daquilo que há como real. Configurações são apenas modalidades do real, ou seja, modalidades de haver. Mas o real, o haver, não é suas próprias modalidades, é aquém delas, é pré-ontológico. Em outras palavras, o ser, com suas propriedades e configurações, só pode se dar como simbólico-imaginário, ao passo que o real não é, não tem propriedades, apenas há, como falta-a-ser, como dizia Lacan. O real não é, e é justamente por isso que é somente a partir dele que qualquer ser pode emergir. E é a partir de uma intrusão do real em modos ônticos já determinados, já estabelecidos, cristalizados, que se torna possível uma hiperdeterminação desses modos para sua modificação e reconfiguração. Assim, se os caminhos trilhados pelo ser vão se determinando como consequências necessárias uns dos outros, o real hiperdetermina esses caminhos pela própria ação do nada, como pregnância de possibilidades que aparentam impossíveis para o ser. Dito de outro modo, o que parecia impossível torna-se possível a partir da incidência do real – que é impossível de ser pensado, mas é o berço das possibilidades ontológicas. Configurações que aparentam ser inamovíveis, impossíveis de deslocamento e reconfiguração, ao sofrerem um choque do real passam a se diferenciar de si mesmas, ou seja, mudam, se deslocam. Quem imaginaria que em Junho de 2013 centenas de milhares de pessoas sairiam às ruas em protesto contra o atual sistema sócio-político do país? Era algo impossível, mas, uma vez acontecido, introduziu mudanças na própria percepção sobre o sistema, assim abrindo novas formas problematização da situação política atual. 

Nesse ponto é necessário introduzir as duas modalizações do impossível. Os modos de haver, suas configurações simbólico-imaginárias, muitas vezes se apresentam como impossíveis de serem mudadas. Tomemos as leis naturais, por exemplo. Elas têm toda a aparência de ser impossíveis de mudar. Antigamente, ir à lua era, da mesma forma, impossível. A posteriori, descobrimos a possibilidade de ir à lua. De modo que o impossível que marcava a ida à lua era simplesmente modal, e não absoluto. Era impossível à época porque não havia teoria, técnica e tecnologia disponíveis para tal empreitada. Mas à medida que as possibilidades se abriam com a ciência, a engenharia, etc., em algum momento essa impossibilidade foi transformada em possibilidade, e em seguida em uma ida de fato à lua. Assim, o impossível modal é só impossível até que alguém o faça. Como disse o Mark Twain – ou o Jean Cocteau, há controvérsias –, “não sabendo que era impossível, foi lá e fez”. Não é absolutamente impossível que as leis físicas mudem em algum momento do universo – ou melhor do Haver, do real, que é um conceito que contém o conceito de universo. O próprio universo é meramente uma modalidade de haver.

No entanto, há algo que é, de fato, absolutamente impossível e é justamente esse impossível que nos interessa mais. Como dissemos, o real é que , sem espécie de ser, predicado ou conteúdo algum – uma pura emergência que não conseguimos compreender. É o real de haver o impossível, de haver o que há. Logo, o que há é, obviamente, o próprio Haver. Ora, se há o haver, e se dentro no haver qualquer coisa pode ser, como modalizações do real, modalizações do haver, a única coisa que é realmente impossível é que o Haver passe a não haver, ou seja, que o real não haja. Há o real, e é nisso mesmo que ele é real – há o Haver, logo não há o não-Haver. Isso é de uma tautologia limítrofe, pois só há o Haver – só pode haver o Haver –, e não há o não-Haver, pois se o não-Haver houvesse, ele haveria, logo não seria Não-Haver, seria Haver. Não-Haver é o impossível absoluto, em contraste com os impossíveis modais que encontramos dentro do Haver. Assim, os impossíveis modais são, na verdade, modos da impotência que se apresentam nas configurações atuais do Haver. Por exemplo, é impossível hoje irmos para as imediações da estrela mais próxima do nosso sol, Alfa-centauro. Mas isso não é absolutamente impossível, apenas não conseguimos sequer imaginar (daí a impotência) como isso seria factível. Ou, para tomar uma impotência mais “impossível”, mais inimaginável ainda, seria uma viagem ao sol. Já fomos à lua – o que era impossível – mas não conseguimos ainda sonhar em como chegar ao sol e fincar uma bandeira americana lá. Porém não é porque não conseguimos imaginar que não seja possível – tal como Zizek fala do inimaginável fim do capitalismo. O que é impossível absolutamente, de saída, é não haver, pois se não houvesse, não haveria, nem teria havido. E todos nós, individualmente, temos a experiência concreta de havermos. Inclusive esse é o drama: com o conceito de Pulsão de morte, Freud nos mostra que o que desejamos não é exatamente a morte, como fim do nosso tormento de viver insatisfeitos, mas sim o próprio Não-Haver - a pedra no nosso sapato é o fato de que havemos, e o Desejo é não haver. Assim, a satisfação da pulsão é impossível justamente porque não há Não-Haver, pois a pulsão é esse desejo de simetria que há entre Haver e o impossível Não-Haver – simetria essa que não existe, que é quebrada pela inexistência da Inexistência. O Haver, como tal, é propriamente pulsional.

De modo que todas as pessoas, todos nós, estamos jogados no campo do Haver, irremediavelmente, e é de dentro dele que há que se aprender a jogar o jogo agonístico da política. Então, é preciso nos lembrarmos de que estamos todos, cada qual com sua ideologia, sua configuração sintomática, “no mesmo barco”, tal como Peter Sloterdijk coloca. O conflito político se coloca nos termos das constituições de realidades, de modos de ser no campo do haver: quais realidades devem ser criadas e mantidas e quais devem ser excluídas? Os modos de ser lutam entre si para impor-se no campo agonístico – nisso é só observar que a História é a história dos movimentos políticos dos seres no haver. E essa história dos movimentos políticos é polarizada em dois modos, e dois modos apenas, de se situar politicamente no haver: fazendo referência ao ser ou fazendo referência ao próprio Haver.

Para exemplificar o que estou falando, tomo uma entrevista de Gilles Deleuze na qual ele tenta situar a diferença entre a esquerda e a direita. Diz ele: “Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo”. O que esse pensamento coloca é que de diferença em diferença, de particularidade em particularidade, chega-se ao Haver como um todo a partir de suas configurações menores, ou seja, a partir dos seres. O Haver é considerado como um agrupamento de seres, uma coleção de diferenças – uma multiplicidade. Parte-se do ser para só depois considerar o Haver. Em outras palavras, o “nós” é precedido pelo “eu”. A primazia é da diferença nessa postura, das configurações simbólico-imaginárias já dadas, e é a partir delas que o campo agonístico é afetado. O ser é a prioridade aqui.

Enquanto que um pensamento de esquerda, para Deleuze, “percebe o contorno. Começa pelo mundo, depois o continente – europeu, por exemplo –, depois a França, até chegarmos à rua Bizerte, e a mim. (...) Primeiro, percebe-se o horizonte. (...) Ser de esquerda é começar pela ponta” – ou seja, essa postura política parte primeiramente do próprio Haver como um todo, para só depois chegar a cada caso particular no campo agonístico. O vetor é o contrário: ao invés de partir do ser até o Haver, parte-se do Haver rumo ao ser, o que quer dizer que parte-se da indiferença entre os modos de Haver, entre os seres, para só então chegar às diferenças, à efetividade dos seres.

Assim, então, fica estruturado o campo agonístico: como o campo de conflito entre seres que priorizam as diferenças e seres que priorizam as indiferenças. Dito de outro modo, o conflito é entre seres que priorizam o Ser e seres que priorizam o Haver. Não há terceira opção nesse conflito. Ora, o Haver só pode comparecer de dois modos: ou como diferenças – que é o mais absolutamente comum, já que se trata das realidades, oposições, ou seja, das configurações simbólico-imaginárias do Haver – ou como indiferença – naquelas ocasiões especiais em que colapsam os modos já estabelecidos e que abrem espaço para as possibilidades de alteridade do ser (a hiância do pré-ontológico se abre sobre o próprio ser, alterando-o como tal).

Priorizar as diferenças é priorizar a identidade dos modos de ser já existentes; Isso é isso e aquilo é aquilo, eu sou eu e você é você, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Nota-se desde logo que é uma postura que prioriza a exclusão da alteridade na constituição da identidade de um modo de ser (que a partir de agora chamarei pura e simplesmente de formação do Haver). É uma postura de exacerbação das fronteiras entre as formações – tal como dizia a música: “cada um no seu quadrado”.

Já a priorização das indiferenças significa considerar que a função do Haver indiscerne fronteiras e borra limites, o que permite a percepção de que há uma indistinção entre os problemas ‘de lá’ e os ‘de cá’; permite a percepção da homogeneidade existencial entre ‘eu’ e o ‘outro’, ou seja: ‘eu é outro’, como dizia Rimbaud; ‘o outro sou eu’, é o complemento dessa frase. Toma-se um choque do Haver quando uma situação de indistinção entre (o)posições emerge: eu e tu, por mais que sejamos opostos, temos uma única coisa em comum, um vínculo absoluto: existirmos, juntos, dentro do mesmo barco, chamado Haver – que, obviamente, nunca veio de lugar nenhum e nem nunca vai pra lugar nenhum, presos que estamos, todos, independentemente do que nos difere enquanto tais, na imanência absoluta do Haver. Perceber isso é perceber o ‘mundo’ e o ‘contorno’. Tem-se aí o vetor da esquerda deleuziana: da indiferença entre as diferenças – todas são interdependentes a ponto de não ser possível discernir completamente entre uma e outra coisa; é a alteridade da identidade. É perceber que, como na anedota do arqueiro zen, quando atiro no outro, acerto em cheio a minha própria nuca.

A História se mostra dessa forma como sendo nada mais do que a repetição desse conflito agonístico nos diferentes tempos e espaços do Haver. Sempre o mesmo conflito, mas nunca os mesmos atores. No entanto, no momento atual que vivemos, em que há uma crise dos fundamentos imaginariamente arraigados por séculos, ou seja, em que há um movimento em escala planetária de passagem entre a primazia da diferença rumo a uma hegemonia cada vez mais próxima da indiferença, podemos perceber claramente movimentos estacionários, isto é, movimentos que buscam deter o vetor que vai da primazia da diferença à primazia da indiferença. A dissolução das configurações tradicionais de sexualidade, de relações sociais, etc., que geram as novas formas de ser no Haver causam horror para os seres que priorizam as diferenças. Como vimos, priorizar as diferenças é priorizar identidades das formações do Haver, priorizar o ser: “homem é homem, minino é minino, macaco é macaco e viado é viado”, como diz a música. Ora, o que o século XX fez com essas ideologias tradicionais foi solapá-las em seus fundamentos, ou seja, em sua necessidade. Hoje estamos careca de saber que homem é menino, macaco, ou viado, depende do dia; não há nada que obrigue o homem a ser “homem” – ser homem já não se apresenta como um destino necessário para quem é homem. A indiferença se mostra claramente nos dias de hoje. E é exatamente por isso que os “diferentes” (chamemos assim os que defendem a primazia da diferença) se eriçam todos – ver tanta gente subvertendo suas identidades pode ser muito angustiante quando se reifica demais suas próprias identificações. E, nessa angústia, diante da possibilidade de se perder o que se é – ou seja, se deparar com o real de Haver –, muitos diferentes se voltam com mais vigor – e rigor – para os esquemas já constituídos no mundo: donde o crescimento político espantoso do fundamentalismo religioso, por exemplo, no Brasil. Uma forte denegação paira sobre muita gente diante das grandes mudanças que têm acontecido no campo agonístico. Com isso, o conflito se intensifica: os diferentes tentando deter o movimento de indiferença que tem ocorrido, especialmente nos últimos 30 anos, com as tecnologias de disseminação de informação oferecendo às pessoas contato com modos de ser que elas sequer sabiam existir. De modo que elas têm mais possibilidades de ser e acabam, de fato, passando a ser muitas dessas possibilidades que agora elas conhecem. Assim, há um polimorfismo cada vez maior de práticas sexuais, alimentícias, sociais, etc., o que deixa muitos perplexos e horrorizados. Por isso, Sloterdijk alerta: “é bom preparamo-nos para combates seculares entre as regiões do mundo moderno-globalizadoras e as conservadoras-resistentes. (...) No mundo sem forma e na sociedade sem identidade são maciçamente tramados retomadas, renascimentos e reconscientizações de valores antigos. Depurações étnicas com agravantes de extermínio tornarão tangível a violência dos gritos por socorro contra a perda da forma política em muitas regiões do mundo” (1999, p. 67). Esse é o grande perigo da postura de primazia das diferenças: ela não tolera a própria diferença, ou melhor, ela não tolera a indiferença entre as diferenças. Podemos identificar a postura dos “diferentes” com o multiculturalismo, que é, tal como coloca Deleuze, é a postura que parte das diferenças individuais até os grupos maiores – um conjunto de conjuntos de diferenças. É aí que Vladimir Safatle faz uma crítica ao multiculturalismo ao afirmar que “aqueles que não se adaptam ao nosso ‘campo de diferenças’ não são diferentes, mas simplesmente irrepresentáveis, objetos de perpétua exclusão” (2012, p. 28), ou seja, “a organização discursiva do campo social das diferenças é sempre solidária à exclusão de elementos que não poderão ser representados por esse campo” (Ibid.). Em outras palavras, a postura dos diferentes é sempre contrária à postura dos indiferentes – em coerência com o fato que os diferentes são diferentes dos indiferentes...

...porque os indiferentes são indiferentes à diferença. No pensamento de Agamben, por exemplo, poderíamos dizer que o ser-indiferente “é o ser qualquer. Na enumeração escolástica dos transcendentais (quodlibet est unum, verum, bonum seu perfectum, qualquer ente que se queira é uno, verdadeiro, bom ou perfeito), o termo, que, permanecendo impensado em cada um, condiciona o significado de todos os outros é o adjetivo quodlibet [qualquer]. A tradução corrente, no sentido de ‘não importa qual, indiferentemente,’ é certamente correta, mas quanto à forma, diz exatamente o contrário do latino: quodlibet ens não é ‘o ser, não importa qual’, mas ‘o ser, tal que, de todo modo, importa’; isto é, este já contém sempre uma referência ao desejar (libet), o ser qual-se-queira está em relação original com o desejo” (2013, p. 11). Assim, o indiferente prioriza o ser-qualquer, ou seja, faz referência ao Haver, que pode se manifestar em quais quer seres que acaso se façam desejáveis (libet) no seu seio. Na medida em que o indiferente privilegia o qualquer, empurra a agonística na direção do esvaziamento do ser, e sua redução a ser-qualquer, elevando o ser à categoria de Haver, desprovido de suas (sobre)determinações ônticas, num “estado” pré-ontológico em que ocorre uma Hiperdeterminação, ou seja, uma inscrição do real no campo simbólico-imaginário que se apresenta como realidade estruturada até então, modificando esse campo. Assim, o ser-qualquer, o ser-indiferente, são seres que forçam essa inscrição do real, da indiferença, no campo agonístico dos seres no Haver. Essa posição afirma que “o espaço do político não deve ser marcado pela afirmação da diferença, mas pela indiferença absoluta em relação a qualquer exigência identitária” (Safatle, 2012, p. 31). O ser-qualquer privilegia a falta-a-ser.

Assim, diante do real de haver, ou seja, da falta de uma determinação absoluta para que o ser humano defina precisamente o que é ser humano – ou seja, como haver (que é o famoso “Che vuoi?”) – abre-se um campo de antagonismos políticos – a agonística – cujos pertencimentos por determinados seres a determinado lado do campo é fundamentado eticamente. Quer dizer, minha identificação, a produção do meu ser como ‘diferente’ ou ‘indiferente’ é determinada eticamente. E o que isso quer dizer, “ética”, “eticamente”? Significa precisamente que não há determinantes a priori quanto a qual posição tomar, ou seja, sobre qual dos seres (diferente ou indiferente) escolheremos ser. Nada nos obriga absolutamente a ser diferente ou indiferente, pois “o fato do qual deve partir todo discurso sobre a ética é que o homem não é nem há de ser ou realizar nenhuma essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum destino biológico. Somente por isso algo como uma ética pode existir: pois é claro que se o homem fosse ou tivesse que ser esta ou aquela substância, este ou aquele destino, não haveria nenhuma experiência ética possível – haveria apenas tarefas a realizar” (Agamben, 2013, p. 45). Por mais que as posições políticas tenham determinantes históricos, sociais, etc., é sempre de um lugar ético que se assume uma posição política, pois nada obriga ninguém a ter tal ou qual posição no haver – nada obriga ninguém a ser tal ou qual. “Isso não significa, todavia, que o homem não seja nem tenha que ser alguma coisa, que ele seja entregue ao nada e possa, portanto, a seu arbítrio decidir ser ou não ser, estabelecer ou não estabelecer este ou aquele destino (niilismo e decisionismo se encontram neste ponto). Há de fato, algo que o homem é e tem de ser, mas este algo não é uma essência, não é, aliás, propriamente uma coisa: é o simples fato da própria existência como possibilidade ou potência. Mas, precisamente por isso, tudo se complica, por isso a ética se torna efetiva” (Ibid.). Fica assim claro que a posição de indiferença é uma defesa, uma apologia, se não do vazio, pelo menos do esvaziamento do ser para que o seu qualquer (quodlibet) venha à tona e reja os processos políticos. Esvaziamento esse que significa uma gravidez de possibilidades a partir do nada. Lao-Tsé e o taoísmo nos transmitem precisamente essa posição polética (política, poética e ética): “o Tao é vazio, mas inesgotável” (Tao-te-king #4). Ou, como coloca Zizek, “não seria essa a implicação do conceito quântico de Nada (Vazio) como prenhe de uma multiplicidade de entes que podem surgir dele, ‘do nada’?” (2013, p. 560). O termo técnico para esse vazio pleno de possibilidades é o “vácuo quântico”, o qual comporta “flutuações quânticas” que possibilitam a emergência de algo (no caso da física, uma partícula elementar) a partir desse nada, desse vácuo. Ou seja, o real, o nada, não é um campo inerte, e estático, pelo contrário, é um campo profundamente dinâmico em que borbulham possibilidades de surgimento de diferenças, e diferenças sempre aparecem a partir desse campo. É um campo neutro de potencialidades: “sendo e tendo que ser apenas a sua possibilidade ou potência, o homem falta, em um certo sentido, a si mesmo e deve se apropriar dessa falta, deve existir como potência” (Agamben, 2013, p. 46) – haver como indiferença, completaríamos. Assim, assumir a própria falta-a-ser, o vazio, como o ponto de referência para a proliferação de possibilidades, de diferenças, é a posição dos indiferentes.

Podemos agora nomear mais precisamente os dois partidos políticos possíveis no Haver. Ora, uma vez que a posição da primazia do ser é também de primazia das diferenças, podemos muito bem chamar tal postura de ontocrática (governo do ser) ou diferocrática (governo da diferença). É a posição que encontramos em oligarquias, monarquias, ditaduras, e... na própria democracia. A democracia tende a ser vista como o governo em que todas as diferenças são levadas em conta por haver eleição representativa. No entanto, como se sabe, a democracia é o governo da maioria – arriscaria mesmo dizer que é uma oligarquia ao contrário. A maioria ter o poder de decisão sobre o rumo de todos ainda não chega a ser uma posição de indiferença – pelo contrário, é uma defesa das diferenças bem ao modo da exclusão das minorias. Não é à toa que a principal das pautas políticas, os direitos humanos, não acompanha a queda dos fundamentos do que é propriamente humano; daí haver tamanha discrepância entre os direitos do homem e da mulher, do negro e do branco, do hétero e dos LGBT, do caraíba e do índio, etc. As minorias não têm direito ao direito do qual a maioria goza, pois quem decide sobre os direitos das minorias é a própria maioria. Num país altamente religioso como o Brasil, por exemplo, os ocupantes dos cargos legislativos são, cada vez mais, pessoas que querem impor legalmente suas crenças religiosas (a propósito, o Brasil não é um estado laico, apenas diz que é) em detrimento dos direitos das minorias – assim, o campo de conflitos entre diferenças se abre: é “a maioria” contra “a minoria” – sem vice-versa, é bom lembrar. Por isso, a democracia, como governo da maioria, também não está no campo da indiferença, mas sim no da diferocracia. Como diz Deleuze, “a maioria é algo que supõe, até quando se vota – não é só a quantidade que vota para tal coisa, mas – a existência de um padrão. No ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão. (...) Portanto, irá obter maioria aquele que, em determinado momento, realizar esse padrão. Ou seja, a imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. Mas posso dizer que a maioria nunca é ninguém. É um padrão vazio. Só que muitas pessoas se reconhecem nesse padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio”. Essa padronização, esse pertencimento a classes (como o “cada um no seu quadrado”) estagnantes, estacionárias, são os fundamentos ontológicos do partido ontocrata. É até um pouco paradoxal chamar aqueles que têm problemas em suportar as diferenças de diferocratas, mas a diferença que eles suportam são apenas a de seus egos, tal como Freud falava de “narcisismo das pequenas diferenças”, no qual tomamos como bode expiatório de nossos grupos (ou de nosso próprio ‘eu’) o outro, no que ele tem de mais íntimo conosco. Um grande exemplo disso é a disputa de arianos vs. judeus. Hitler disse uma frase que mostra nitidamente o que é esse narcisismo: “O judeu habita em nós. Porém é mais fácil combatê-lo na sua forma corporal do que sob a forma de um demônio invisível” (http://www.scielo.br/pdf/pc/v19n1/05.pdf). Assim, o diferocrata denega sua própria possibilidade de ser Outro, preso que está às amarras de suas identificações e a seus pertencimentos, e projeta no outro o ódio que tem de si mesmo (por ter horror à possibilidade da própria alteridade).

Ao passo que os indiferentes, por sua postura referenciada ao Haver, e não ao ser, podem, por sua vez, ser denominados indiferocratas (governo da indiferença) ou holocratas (governo do Todo, do Haver). Ora, a única posição política que deseja uma equivalência radical de todas as possibilidades de ser, de todas as diferenças, é a indiferocracia. Só há espaço efetivo para a consideração das diferenças se a posição é de indiferença. Isso significa incluir na agonística social justamente as minorias, que são excluídas do jogo democrático – ou melhor, diferocrático. Para o pensamento holocrático, “a política descentra os sujeitos de suas identidades fixas, abrindo-os para um campo produtivo de indeterminação. Isso significa que nossas sociedades devem ser completamente indiferentes às diferenças, sejam elas religiosas, sexuais, de gênero ou de nacionalidades, pois o que nos faz sujeitos políticos está além dessas diferenças. É isso que significa não organizar o campo social a partir da equação das diferenças” (Safatle, 2012, p. 34). Dito de outra forma, o pensamento indiferocrático é necessariamente um pensamento da minoria, contra-hegemônico, no qual as diferenças tenham equivalência em suas possibilidades de ser. Para ficarmos com Deleuze mais uma vez, diríamos que a indiferocracia “é o conjunto dos processos de devir minoritário. De modo que digo: a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo” (Deleuze), pois são as minorias que trazem a (in)diferença para o campo da maioria. “É por isso que todos os pensadores tiveram dúvidas em relação à democracia, dúvidas sobre o que chamamos de eleições” (Ibid.).

Talvez não seja o caso de dizer que a holocracia seja de fato um kratos, um governo. É um modo de haver que ainda não experimentamos como tal – sempre tivemos vislumbres dele, mas agora com a transição entre uma sociedade fundamentada na hegemonia dos padrões – como coloca Deleuze – e uma sociedade sem forma – como coloca Sloterdijk – é que começamos a ter alguma noção do que poderia ser uma hegemonia da indiferença. Agamben a chama de “comunidade que vem” – e vem aqui não indica apenas futuro, mas o próprio presente. Essa comunidade não partilha dos ideais de pertencimento como na diferocracia, não são identificadas com suas classes, com suas propriedades. Ora, uma classe é uma nomeação que rotula certa situação em uma determinada significação. Por exemplo: "ah, aquela mulher é uma histérica!", com aquele ar jocoso. "Histérica" aqui representa uma classe (cujo nome é 'histérica’) que contém certos atributos, ou propriedades: 'exagerada', 'fingidora', 'chata', etc. Assim, uma classe se funda em quaisquer atributos que acaso cofiramos aos nomes, os quais, por sua vez, se prestam a quaisquer deles. Temos várias classes, inclusive classes clássicas, que são o 'trabalhador', o 'burguês', o 'humano', etc. E, de fato, esse é o fundamento de todo e qualquer agrupamento, todo e qualquer Laço Social: que o sujeito estabilize seu ser em algumas das propriedades dessas classes: 'filho', 'brasileiro', ‘filósofo’, etc.

No entanto, a ideia de classe paradoxal que Milner nos fornece é algo interessantíssimo: ela é uma nomeação de classe cuja função é precisamente a de desidentificação: "quando alguém diz 'o neurótico, 'a histérica', 'o perverso', 'o obsessivo', dá a entender, sob as espécies do singular genérico, a unicidade de um sujeito, que lhe é homônimo (...). Quem de fato vai acreditar que se trata de classes fundadas em propriedades, quem vai acreditar que os neuróticos se assemelham entre si e se opõem a um complementar? Ou, pelo menos, quem vai acreditar que é isso que o nome visa, quando é do ponto da análise que ele se articula? Mas no instante mesmo que, por homonímia, a psicanálise retoma os nomes recebidos, ela sabe, ou devia saber, que se trata aí de semblante: algo, para além, subsiste e não está esgotado na classe representável. Algo que diz, mas não o que os neuróticos têm de mutuamente substituível e sim o que cada um deles tem de insubstituível; é que o laço que, segundo toda aparência, é constituído pelo nome comum só tem de substância o que separa para sempre os ligados. E, se entendermos esses últimos pelo que os faz se assemelhar, deveríamos estar, ao mesmo tempo, seguros de ter perdido o que, pelo nome, era visado de real. O nome de 'neurótico', de 'perverso', de 'obsessivo' nomeia ou finge nomear a maneira neurótica, perversa, obsessiva, que tem um sujeito de ser radicalmente dessemelhante de qualquer outro" (p. 91). Assim, a pertença do pensamento indiferocrático só pode ser pela via das classes paradoxais, ou seja, passar da primazia das propriedades (nas quais as classes e as identificações se fundam) à primazia da impropriedades, da falta-a-ser do real como Haver – o que quer dizer “fazer do próprio ser-assim não uma identidade e uma propriedade individual, mas uma singularidade sem identidade” (Agamben, 2013, p. 61). Tal postura implica em uma certa dissolução da própria noção de Estado e seu nacionalismo identitário. Assim, dizer que todos os que vivem em determinada região do mundo têm que ter a mesma identidade (no caso, brasileira) não considera os diferentes modos de ser brasileiro - chegando mesmo ao ponto de não necessariamente sê-lo. "Isso nos leva a criticar a existência de uma nação e de um Estado francês, kosovar, judeu, flamengo, inglês, brasileiro, etc. Condição maior para discutir a possibilidade da existência de Estados pós-identitários, que não precisem repetir compulsivamente identidades ilusórias construídas pelos interesses políticos do dia (Safatle, 2012, p. 31). De modo que o kratos da holocracia só pode ser governo, enquanto Estado se que funda a partir de classes (como 'o Brasil', ou 'os brasileiros'), se, no mínimo, for paradoxal e pós-identitário. Em suma, a ontocracia é, em si mesma, uma polética de classes, ao passo que a holocracia é uma polética de classes paradoxais. 

Isso tudo dito, pensamos que a democracia atual (que é ainda uma diferocracia) não pode ser nosso último horizonte de governo. Se você perguntar para o brasileiro médio se a democracia é um bom sistema de governo certamente ouvirá a resposta, “olha, não é o melhor, mas é o melhor que tá tendo”, ou coisas do tipo “tá ruim, mas tá bom”. E o grande problema com a democracia de hoje é justamente o fato de que ela é diferocrática, ou seja, ainda não permite aos humanos (essa classe paradoxal) serem propriamente humanos, de exporem em praça pública todo o leque de suas possibilidades. É claro que abrir esse leque também trará modos de ser humano que são danosos a outros; no entanto, todos tem que estar aptos a participar, em equivalência de suas possibilidades, do campo agonístico. “Vejam como é difícil lidar com isso se considerarmos qualquer [quodlibet] singularidade como sagrada. E mais, sabemos que uma singularidade, no campo do mundo pode ser prejudicial a outra. Por isso as políticas do mundo têm que, mediante todos os artifícios possíveis, inclusive tecnológicos, inventar modos de manter a existência de ambas sem que haja destruição recíproca. Mas o que a democracia faz é dizer que tal singularidade não pode se manifestar e se trancafia. Ora, isto é igual ao que qualquer macaco sabe fazer” (Magno, 2009, p. 106-7). Fica claro como é extremamente difícil sustentar uma posição holocrática nesses termos, pois a (in)diferença não é algo de fácil manejo; como não recair em diferocracia? Esse é o desafio da comunidade que vem: “acolher todas as diferenças do mesmo modo. Não importa se, na ordem jurídica da cultura, a atitude de uma pessoa seja considerada crime, pois o psicanalista [enquanto ser partidário da indiferença] está no movimento de entender e levar isto à sua identidade para que ela, no esclarecimento de sua posição de identidade no Mundo, consiga até fazer diplomacia com esse Mundo, e não receba de saída um sopapo de julgamento a respeito de sua identidade” (Ibid., p. 105).

A grande questão que fica é, então, a seguinte: se o pensamento, a política indiferocrática pretende ampliar as possibilidades de modos de ser no campo do Haver, a ponto de que qualquer ser seja desejável [quodlibet] – e nisso poderíamos chamar essa política, esse pensamento, de política qualquer, ou pensamento qualquer –, como lidar com, acolher, incluir, dentre esses seres quaisquer, seres que vão lutar justamente para a eliminação do qualquer do campo do Haver? Como “arranjar meios de garantir as diferenças, por piores que sejam” (Magno, 2008, p. 121)?

Ora, se o pensamento qualquer deseja incluir em seu campo todas as diferenças, inclusive aquelas que pretendem excluir o próprio qualquer, ele não pode ficar estagnado em ser puramente “qualquer”; é necessário também transitar pela diferocracia, incluir também em seu seio essa diferença – mas com a única condição de que “os regulamentos sejam tais que não ofusquem o surgimento de um sujeito [um qualquer], que não sufoquem a fala, que não erijam a surdez como regra. (...) Liberalismo que deseja que a lei diga o mínimo possível de propriedades e se atenha ao mais abstrato [a experiência de estarmos todos no mesmo barco do Haver]" (MILNER, 2006, p. 79). De modo que, se é até desejável para o pensamento qualquer incluir no seu campo e fazer uso da diferocracia, que exclui possibilidades de ser, ele só o pode fazer se for para excluir possibilidades que excluam possibilidades – ou seja, para excluir a própria exclusão.