"Eu
vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me
e não sou eu.”
(Fernando
Pessoa)
O estatuto do
pensamento na sua relação com o ser foi inaugurado ocidentalmente pela figura
de Renascido das Cartas, mais conhecido como René Descartes; esse estatuto
concede ao pensamento o lugar de garantia do ser, da existência. Ou melhor, da sua própria existência enquanto sujeito,
pois o que Renato tenta responder com essa relação é a seguinte pergunta: “o
que sou eu?” (QUINET, 2000, p. 11).
Para conseguir
uma resposta a esse enigma, Descartes lança mão de um método que garantisse a
verdade, a certeza da resposta; porém esse método é precisamente a dúvida, pois
a certeza é um enunciado do qual não pode haver dúvida. Assim, Descartes começa
a duvidar de tudo o que se lhe propõe à consciência; duvida da existência de qualquer
coisa, e enquanto a dúvida for possível, ele a exerce. E desse modo ele procede
até encontrar uma certeza: a de que duvida. Descartes não duvidou que duvidava,
já que isso seria contraditório; e Deus, que garante a unidade do Cosmos, não poderia ser contraditório,
dividido, Caótico. Com isso, duvidar está fora de dúvida; a única certeza que
Descartes tinha era a de que ele duvidava, ato que ele identificou com o
próprio ato de pensar.
De modo que,
como é a certeza da existência que garante a própria existência, ou seja, a
existência se garante por uma certeza, Renato se garante na existência a partir
de seu pensamento: Descartes é alguma coisa
(res), porque pensa, já que
pensar está fora de dúvida, quer dizer, pensar existe. Em suas próprias palavras:
“penso, logo sou”. Com isso, a resposta à pergunta “o que sou eu?” é dada da
seguinte maneira: “não sou senão uma coisa que pensa” (DESCARTES, citado por
QUINET, 2000, p. 11) – a ‘res cogitans’.
Isso deu origem a uma concepção de sujeito,
identificado com essa substância pensante, que se certifica do (seu) ser por
meio do pensar: pelo pensar, se atinge o ser, ou seja, o ser se atinge,
conscientizando-se de si; o ser é a consciência (pensamento) de que se é.
Para a
Psicanálise lacaniana, o sujeito é também sujeito do pensamento. Porém, ao
contrário de Renato, esse pensamento não é o da consciência de si, mas da
inconsciência do Si (o Es freudiano,
ou o Ça lacaniano) – pois que o
pensamento é Inconsciente. Não se trata de conhecer-se, saber-se, ter certeza
de si, mas muito exatamente de desconhecer-se, ou estranhar-se, daí surgindo a
certeza de que não se era o que se pensava. O que Freud inaugura como
procedimento metódico para descobrir a (in)certeza desse pensamento é, tal como
Descartes, precisamente duvidar do que conscientemente se pensa, pois que em
cada pensamento consciente há um Outro, inconsciente para o pensador: há um
conteúdo manifesto e um latente do pensar, de modo que o pensar é dividido,
opositivo em si mesmo. Foi por duvidar dos pensamentos conscientes que Freud
colhe sua certeza de haver pensamentos inconscientes. E os pensamentos
inconscientes são a expressão do desejo daquele sujeito que pensa. No entanto,
isso descentra o sujeito de sua posição na consciência; lá, no pensamento
consciente, consistente, onde ele pensava estar, ele não está. A descoberta
freudiana revela um funcionamento do pensamento à revelia do sujeito, desidentificando
assim seu ser do seu pensar; o pensar não garante o ser do sujeito, pois o
pensamento sempre está em outro lugar do que o enunciado conscientemente: está na
enunciação inconsciente.
Daí a
psicanálise lacaniana dizer que o cogito
deve ser reformulado em ‘desejo, logo
sou’ (QUINET, 2000, p. 13), uma vez que lá no pensamento inconsciente, onde
se encontra o desejo, está o sujeito, como efeito da associação dos pensamentos
(QUINET, 2000, p. 13). Isso, se lembrarmos da definição lacaniana que o sujeito
é aquilo que um significante
representa para outro significante. Assim, o sujeito lacaniano é simplesmente o
efeito de articulação entre dois pensamentos – um consciente e outro
inconsciente –, e é isso que lhe confere ser. No entanto, como sabemos, essa
articulação é contingente, e potencialmente variável; ela não é necessária
senão retroativamente ao surgimento dessa contingência, o que dessubstancializa
o sujeito de qualquer propriedade a priori
quanto a seu ser, anteriormente a essa articulação; o sujeito não é pelo fato
de pensar que é, pois “isso me limita
a só estar aí em meu ser na medida em que penso que sou (estou) em meu
pensamento” (LACAN, 1998, p. 520). O pensamento sobre o que se é está sempre em
Outro lugar. Por isso Lacan diz que “penso onde não sou”. A dependência do ser
do sujeito da contingência das associações entre pensamentos não oferece um
ancoramento ontológico definitivo ao sujeito; é aí que Lacan vem falar da
falta-a-ser do sujeito, pois que o seu único fundamento lógico (e não a garantia
divina cartesiana) é a de não ser o que se pensa que se é.
Por isso, Lacan
arremata ao dizer que “sou onde não penso”, pois que o sujeito lacaniano não se
define, a não-ser por essa hiância entre dois pensamentos (“ser ou não ser...”)
pelos quais ele tenta ser – é o que
Lacan chamou de pré-ontológico. No entanto, essa hiância em si não é (pensamento):
ela ‘é’ apenas o ponto em que o pensamento se suspende para fazer emergir o
impensável onde o sujeito habita. Porque nenhum dos pensamentos esgota em uma
certeza necessária, sem sombra de dúvida, o ser
do sujeito, que deseja ser seus pensamentos. Mas esse lugar a-tópico em que o
sujeito (não) está, onde ele se torna desejante de ser, fora do que o
pensamento pode pensar, é o real.
Ora, o real não
é. O ser se faz pelos pensamentos, mas o que Lacan diz é que o sujeito não é
dizível, ele fica no buraco entre dois seres, dois pensamentos. O pensamento do
sujeito lhe dá uma consistência ontológica, imaginária; porém o pensamento não
pode tudo pensar, uma vez que a lei real do significante impõe que o deslizamento
metonímico dos pensamentos não se esgota, de modo que haverá sempre algo a ser
pensado e que ainda não o foi. Se o ser
do sujeito se constitui de pensamentos, o sujeito em si não é seu ser; pelo contrário, o sujeito falta-a-ser.
Falta correlata à falta constituinte do desejo, que se questiona: ‘o que se quer ser?’ (Che vuoi?) Haver um pensamento que responda a e extinga essa falta
é o impossível que o real manifesta. O real não é; porém ele há, enquanto
indiscernível, inominável, enquanto falta. A falta(-a-ser) há.
O topos do sujeito, então, é o próprio lugar
a-tópico do real, impossível enquanto tal, que no entanto, é manifestamente
presente: assim, para a psicanálise, o fundamento do sujeito – e não de seu ser
(o qual o uso de um pronome possessivo para denotá-lo implica que ele o tem, e não verdadeiramente o é) – não está no pensamento: está no
real, na contingência de sua inominável emergência. O sujeito não tem
predicado, ao contrário do que prega a gramática; ele é “antigramaticalmente
supremo”, como diria Fernando Pessoa. De modo que o ‘sou’, que predica o
‘penso’ cartesiano se mostra uma mera contingência da articulação desses mesmos
significantes (ser e pensar), ao invés de uma evidência, necessária, como
queria Descartes: tão dubitável quanto qualquer outro ser, quanto qualquer
outro pensamento. Para a psicanálise, a garantia da existência do sujeito não
está no ser. Por ser correlato do real, o sujeito não é, porém, ele há: mas o
quê há? Se essa pergunta for respondida, de qualquer maneira (como, por
exemplo, res cogitans), recai-se no
ser, na predicação. O real, assim como o sujeito, é da ordem do tético: algo
que tem por conteúdo sua própria colocação; um nada, “tão vazio quanto a
asserção pura de uma existência” (MILNER, 2006, p. 19). É o fato de
simplesmente haver, sem predicado,
sem nome, sem ser; é “um gesto de corte, sem o qual não há nada que exista” (IBID, p. 7 – grifo meu). É no real que o
sujeito se garante como existência, pois “nada pode existir a não ser pelo
real” (IBID, p. 8).
Assim, o sujeito
psicanalítico não se define pelo esteio que o pensamento dá a seu ser, mas antes, por haver, inominavelmente. Se o ser do sujeito é tecido por uma rede
de significantes, seu real consiste na suspensão da demanda de significações
ligadas (como o são o ‘ser’ e o ‘pensar’), e é nessa suspensão que o nada
emerge como a pura asserção de que há algo: o próprio nada, a própria afânise
do sujeito, que é quando o sujeito se diz no próprio silêncio que atesta o
vazio da significação de sua existência. Aí é que o sujeito há, mas não é. De
modo que fica patente a diferença radical entre ser e haver; é na suspensão do
ser que emerge o Haver, como experiência
de real; na suspensão do pensamento é que o nada, que (não) constitui o sujeito,
tem lugar no vazio.
Uma vez que o
desejo não tem nome, consequentemente o sujeito não tem nome: o nome do desejo
seria o nome do sujeito, pois o sujeito deseja o nome de seu ser. De modo que é
a suspensão desse Nome o que melhor define a função sujeito em psicanálise (pois o sujeito é um aparelho, como
lacan diz no seminário 11). Ora, os nomes são os pensamentos que tentam ser o
sujeito – ou que o sujeito tenta ser. Mas é apenas na suspensão do pensamento que
o real há. Assim, não é pelo desejo que se é alguma coisa (pois lá há a
falta-a-ser), já que o desejo se manifesta precisamente nessa suspensão do ser.
De modo que o cogito Lacaniano de “desidero, ergo sum” não parece adequado.
Até porque essa é uma definição do ser
pelo desejo; no entanto, o desejo não tem ser. Mas, então o que se pode pensar
ser? Qual seria um ‘cogito’
psicanalítico possível, uma vez que
justamente se trata de (não) cogitar nada, de (não) pensar nada?
Se o lema do
Renascido das Cartas foi “penso, logo sou”, a psicanálise não pretende dar conteúdo
ontológico para o que emerge com a suspensão do pensamento. Assim, o que ela
pode melhor enunciar é um:
“suspenso, logo...”
Esse enunciado
evidencia que, ao suspender o pensamento, logo o nada emerge como a falta de
nome para o ser do sujeito, fazendo surgir o sujeito no real como a falta-a-ser
no ‘lugar’ de sua enunciação, onde o sujeito apenas há. A predicação ontológica
se dissolve, se indiscerne, para dar lugar à ‘antigramática’ de um sujeito sem
predicado.
Na verdade, o
logro do ser do sujeito que pensa deve ser reformulado no sintagma “penso,
logro sou”. Pois, ao pensar, a única coisa que se logra ser é um logro que
diz-farsa o verdadeiro logradouro do sujeito: o real.
Vale aqui
ressaltar que não é que não haja sujeito psicanalítico no cogito cartesiano –
tanto que foi a partir dele que Lacan extrai a estrutura do seu sujeito. No
entanto, esse sujeito não se apresenta no seu enunciado do cogito, consciente de si e de seu dizer, mas apenas no
instante de afânise, em que nenhuma dúvida lhe dá certeza, ou seja, é no
momento em que fica mudo diante de seu próprio pensamento que Descartes pôde
experimentar seu haver como enunciação. Em outras palavras,
Descartes experimenta a ausência de pensamento no próprio ato de pensar, de
pensar que não pensa, de duvidar de sua dúvida. Nesse ponto há, sim, uma
certeza, mas não conteudizável, pensável, transmissível, e é aí reside seu
logro: deduzir algo a partir desse vazio – que com certeza o deixou chocado –,
fazendo-o logo-logo ser alguma coisa, alguma ‘res cogitans’. Essa dedução é que constitui o seu ser a partir de
haver. Mas, para se experimentar o haver, não há nenhuma dedução lógica: há
simplesmente o choque de uma nomeação (o “penso”) que ao mesmo tempo se suspende
(MILNER, 2006, p. 14), se suspensa, realizando-se. O real não é pensamento, mas
suspensamento.
Assim, a aposta
lógica (e não uma garantia) da psicanálise em algum (im)possível sujeito não se
fundamenta em nenhum ser pensável, mas justamente onde o sujeito não é, não
(se) pensa, logo, há. O sujeito psicanalítico não está no pensamento do ser (ou
no ser do pensamento), mas no suspensamento do real de haver.
REFERÊNCIAS:
LACAN, Jacques. A instância da Letra no Inconsciente.
In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998.
MILNER,
Jean-Claude. Os Nomes Indistintos.
Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2006.
QUINET, Antônio.
A Descoberta do Inconsciente. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2000.