"Eu não possuo o meu corpo - como posso eu possuir com ele?
Eu não possuo a minha alma - como posso eu possuir com ela?
Não compreendo meu espírito - como através dele compreender?
Não possuímos nem o corpo nem uma verdade - nem sequer uma ilusão.
Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por dentro."
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, no. 364.)
A pedido de uma amiga, Luisa Macêdo, venho por meio desta expressar uns comentários sobre uma de suas obras.
É uma cena em vídeo em que há, bem de frente para a câmera, três retângulos na vertical, que são três fatias de uma cortina, por trás das quais, devido à luz do sol incidente, pode-se ver que há uma janela aberta. Imagem bem estática, como se fosse uma foto. De repente (como não podia deixar de ser) surge uma pessoa, que se movimenta em direção à cortina, entrando atrás da fatia do meio. No momento em que há essa transição, a sombra de seu corpo é projetada na cortina. Em seguida a pessoa começa a fazer diversos movimentos, de modo que a sombra do corpo que se projeta na cortina assume uma incessante e contínua miríade de-formas que vão se transformando. É um nada preto que borbulha formas. E fica esse eterno movimento até que, mais uma vez repentinamente, aparece a perna da pessoa por fora da cortina, e o resto do corpo, que sai da sombra e se vai, finalizando assim o vídeo.
Pois bem, o que eu comentei com ela pessoalmente, e que ela pediu que eu reproduzisse na escrita são os seguintes pontos:
Fora da cortina, não há nada demais: é só uma pessoa, com seus dois braços, duas pernas, cabeça, etc. No entanto, quando ela entra atrás da cortina, o corpo assume dois aspectos: o de Um, uma massa preta (a sombra) e não uma coleção de partes (cabeça, tronco, membros); e o de Outro, uma vez que, pela incessante mutação de sua configuração que o movimento causa, o corpo é sempre Outro, é sempre outra forma, outra formação. O movimento dessa transformação é puramente topológico: uma passagem contínua entre diferentes configurações. Isso abstrai a noção de corpo para além dessa configuraçãozinha regional que até hoje portamos: o macacão, a descendência animal da qual a pessoa faz parte. O fato de termos cabeça, tronco e membros, como um macaco, não abrange as possibilidades psíquicas de constituição de corpos. Para o ser humano (quando ele é humano), qualquer corpo é possível. Freud dizia que somos "Deuses de próteses", justamente porque podemos artificializar tudo o que comparece de natural para nós: de árvores que se transformam em casas às paraolimpíadas. Na verdade, tudo o que o ser humano faz é arte, artificialização. De modo que o ser humano não nasce com um corpo: tem que constituí-lo, também, artificialmente. Não é à toa que existe o que Lacan chamou de estádio do espelho, que nada mais é do que a construção do próprio corpo. E cada pensamento, cada identificação, cada sintoma, é uma prótese que vai se agregando a ele. O corpo não é o macacão. Com ARTEfatos, podemos recriar nossos corpos, seja com maquiagem (que é uma tecnologia rudimentar e barata), seja com cirurgias estéticas, seja geneticamente ou de qualquer modo que se afigurar possível.
O real do corpo é então o fato de que não há uma forma psíquica definitiva para o corpo. Vejam a diferença dos corpos (tanto psíquicos quanto físicos) dos punks para os mauricinhos. cada um constituiu seu próprio corpo de acordo com certos pensamentos com relação à anarquia e ao dinheiro, por exemplo. O jeito que se vestem é uma técnica tosca e barata para modificar o corpo, mas já é uma modificação.
Assim, o que o vídeo mostra é que o borrão preto que borbulha corpos nada mais é do que o real: não tem configuração, é apenas a presença de uma ausência, como a sombra, e que oscila constantemente entre as mais variadas formas de sua configuração. Pensado assim, um corpo é apenas um modo qualquer que se configurou a partir do real, que, por não ter forma alguma, permite tomar qualquer forma. Não é necessariamente o macacão, que por por motivos 'naturais', ainda portamos. Isso me lembra o Bruce Lee, que era filósofo também:
"Empty your mind. Be formless. Shapeless. Like water. Now, you put water into a cup, it becomes the cup. You put water into a bottle, it becomes the bottle. You put water into a teapot, it becomes the teapot."
Esse é o processo de constituição do corpo psiquicamente: uma água amorfa, que podemos chamar de libido, vai se despejando nas formas disponíveis, ou seja, nas palavras da linguagem, como "punk", "mauricinho", "israelense", "muçulmano", etc. O corpo, psiquicamente, não está subordinado à conaturalidade para com o macacão, pois o psíquico abrange toda e qualquer possibilidade corporal. E, além disso, com arte, tecnologia e muito, muito custo, aos poucos podemos construir novas configurações de macacão que explicitem mais as corporeidades psíquicas de cada mente que o porta. É a mente que porta um corpo, e não o contrário.
Por isso digo que o filme mostra o corpo real do ser humano: uma sombra que pode ter qualquer forma. Freud disse que o 'eu' (que Lacan depois identifica com o próprio corpo psíquico) é a projeção de uma superfície, tal como a sombra na cortina. Na linha de Bruce Lee, eu diria "empty your body": isso ajudaria a não nos identificarmos nem com nosso corpo físico, que é um fóssil, pois psiquicamente somos muito mais evoluídos que nossos corpos, nem com quaisquer corpos psíquicos com os quais nos constituímos (pensem nas anoréxicas por exemplo). Pois no fundo, no fundo da superfície, somos apenas projeções de nós mesmos: nosso corpo é mental.