quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Empty your body

"Eu não possuo o meu corpo - como posso eu possuir com ele? 
Eu não possuo a minha alma - como posso eu possuir com ela? 
Não compreendo meu espírito - como através dele compreender?
Não possuímos nem o corpo nem uma verdade - nem sequer uma ilusão. 
Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por dentro." 
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, no. 364.)




A pedido de uma amiga, Luisa Macêdo, venho por meio desta expressar uns comentários sobre uma de suas obras. 

É uma cena em vídeo em que há, bem de frente para a câmera, três retângulos na vertical, que são três fatias de uma cortina, por trás das quais, devido à luz do sol incidente, pode-se ver que há uma janela aberta. Imagem bem estática, como se fosse uma foto. De repente (como não podia deixar de ser) surge uma pessoa, que se movimenta em direção à cortina, entrando atrás da fatia do meio. No momento em que há essa transição, a sombra de seu corpo é projetada na cortina. Em seguida a pessoa começa a fazer diversos movimentos, de modo que a sombra do corpo que se projeta na cortina assume uma incessante e contínua miríade de-formas que vão se transformando. É um nada preto que borbulha formas. E fica esse eterno movimento até que, mais uma vez repentinamente, aparece a perna da pessoa por fora da cortina, e o resto do corpo, que sai da sombra e se vai, finalizando assim o vídeo.

Pois bem, o que eu comentei com ela pessoalmente, e que ela pediu que eu reproduzisse na escrita são os seguintes pontos:

Fora da cortina, não há nada demais: é só uma pessoa, com seus dois braços, duas pernas, cabeça, etc. No entanto, quando ela entra atrás da cortina, o corpo assume dois aspectos: o de Um, uma massa preta (a sombra) e não uma coleção de partes (cabeça, tronco, membros); e o de Outro, uma vez que, pela incessante mutação de sua configuração que o movimento causa, o corpo é sempre Outro, é sempre outra forma, outra formação. O movimento dessa transformação é puramente topológico: uma passagem contínua entre diferentes configurações. Isso abstrai a noção de corpo para além dessa configuraçãozinha regional que até hoje portamos: o macacão, a descendência animal da qual a pessoa faz parte. O fato de termos cabeça, tronco e membros, como um macaco, não abrange as possibilidades psíquicas de constituição de corpos. Para o ser humano (quando ele é humano), qualquer corpo é possível. Freud dizia que somos "Deuses de próteses", justamente porque podemos artificializar tudo o que comparece de natural para nós: de árvores que se transformam em casas às paraolimpíadas. Na verdade, tudo o que o ser humano faz é arte, artificialização. De modo que o ser humano não nasce com um corpo: tem que constituí-lo, também, artificialmente. Não é à toa que existe o que Lacan chamou de estádio do espelho, que nada mais é do que a construção do próprio corpo. E cada pensamento, cada identificação, cada sintoma, é uma prótese que vai se agregando a ele. O corpo não é o macacão. Com ARTEfatos, podemos recriar nossos corpos, seja com maquiagem (que é uma tecnologia rudimentar e barata), seja com cirurgias estéticas, seja geneticamente ou de qualquer modo que se afigurar possível.

O real do corpo é então o fato de que não há uma forma psíquica definitiva para o corpo. Vejam a diferença dos corpos (tanto psíquicos quanto físicos) dos punks para os mauricinhos. cada um constituiu seu próprio corpo de acordo com certos pensamentos com relação à anarquia e ao dinheiro, por exemplo. O jeito que se vestem é uma técnica tosca e barata para modificar o corpo, mas já é uma modificação.

Assim, o que o vídeo mostra é que o borrão preto que borbulha corpos nada mais é do que o real: não tem configuração, é apenas a presença de uma ausência, como a sombra, e que oscila constantemente entre as mais variadas formas de sua configuração. Pensado assim, um corpo é apenas um modo qualquer que se configurou a partir do real, que, por não ter forma alguma, permite tomar qualquer forma. Não é necessariamente o macacão, que por por motivos 'naturais', ainda portamos. Isso me lembra o Bruce Lee, que era filósofo também:

"Empty your mind. Be formless. Shapeless. Like water. Now, you put water into a cup, it becomes the cup. You put water into a bottle, it becomes the bottle. You put water into a teapot, it becomes the teapot."

Esse é o processo de constituição do corpo psiquicamente: uma água amorfa, que podemos chamar de libido, vai se despejando nas formas disponíveis, ou seja, nas palavras da linguagem, como "punk", "mauricinho", "israelense", "muçulmano", etc. O corpo, psiquicamente, não está subordinado à conaturalidade para com o macacão, pois o psíquico abrange toda e qualquer possibilidade corporal. E, além disso, com arte, tecnologia e muito, muito custo, aos poucos podemos construir novas configurações de macacão que explicitem mais as corporeidades psíquicas de cada mente que o porta. É a mente que porta um corpo, e não o contrário.

Por isso digo que o filme mostra o corpo real do ser humano: uma sombra que pode ter qualquer forma. Freud disse que o 'eu' (que Lacan depois identifica com o próprio corpo psíquico) é a projeção de uma superfície, tal como a sombra na cortina. Na linha de Bruce Lee, eu diria "empty your body": isso ajudaria a não nos identificarmos nem com nosso corpo físico, que é um fóssil, pois psiquicamente somos muito mais evoluídos que nossos corpos, nem com quaisquer corpos psíquicos com os quais nos constituímos (pensem nas anoréxicas por exemplo). Pois no fundo, no fundo da superfície, somos apenas projeções de nós mesmos: nosso corpo é mental. 

terça-feira, 25 de setembro de 2012

O Circuito Topológico do Tesão



“Todos os dias é um vai-e-vem
A vida se repete na estação[...]

São só dois lados
Da mesma viagem[...]

A hora do encontro
É também de despedida”

(Trechos de “Encontros e Despedidas”, Milton e Brant)

À Volta do que não Foi.

A psicanálise não se coaduna com eufemismos, que tendem a ‘amenizar’ os efeitos afetivos dos significantes ao substituí-los (ou seja, metaforizá-los) por outros que escamoteiam o horror da experiência do real. Isso não significa que o analista não os use; no entanto ele o faz como expediente irônico (tal como Miller diz de clínica irônica), quer dizer, técnico. Sem querer aprofundar o tema da tradução mais ‘apropriada’ de Trieb, pedimos licença para introduzir aqui uma nomeação (e não uma tradução) abrasileirada, bastante unheimlich, para o famigerado significante alemão: Tesão, que vem da palavra tensão, que no latim significa “força”, “intensidade”, tal qual a konstante Kraft, ou a Drang freudiana. Seu uso corriqueiro em brasileiro deixa muito mais evidente o caráter afetivo da Trieb do que o sóbrio e eufemista “pulsão”. Talvez tenha sido importante para a consolidação da psicanálise fazer um certo uso técnico dos eufemismos na elaboração dos seus conceitos, pois já era muito difícil para as pessoas engolir a novidade pestilenta de Freud. No entanto, uma vez que psicanálise já é algo bem consolidado na boca do povo, não precisamos mais ficar com meias-palavras (que não são o semi-dizer).  Essa é a razão de nossa escolha por esse termo.
Mas não se trata aqui de discutir o termo em si. Trata-se de fornecer a topologia desse Tesão, ou seja, sua estruturação homóloga à estruturação do inconsciente, que sabemos ser (não-toda) de linguagem.
Lacan, no seminário 11, nos traz aquele famoso desenho do circuito pulsional, e diz que “há uma unidade topológica das instâncias em jogo” (p. 171, 172): o corpo e o inconsciente. No entanto, seu esquema da pulsão é topográfico, e não topológico. É da mesma ordem que as tópicas freudianas: um desenho, uma geometria euclidiana, e não uma lógica desse espaço. Nisso se perde o rigor propriamente demonstrativo que a topologia vem fornecer ao analista nas suas considerações. Por isso é preciso mostrar que topologia é essa que unifica inconsciente e Tesão.
Lacan diz que “essa topologia visa fazê-los conceber onde fica o ponto de disjunção e conjunção, de união e de fronteira” (p. 168) dos rombos tanto corporais quanto significantes, pois o inconsciente se situa (topo-logicamente) “nas hiâncias que a distribuição dos investimentos significantes instaura no sujeito” (p. 171). O Tesão tem seu papel no funcionamento do inconsciente porque algo do corpo é estruturado da mesma maneira, ou seja, é furado. Por isso a primazia dos orifícios corporais foi destacada por Freud: são esses furos que mostram a estrutura homotópica entre o pulsional e o inconsciente – ou, em outras palavras, entre o somático e o psíquico. O furo da estrutura significante se engrena (tal como o sujeito se engrena no corpo – texto ‘Televisão’) sobre os orifícios corporais, introduzindo (ou melhor, enfiando) neles o objeto (a), e assim “fechando-se na sua satisfação” (p. 170). A pulsão, qual o significante, é furada.
De modo que, no esquema lacaniano, os orifícios corporais encarnam, literalmente, o objeto (a), e o trajeto pulsional contorna esse objeto (o próprio vazio dos orifícios) para retornar à borda desse orifício, assim completando o circuito de sua satisfação: o retorno ao ponto de partida. Assim, a estrutura da pulsão é da ordem de “algo que sai de uma borda, que reduplica sua estrutura fechada, seguindo um trajeto que faz retorno” (LACAN, 1998, p. 171 – grifo meu). O retorno se faz justamente no reencontro com o objeto faltoso, no reencontro com o impossível de situar esse zielgehemmt Objekt, o que obriga a trajetória a se revirar em si mesma para atingir o seu alvo final (goal) no ponto mesmo de sua origem: a borda.
Pois bem, que objeto topológico podemos invocar para acoplar a essa lógica do Tesão, de uma borda que se reduplica, se revira, e termina justamente onde começou? Trata-se nada mais nada menos do que a banda de Möebius. Se a considerarmos como um objeto concreto, como uma máquina, cujo funcionamento se observa, (e não como uma superfície na qual estou), notamos que ela tem uma única borda. Nesta superfície, qualquer orientação que se proponha (dextrogira ou levogira), torna-se oposta, em continuidade, quando sua trajetória reencontra o ponto inicial, a ‘meio-curso’. A se completar todo o circuito, ela retoma sua orientação original, de partida. A questão que se formula então é: onde, quando, em que ponto a orientação opõe-se a si mesma? Quando é que, no meu trajeto de ida nessa superfície, eu me surpreendo como já retornando à orientação original da qual eu parti?
Esse é o impossível que a psicanálise reclama com o conceito de objeto (a): o inapreensível, porém necessariamente suponível ponto de reviramento na configuração da trajetória pulsional. Lacan disse que o fundamental nessa estrutura é o seu “vaivém”, a “reversão fundamental” (ibid., p. 168) que ela efetua no seu trajeto. E ele o demonstra tomando no texto de Freud o maravilhoso exemplo de uma boca que beija a si mesma (ibid., p. 170). Em que momento passa-se do beijar para o ser beijado, e vice-versa? Esse é o mistério que o objeto (a) encarna na sua função de reviramento do Tesão.
O objeto (a) se situa então no circuito topológico pulsional como o lugar (a)-tópico em que o Tesão, no caminho de ida ao encontro do objeto faltoso, se surpreende (tiquê) como já retornando à fonte (quelle), como já tendo encontrado (nachträglich) seu impossível objeto. Assim, podemos tomar o oito interior (a representação bidimensional da banda de Möebius) para situar o trajeto pulsional:
A ‘reversão fundamental’ da qual Lacan fala quando descreve a estrutura do objeto pulsional é o reviramento do sentido do Tesão: é o vaivém sexual de suas vicissitudes. Isso se articula com o que Freud nos indica no seu texto sobre as ‘Aventuras do Tesão’. Ele coloca quatro vicissitudes pulsionais: transformação no contrário (por exemplo, prazer/desprazer), orientação para a própria pessoa (eu/outro), recalque e sublimação. O que queremos aqui destacar são as duas primeiras: transformação no contrário e reversão ao próprio eu. Elas são redutíveis à mesma lógica da banda de Möebius, uma vez que se trata do ir e vir de seu movimento, que coloca a polarização, a diferença, a oposição: assim, transformação em contrário é homólogo a transformar o eu em outro. Lacan já dizia, imitando Rimbaud: “j’est un autre”. No entanto, é no a posteriori do reencontro com o objeto faltoso, “no momento em que o fecho se fechou, quando é de um polo ao outro que houve reversão, quando o outro entrou em jogo, quando o sujeito tomou-se por termo terminal da pulsão” (ibid., p. 173) que surge a diferença na orientação de seu sentido.
De modo que o Tesão, representado pelo seu objeto, é, como nos diz Freud, indiferente a essas oposições, ao modo da banda de Möebius: o objeto (a), como lugar topológico comutador entre as polaridades, tem precisamente a estrutura de indiferença para com elas. “Todo objeto, exceto o objeto que chamo de pequeno a, que é um absoluto, concerne a uma relação. O aborrecido é que haja a linguagem, e nela as relações se exprimem com epítetos. Os epítetos, por sua vez, impelem ao sim ou não” (LACAN, 2007, p. 116-7 – grifo meu), o que evidencia que qualquer objeto significante que ocupe o vazio absolutamente indiferente do objeto (a) implica em uma oposição, uma polarização. “Impelir ao sim ou não é impelir ao par” (ibid., p. 117), ou seja, ao par significante, pois o significante é sempre Outro, de modo que é pura diferença, pura polarização. Mas vimos com a lógica pulsional que é passando por esse lugar de indiferença que uma diferença (uma reversão) comparece: assim, podemos acoplar topologicamente pulsão e inconsciente, ou seja, objeto e significante, real e simbólico. O real da banda de Möebius sendo a impossibilidade de localizar, discernir, simbolizar esse ponto de reviramento (obj. a); o simbólico como sendo as duas polaridades de orientação dos seus pontos (os epítetos).
Freud termina seu artigo dizendo que “o traço essencial das vicissitudes sofridas pelas pulsões está na sujeição das moções pulsionais às influências das três grandes polaridades que dominam a vida mental” (FREUD, 2006, p. 144). Essas polaridades, ou oposições, são: atividade/passividade; Ego/mundo externo; prazer/desprazer (Ibid.). A estas, acrescento: o Um e o Outro.
REFERÊNCIAS:
FREUD, Sigmund. Obras completas, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_____________. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
MAGNO, MD. A música.  Rio de Janeiro: aoutra ed., 1986.
____________. Ordem e Progresso por Dom e Regresso. Rio de janeiro: aoutra ed., 1987.