“A que silêncio deve agora obrigar-se
o analista para evidenciar, acima desse pântano, o dedo erguido de São João de Leonardo, para que a
interpretação reencontre o horizonte desabitado do ser em que se deve desdobrar
sua virtude alusiva?”
(Lacan, “A direção do tratamento”)
A teoria da interpretação
psicanalítica, com Lacan, passa a ser concebida a partir dos três registros que
ele propõe para se dar conta dos efeitos do inconsciente, nomeadamente o
imaginário, o simbólico e o real.
Num primeiro momento de seu
ensino, Lacan procura mostrar aos analistas, especialmente aos pós-freudianos,
que a interpretação não deve atuar no registro imaginário, que é o lugar-tenente
do sentido na estrutura do inconsciente. “Isso para nós não é novidade, mas na
época era uma grande novidade porque até então o analista ouvia o paciente
procurando sempre o que aquilo queria dizer, isto é, o sentido. Os kleinianos
ainda hoje só trabalham com o sentido e a interpretação consiste em estabelecer
o sentido para o paciente”, diz Marcio Peter, psicanalista brasileiro. Na
verdade, não são apenas os kleinianos (ou seja, aqueles que operam a partir do
ensino de Melanie Klein) que se valem desse manejo. Outro dia, escutei uma
pessoa me contando sua passagem por um psiquiatra, oito anos atrás, devido a um
sintoma obsessivo clássico: essa pessoa tinha que tocar nas superfícies dos
lugares onde se encontrava (tal como todas as bordas de mesa, no chão, etc.),
para afastar os pensamentos de que se ele não o fizesse, sua mãe morreria. A
psiquiatra, ao ‘ouvir’ o relato, já começou com as ‘interpretoses’ (categoria
nosológica aplicável a ‘psicanalistas’ que operam com o imaginário na
interpretação): “você está sofrendo de um Transtorno Obsessivo-Compulsivo
porque você deseja a morte de sua mãe”. A pessoa me contou que se sentiu muito
frustrado quando notou essa postura da psiquiatra, pois ela já tinha uma resposta
pronta para seu problema e “nem me escutou” (palavras dele). À época do
tratamento ele contava 12 anos, e não suportou a situação de não ser ouvido, de
sofrer interpretoses, por isso não ficou muito tempo e logo parou de frequentar
a psiquiatra. “Qual é a função própria da interpretação kleiniana, que se apresenta como uma intrusão, de coisa
posta sobre o sujeito?” (LACAN, 1986, p. 90 – grifo nosso). Respondemos: a
função imaginária. Fica claro assim o que Lacan tentava alertar aos
psicanalistas da época: não se trata de fornecer sentido para o que se escuta
do analisando – isso não é senão interpretose. Mas do que é que se trata,
então? Como deve proceder uma interpretação?
Nessa época de seu primeiro
ensino, Lacan queria mostrar a função simbólica da interpretação, em oposição à
sua função imaginária. Como para Lacan o inconsciente é estruturado como uma
linguagem, não se trata de intervir fornecendo o sentido para o paciente, mas
sim, de intervir nas palavras que ele profere (o simbólico) para que ele
descubra por si só o sentido daquilo que diz no que ele mesmo diz. Uma
interpretação simbólica daria a chance d’a pessoa poder SE perguntar pelo
sentido do seu sintoma. Assim, o analista interviria, perguntando, por exemplo,
algo muito simples, como “por quê você sonhou isso?”, pedindo assim ao paciente
que faça o trabalho de associação para se chegar ao “conteúdo latente” do sonho,
e não dando isso para ele prêt-à-porter.
A interpretação simbólica ainda assim busca o sentido, mas a partir dos elementos
fornecidos pela fala do paciente, que ainda tem que ter o trabalho de associar
(e o analista direciona o tratamento nesse aspecto) os elementos para se chegar
ao sentido daquela formação do inconsciente. Interpretar aqui ainda está
articulado com a compreensão de um sentido para o sintoma, mas essa compreensão
parte do próprio paciente – a partir das intervenções do analista que o guiam nessa
direção.
Mas ao longo de seu ensino Lacan
ainda dá outra virada sobre sua teoria da interpretação. Ora, como Freud diz,
todo sonho tem um umbigo, um ponto que nunca será interpretado:
“Mesmo no sonho mais minuciosamente
interpretado, é frequente haver um trecho que tem de ser deixado na
obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há
nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e
que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho.
Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. Os
pensamentos oníricos a que somos levados pela interpretação não podem, pela natureza das coisas, ter um fim
definido; estão fadados a ramificar-se em
todas as direções dentro da intricada rede de nosso mundo do pensamento”
(FREUD, Vol. V, Cap. VII).
De modo que esperar uma formalização
lógica da interpretação a partir da descoberta do sentido do sintoma não condiz
com o que Freud nos mostra como resto indecifrável de um sonho, ou de uma
formação do inconsciente qualquer. Lacan tentou realizar essa formalização a partir
da estrutura da linguagem; porém, o inconsciente não é, ele todo, linguagem; “a
linguagem é imperfeita” (LACAN, Sem. 25, 10/01/1978). E, na verdade, o desafio
maior aos analistas é precisamente investigar como intervir no inconsciente por
algum outro caminho que não seja unicamente o da linguagem, que não seja unicamente
o do sentido que ela desvelaria no
trabalho analítico. Pois o inconsciente, não é ele próprio todo interpretável –
ele não é todo sentido. É a partir daí que Lacan começa a privilegiar esse ponto
não interpretável do inconsciente, chamado de Real, para descobrir como o
analista pode operar a partir dele. Isso porque “importa não o que já está lá
[no inconsciente, como conteúdo latente], o que carrega efeitos, mas, sim, como um efeito se produz nele de modo
aleatório” (SANTIAGO, p. 44 – grifo meu). Isso significa que não importa
tanto o conteúdo recalcado, o sentido
que a intervenção simbólica faz o paciente descobrir. Até porque descobrir isso
não tem plenos efeitos de cura – a repetição retorna mesmo após tais
descobertas. Assim, o papel da psicanálise é descobrir como interpretar sem
contar exclusivamente com o simbólico – que, como tal, é sempre falho, furado,
sempre passível de outra interpretação. É como diz Jacques-Alain Miller:
“nenhuma interpretação está, para falar com propriedade, terminada” (MILLER,
2011, p. 44). Esse furo nuclear da interpretação simbólica é o que faz Lacan
mudar de orientação no que concerne o interpretar analítico. “A interpretação
não é propor outro sentido [função imaginária] ou girar o sentido manifesto
para fazer surgir um sentido escondido [função simbólica]. A interpretação visa
desfazer a articulação do destino [a ‘sobredeterminação’ freudiana] para mirar
o fora-de-sentido [função real], o que quer dizer que a interpretação é uma
operação de desarticulação” (MILLER, 2011, p. 82). Ora, isso se harmoniza mais
com o fato do umbigo do sonho, ou seja, com o Real, que, como tal, em sua
definição mesma, é aquilo que exclui o sentido, é o próprio não-senso. Assim, o
paradigma da interpretação na psicanálise passa do imaginário ao simbólico, mas
finalmente desemboca no real. Como o real não tem sentido, não se trata mais de
buscar o sentido na interpretação: “seu esforço [de Lacan] é o de abrir uma
prática pós-joyceana da psicanálise, aquela que não recorre ao sentido para
resolver o enigma do gozo” (Ibid., p. 87). Se a interpretação não é mais uma
função do sentido, não se trata de descobrir
nada no inconsciente, ou de ‘ajuizar do sentido do pensamento’. Trata-se de
fazer o inconsciente produzir algo, um
significante novo, diria Lacan – que não tenha espécie algum de sentido (LACAN,
Sem. 24, 17/05/77). De modo que a ‘interpretação’ precisa intervir no Real para
que algo novo seja produzido a partir de Lá – algo que não tenha sentido, algo
que não se compreende. Por isso, Lacan solta uma frase que queremos analisar
aqui com cuidado: “uma interpretação não é feita para ser compreendida; é feita
para produzir ondas” (LACAN, citado por COUTINHO JORGE, p. 213). Lacan está dizendo
duas coisas aqui. Uma, é que se uma interpretação não
é feita para ser compreendida, é porque ela não se orienta mais
simbólico-imaginariamente, não se orienta pelo sentido do que se diz – seja ele doado ou descoberto; sua
orientação é para aquilo que não pode ser compreendido, nem dito, que é
justamente o real. Outra, é que se a interpretação é feita para produzir ondas,
há uma estreita relação entre o real que ela visa e as ondas que ela produz. De
modo que Lacan está dizendo de um caráter real das ondas ou de um caráter
ondulatório do real na interpretação.
Como de costume, Lacan não
‘explica’ o que quer dizer com tal frase, o que quer dizer com ‘ondas’,
deixando as descobertas ao encargo de seu leitor. Era parte de seu estilo, e
sobre isso ele se justifica: “…a linguagem é verdadeiramente o que só pode
avançar torcendo-se e enrolando-se, contornando-se de uma maneira da qual
afinal de contas não posso dizer que não dou aqui o exemplo. Não se deve
acreditar que, ao aceitar o desafio lançado por ela, ao marcar em tudo que nos
concerne até que ponto nós dependemos dela, não se deve acreditar que faço isso
assim de bom grado. Acharia melhor que isso fosse menos tortuoso” (A Terceira).
Essas torções (topológicas) que ele produz em seu estilo, nos seus textos, são
exemplos dessas ondulações às quais ele se refere quando fala da interpretação.
“Alguma coisa que é característica de meus Escritos é que não os escrevi para
que se os compreendesse, eu os escrevi para que se os lesse” (LACAN, citado por
COUTINHO JORGE) – aforismo esse que se relaciona diretamente com o da interpretação.
Isso exige que cada leitor se coloque como tal naquilo que lê – pois Lacan se
faz tortuoso –, que produza um entendimento próprio, e não apenas porque Lacan
o diz – em suma, que o leitor, ao ler Lacan, interprete Lacan, cujos seminários eram sua própria análise. De
modo que nossa intenção aqui, seguindo Lacan por um caminho por onde ele não
foi – e assim interpretando-o –, é
investigarmos que articulações podemos traçar entre o real, como o umbigo do
inconsciente, impossível de ser interpretado, mas também como aquilo que não se
compreende numa interpretação, e as ondas que uma interpretação que toca esse
real produz. Para tal, recorreremos a um campo que nos traz de bandeja essa
articulação: a física quântica.
O que há de fundamental no campo
quântico é uma distinção entre duas entidades físicas, a saber, a partícula e a
onda. Uma partícula é um ponto – indivisível
– no espaço, onde há matéria, ou energia. Podemos pensar em uma bola bem
pequena que segue uma trajetória pelo
espaço. Já uma onda é uma perturbação que se propaga em um meio, tal como a
água (‘como uma onda no mar’), e que
se espalha pelo espaço (PESSOA JR., 2003,
p. 2). Essa perturbação que se propaga é a energia, que é o próprio movimento
das partículas do meio (no nosso exemplo, a água). De modo que uma onda, por
ser espalhada, não tem uma trajetória definível (pois segue várias ao mesmo
tempo), nem posição determinada (ela está espalhada pelo espaço, ao contrário
da partícula que se situa bem distintivamente).
Pois bem, o que a física quântica
revela é que os objetos que ela descreve possuem as duas propriedades! Ora,
isso é uma contradição lógica, pois afirma-se que a mesma coisa (um objeto
quântico) segue uma trajetória (no caso da partícula) e não segue (no caso da
onda, porque a trajetória é espalhada, logo não é trajetória). Essa foi a
primeira surpresa, demonstrada por um experimento que descreveremos dentro em
pouco.
Antes, é preciso detalhar mais as
características de uma onda. Como se sabe, uma onda é feita de oscilações, de
perturbações. As oscilações são movimentos de ascendência e descendência, quer
dizer, algo que sobe e desce ao longo de uma direção. A amplitude é a distância
entre um pico e a linha mediana da onda (ver ilustração). Ora, se duas ondas
ocupam o mesmo lugar no espaço e seus picos e vales estão alinhados dizemos que
as ondas estão em fase e a onda resultante dessa soma terá o dobro da amplitude
(é só somar as duas amplitudes). Já se as ondas estiverem fora de fase, ou
seja, se o pico de uma coincidir com o vale da outra, as ondas se destroem,
anulando-se. De modo que essa interferência é uma propriedade típica das ondas,
não das partículas. Sabemos que a luz tem características ondulatórias, pois já
foram verificados padrões de interferência nelas (tanto construtivos, quando as
ondas estão em fase, quanto destrutivos).
Isso nos ajudará a explicar outro
fenômeno, que é o de divisão de ondas. Se jogarmos um feixe de laser (luz) em
um espelho semi-refletor (que reflete metade da luz e deixa a outra metade
passar) a onda se divide, e seus componentes ficam fora de fase. É possível
recombinar os feixes que se originaram da divisão com um aparelho denominado
interferômetro de Mach-Zehnder. São os experimentos com esse aparelho que deram
origem às questões profundas que a física quântica trouxe para o mundo.
No entanto, a luz também
manifesta características corpusculares, de partículas; se reduzirmos sua
intensidade suficientemente, veremos que a detecção da luz se dá pontualmente,
ou seja, a luz incide no aparelho detector como pontos, partículas, denominadas
fótons. O efeito fotoelétrico, que
rendeu a Einstein o prêmio Nobel, é a prova da propriedade particular da luz. Assim,
aqui mais uma vez o paradoxo quântico se manifesta na contradição lógica da
dualidade onda-partícula.
Sem mais delongas, então,
analisemos o interferômetro para compreender melhor a origem desses paradoxos.
O interferômetro é um aparelho
composto de um espelho semi-refletor (S1), que divide o feixe de luz (aqui
considerada em seu aspecto ondulatório) em duas partes de igual amplitude.
Sabemos que numa divisão assim, as ondas resultantes saem de fase; a onda
refletida sofre um deslocamento de ¼ em sua amplitude. Em seguida, cada um dos
feixes é refletido por um espelho (totalmente refletor), E1, E2, de modo a se
cruzarem novamente em um espelho semi-refletor (S2), após o qual são colocados
dois aparelhos de detecção (D1, D2), um para cada feixe (figura).
Como cada componente do feixe de
luz original incide em S2, era de se esperar que sua medição pelo detector
mostrasse 50% de cada componente (pois que o espelho S2 divide o feixe). Mas
não é o que acontece. O que se observa é a medição de feixe em apenas um dos
detectores (D1), e o valor dessa medição é o mesmo valor do feixe original,
antes de ter passado por S1!
Isso se explica pelo seguinte: o
feixe que seguiu a trajetória A, ao incidir em S2, se dividiu em dois
componentes, um dos quais foi refletido para D1, e o outro seguiu seu caminho
rumo a D2. O feixe que seguiu o caminho B também é refletido em S2 rumo a D2 e
seu outro componente segue seu caminho em direção a D1. Como a cada reflexão há
uma alteração nas fases das ondas, o que ocorre é que ao incidir em S2 os componentes
dos feixes A e B que vão em direção a D2 se interferem destrutivamente, se
cancelando, por estarem fora de fase; e os componentes que seguem para D1 se
somam, por estarem em fase. De modo que é perfeitamente lógico que um dos
detectores meça a superposição construtiva e ou outro não, pois os feixes se
anularam de S2 a D2 devido ao padrão destrutivo de interferência das ondas.
Esse é um experimento arranjado
para ondas, com comportamento clássico, ainda não é nada quântico. Para tornar
o experimento quântico é preciso reduzir a intensidade do feixe de luz até que
apenas um fóton incida em S1 por vez. Assim, o que ocorre é que uma partícula
(um fóton) incide em S1 e lá pode ser ou
refletida ou seguir seu rumo, e passa
por S2 (também podendo ser refletida ou
seguir o rumo) de modo a incidir ou
em D1 ou em D2, com 50% de
probabilidade para cada incidência. No entanto, o experimento mais uma vez
mostra que apenas o detector D1 mede a presença da partícula, com o mesmo
comportamento de um experimento ondulatório! Ou seja, é como se a partícula
tivesse viajado pelos dois caminhos, ‘interferido’ consigo mesmo em S2, de modo
a criar um padrão de interferência destrutivo entre S2 e D2 e um construtivo
entre S2 e D1! Como é que uma partícula, que tem posição e trajetória
definidas, pode ‘se espalhar’, como uma onda, e interferir consigo mesmo? Como
é possível a uma partícula exibir propriedades de onda?
A grande questão é a seguinte:
por qual caminho o fóton rumou após passar por S1, antes de incidir em S2? A ou
B? Os problemas começam a surgir.
Suponha que o fóton se encontre
em A. Isso pode ser realizado experimentalmente com o próprio interferômetro ao
se retirar o S1, de modo que o feixe incide em E1 e é refletido rumo a S2. Lá o
feixe se divide e há uma probabilidade de 50% de incidência em D1 e 50% em D2,
ou seja, não ocorreu o padrão de interferência. Isso é um comportamento
clássico, não-quântico: ou ele incidirá em D1, ou em D2. O mesmo ocorre se
arranjarmos o experimento de modo que o fóton percorra o caminho B.
No entanto, quanto ao
interferômetro completo (com o espelho em S1), veja só que situação: “se o
fóton estivesse ou em A, ou em B, continuaríamos a ter uma probabilidade de 50%
de detectar o fóton em D2. Isso segue da própria definição do conectivo lógico
‘ou’: se em A é 50%, e em B é 50%, então ‘A ou B’ tem que ser 50%. No entanto,
vimos que no experimento [interferômetro completo], para um único fóton, a
probabilidade de o fóton atingir D2 não é 50%, é 0%! Logo, é falsa a afirmação
de que o fóton está OU em A OU em B!” (PESSOA JR., p. 12, grifo meu). Essa
situação é explicitamente paradoxal: o mesmo objeto passou por dois lugares
diferentes ao mesmo tempo? Por onde ele foi? O que aconteceu com o fóton no
intervalo entre as medições? Ele era partícula? Ou era onda? Essa é a essência
da dualidade onda-partícula; assim, a teoria quântica estuda as propriedades
ondulatórias que ela atribui às partículas.
Para falarmos mais rigorosamente
sobre a dualidade, enunciemos o seguinte: um fenômeno quântico é um conjunto
composto pelo objeto quântico e pelo aparelho de medição, que, dependendo de
seu arranjo, determina se o objeto terá aspecto corpuscular ou ondulatório. Por
isso, o aparelho de medição deve ser incluído no conceito de fenômeno quântico:
nos dois tipos de experimentos com o interferômetro, um teve aspecto
corpuscular e outro teve aspecto quântico. Daí que um fenômeno é corpuscular se, após uma medição, segundo certo arranjo
do aparelho, para ele puder ser discernida uma trajetória, quer dizer, se
for possível (mesmo que em apenas em princípio, sem de fato ocorrer uma
medição) saber se ele passou por um ou por outro dos caminhos possíveis. E será
um fenômeno ondulatório se uma trajetória
não for distinguida, devido a uma superposição de suas possibilidades, assim
como ocorre com o fenômeno de interferência de ondas; a oposição entre os
caminhos, representada pelo conectivo lógico ‘ou’, não se aplica nesse caso.
Não se trata aqui de ter passado por um ou
outro caminho. Mas como poderia ter o objeto passado por um e por outro caminho?
Apesar de todas essas perguntas,
há um formalismo mínimo, uma equação, produzida por Erwin Schrödinger, que
permite lidar com todas essas probabilidades, com todas essas incertezas, de
maneira que funciona o suficiente para construir computadores, televisões, etc.
E muitos físicos dizem que é só isso que importa, tanto faz se passou ou não
passou por um ou outro lado: nós temos as equações e pronto! O problema é que
eles se esquecem que foi a partir de respostas a perguntas de cunho
interpretativo, como essas, que muitos passos foram dados até que se chegasse a
tais equações preciosas, além da proposição de experimentos que confirmam ou
refutam partes principais da teoria. De modo que investigar o campo não é
supérfluo, e todos os grandes nomes da Física se detiveram nessas questões,
procurando respostas, tentando simbolizar esse real que escapa à nossa
compreensão. E nada garante que, ao ignorar a interpretabilidade da teoria, os
físicos pragmáticos não estejam, justamente, interpretando-a.
De modo que um dos pontos de
maior interesse aqui é tentar entender o que o dualismo onda-partícula nos
trouxe. Ele pode ser expresso em um dos princípios fundamentais da Teoria
quântica, a saber, o princípio de superposição. Como já vimos na descrição das
propriedades ondulatórias, a soma de duas ou mais ondas é uma superposição de
seus estados. Essas superposições podem ser de dois tipos: construtivas ou
destrutivas, de acordo com a coincidência ou não de suas fases.
Outra definição propedêutica é a
de estado do sistema quântico. No experimento do interferômetro, o estado é
definido como o valor medido pelo detector (autovalor) quando a partícula tiver
passado ou pelo caminho A ou pelo caminho B, ou seja, é a posição da partícula.
Esses dois estados são ditos ortogonais, porque se a trajetória A for medida, a
trajetória B não será: elas são mutuamente exclusivas.
No entanto, o princípio quântico
de superposição enuncia que se um sistema quântico (como uma partícula que
passa pelo interferômetro) tiver dois ou mais estados possíveis, a soma desses
estados é também um estado possível para o sistema (PESSOA JR., p. 23). Assim,
no interferômetro, antes da medição efetiva do estado da partícula, há a
possibilidade de que seu estado inclua as duas possibilidades de trajetória.
Mas o que isso quer dizer? A partícula está nos dois lugares ao mesmo tempo? As
equações não respondem a essas perguntas, nem se interessam (e alguns
intérpretes da teoria as imitam).
A dificuldade que se impõe então
é: quando o estado quântico está em superposição – ou seja, ele ainda não foi
medido por um instrumento de detecção – trata-se de uma onda ou uma partícula?
E, mais ainda: essa superposição é real, quer dizer, própria do objeto físico,
ou reflete apenas a ignorância do observador e seu aparelho de medição, que não
conseguem medir com precisão a posição em que a partícula se encontra? Outra
pergunta: no estado superposto, a partícula tem realidade física? Há realmente
um objeto físico nesse momento? Se não, o que é que há?
Esse é o núcleo fundamental da
função de onda na física quântica: ela não comporta as distinções entre os
estados (as trajetórias) da partícula; ela é o próprio indiscernível, a própria
indistinção da matéria. O que é dizer que não é possível saber se há alguma
partícula ali, atravessando o interferômetro. Em outras palavras, é impossível
saber o que ocorre com uma partícula em seu estado de função de onda: não
sabemos sequer se é partícula. É um umbigo na física quântica, tal como Freud
mostra o umbigo do sonho: lá, não temos como saber o que se passa, pois a
posição para a partícula se ramifica para todas as possibilidades de
trajetórias disponíveis. No entanto, é de lá que as partículas surgem como tais
somente após passarem pelo
interferômetro, no momento da medição. Antes de uma medição ser efetuada, não é
possível saber nada a não ser as probabilidades
de a partícula estar passando por uma ou outra trajetória.
Um ‘experimento de pensamento’
reflete isso de maneira exemplar. Antes de passar à sua explanação, podemos
perceber pelo que foi dito até aqui que o ato de medir a posição da partícula
(ou seja, a interação entre o objeto quântico e o aparato macroscópico) altera
o sistema quântico. Por exemplo, porque uma partícula, enquanto não é detectada,
exibe comportamento ondulatório, mas quando se a mede, ela reduz seu estado
quântico para um comportamento corpuscular?
Imagine que no experimento com o
interferômetro completo queiramos medir de fato o momento em que a partícula
está entre o espelho semi-refletor S1 e o espelho E1, que direciona a partícula
rumo a S2, para vermos por qual caminho ela passou. Assim, colocamos um
detector D3 entre S1 e E1.
Se o detector D3 for acionado, a
partícula passou pelo caminho A, ao passo que se nada for detectado, a
partícula passou por B. Com isso, teremos 50% de probabilidade para cada caso.
No entanto, o que acontece é algo surpreendente: se na experiência original o
único detector no qual as partículas incidiam era D1, devido ao padrão de
interferência causado por S2, ao se medir por qual caminho o fóton passou, o
padrão de interferência desaparece! Ou seja, 50% das vezes haverá detecção em
D1 e 50% em D2! Isso mesmo se o detector não medir nada, (caso em que houve
trajetória B), quer dizer, sem que haja qualquer interação direta entre a
partícula e o detector, o que implica que não é devido à interação com o
aparato de medição que faz o padrão de interferência desaparecer; é o simples
fato de ter havido uma trajetória. Isso quer dizer que se os caminhos dos fótons
forem discernidos, ou seja, se houver trajetória detectável para as partículas,
elas deixam de exibir a função de onda, deixam de interferir: o seu estado
quântico reduz drasticamente – “colapsa”, no jargão –, e o comportamento
exibido passa a ser de partícula. Por que a medição destrói o padrão de
interferência? O que significa o ato de medir um objeto quântico? O observador
está implicado nisso, enquanto medidor?
Erwin Schrödinger, que produziu o
fundamento do formalismo mínimo com uma equação da evolução do sistema
quântico, propôs o seguinte ‘experimento de pensamento’: ponha um gato dentro
de uma caixa junto com um átomo radioativo e um detector que aciona um
mecanismo que mate o gato caso o decaimento do átomo (que ocorrerá ou não, de
acordo com as leis probabilísticas da mecânica quântica) ative o detector.
Antes de abrir a caixa, o gato estará vivo ou morto? Há uma probabilidade de
50% de o átomo decair, acionando a ‘máquina diabólica’ que mata o gato, e há
uma probabilidade de 50% de o átomo não decair, deixando o gato vivo. As duas
possibilidades de decaimento estão superpostas. Isso quer dizer que a vida e a
morte do gato também estão em superposição? O gato está em um estado meio-vivo
e meio-morto, como um zumbi? Ora, se abrirmos a caixa e olharmos (ou seja, se
efetuamos uma medição), o gato estará em apenas um dos estados. Mas e enquanto
não olhamos? Há físicos que afirmam categoricamente que o gato, também, está
com a vida e a morte superpostas, ou seja, é fisicamente indiscernível se o gato
está vivo ou morto – é como se ele
estivesse vivo e morto. E o fato de
olharmos o conteúdo da caixa determina o conteúdo da caixa – ou o gato estará
vivo ou morto, colapsando assim a função de onda que mantinha o gato em
superposição.
Interessa aqui com esse exemplo é ressaltar essa
propriedade fundamental da função de onda: a superposição das possibilidades de
orientação topológica de seus elementos. Nessa superposição nos deparamos com
um Real, no sentido que Lacan coloca: o de impossibilidade de marcação para a
posição do gato; não há significante, não há discernível para expressar o seu
estado quântico (ou seja, superposto). Isso é o que significa uma onda na
física quântica: uma função de superposição de possibilidades para distinções e
orientações topológicas de um elemento físico (nomeadamente uma partícula). A
função de onda (que se grafa com o símbolo Ψ – o que é muito digno de nota) é
propriamente uma impossibilidade radical de se saber o que se passa em nível
quântico; é um furo, um indiscernível que nenhum saber poderá capturar. É como
diz Anton Zeilinger, da Universidade de Viena: “A superposição de amplitudes
[...] é apenas válida se não houver
maneira de saber, mesmo em princípio,
qual caminho a partícula tomou” (ZEILINGER – grifo nosso). Ou seja, a função de
onda é algo que não faz sentido na
física quântica – bem literalmente: por qual sentido (trajetória) a partícula
passou? É impossível saber. É precisamente aí que se manifesta na física
(poderíamos ainda dizer: na ciência mesma) o que Lacan chama de Real. O real,
na física quântica, é precisamente o que a função de onda materializa. Ou
melhor: a função de onda demonstra fisicamente a ‘ek-sistência’ do que Lacan
chamava de Real – para além de qualquer possibilidade de nomeação e
significação. Por isso é que as reações ocasionadas pelas descobertas que se
desenvolveram nesse campo foram as mais estupefatas: Niels Bohr, um dos nomes
mais importantes da física moderna, foi taxativo: “aqueles que não se chocam ao
entrar em contato com a teoria quântica não podem tê-la compreendido” (NETO,
2010, p. ix) – isso deveria também valer para a psicanálise, a propósito.
Richard Feynman, prêmio Nobel, disse: “é seguro dizer que ninguém entende a
mecânica quântica” (bid.). Sir Roger
Penrose: “A mecânica quântica não faz o menor sentido” (Ibid.). Não é preciso
dizer mais para demonstrar que os físicos também se depararam com aquilo que
Freud chamou de Unheimlich, o
estranho, o inominável – o umbigo.
Pois bem, vemos com clareza que o
real com que a física quântica se depara é propriamente ondulatório. É na função
de onda (Ψ) que se encontra, na física, o que Lacan chamava de real. Mas como
compreender que a interpretação incide sobre o real e produz ondas? O que é
‘produzir ondas’? O que Lacan queria dizer com ‘ondas’?
Lacan, ao final de seu ensino,
comparava a interpretação ao chiste e à escrita poética. Isso porque ambos
fazem equívoco (
bévue) e ressoam o
sentido. “Com a ajuda do que se chama escrita poética, vocês podem ter a noção
do que poderia ser a interpretação analítica”; “Estar eventualmente inspirado
por algo da ordem da poesia para intervir enquanto psicanalista? É precisamente
para isso que é necessário orientá-los” (LACAN, Seminário 24, 19/04/77). A
escrita poética, o chiste, são efeitos do inconsciente que não são de maneira
alguma unívocos – são precisamente equívocos –, ou seja, não impõem o sentido, senão como
impossível. Na interpretação, o sentido se torna impossível, e é daí que
aparece sua eficácia enquanto demonstração do real. Lacan dá exemplos disso até
mesmo nos títulos de seus seminários: “
les
non-dupes errent”, ou “
l’insu que
sait de l’une-bévue s’aile à mourre” – frases cujos sentidos são
indecidíveis, pois oscilam (como quem diz ‘ondulam’) entre dois ou mais
sentidos – entre dois ou mais significantes. Digamos que, na interpretação, o
sentido espalha sua trajetória, sua consistência, tal como uma onda. É isto que
a operação de interpretação tem que fazer com os elementos que se apresentam na
fala: reduzi-los a equívocos, para que a partir deles as possibilidades de decantação
do sentido emerjam por si sós – mas a emergência de sentido é secundária à
intervenção analítica, que visa o real. “Nada mais fácil que patinar na
equivocação (
bévue), quer dizer, em
um efeito do inconsciente” (LACAN, Seminário 24, 10/05/77). Assim, o equívoco,
enquanto efeito do inconsciente, está alinhavado com o real, por ser uma
articulação simbólica (feita a partir dos elementos significantes na fala) em
que o sentido se dissolve, se espalha, pela miríade de sentidos que tal
elemento simbólico possa ter – já que esse elemento originalmente não tem
nenhum sentido, ele é
sem-tido. Não
se trata de encontrar os sentidos (latentes) para o significante, mas sim de
simplesmente
realizar o significante,
ou seja, reduzi-lo ao sem-tido (
sens/
sans, no francês) que ressoa, que produz
ondas nele mesmo – como uma partícula de propriedades ondulatórias (objeto de
estudo da física quântica): “isso consiste em servir-se de uma palavra para
outro uso que não aquele para o qual ela está feita, se a retorce um pouco e é
nessa torção que reside seu efeito operatório” (LACAN, Seminário 24, 17/05/77).
Torção que é da ordem de uma topologia unilátera, como a banda de Möebius: de
um sentido a outro na
mesma
superfície.
"No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos -
O verbo tem que pegar delírio."
(Manoel de Barros, "O Livro das Ignorãças", VII)
Podemos então perceber que a
estrutura do equívoco na interpretação analítica é exatamente igual à da função
de onda na física quântica. Tomemos o exemplo do gato de Schöedinger. O gato,
assim como o significante, está em um dado estado, em um dado sentido – “vivo” ou “morto”. A ênfase recai nesse “ou”:
quando digo uma palavra na análise, quero dizer alguma coisa, e não outra. A
interpretação incide na palavra não para dar-lhe outro sentido, nem para
buscá-lo enquanto recalcado. A interpretação só serve para exibir o não-senso
radical do significante, em que não se sabe se o gato (como significante) está “vivo”
ou “morto”; se a palavra é “les non-dupes
errent” ou “le nom du père”. A
homofonia é um caso dessa lógica. Mas a lógica, para além do caso da homofonia,
é uma lógica em que um mesmo elemento, uma mesma partícula, um mesmo e único significante, (o “gato”)
está superposto em, no mínimo, duas possibilidades opostas (ou seja, simbólicas
enquanto tais) de seu estado: presente/ausente, vivo/morto, ou, como Slavoj Zizek
prefere, “undead”. Freud mesmo diz: “a
alternativa ‘ou... ou’ nunca se
expressa nos sonhos” (FREUD, 2006, p. 679). Esse efeito não é algo que se
compreende – até mesmo por ser paradoxal –, mas que se demonstra como tal na
sua própria impossibilidade de compreensão. Essa demonstração do impossível é o
efeito que a interpretação analítica propõe. Digamos que entre estar vivo ou morto, o gato está “ou”, enquanto puro equívoco entre seus estados
quânticos. É para a função “ou”, ou
seja, para a função Ψ, que o analista deve apontar como uma bússola na direção
do tratamento – para essa região imprecisa e inabordável em que o significante
não está nem vivo, nem morto, mas e(qui)voca tanto a vida quanto a morte. O
analista não diz o sentido (topológico) do gato: diz o silêncio unilátero do
“ou”, apontando, como o São João de Leonardo da Vinci, para o topos impossível e equívoco da função de
onda – o ‘horizonte desabitado do
ser’:
Há um conhecido verso budista que
parece ter sido feito para descrever a interpretação, especialmente se o
articularmos com o quadro de Da Vinci:
Quando curiosamente te perguntarem,
buscando saber o que é aquilo, não deves afirmar ou negar nada. Pois o que quer
que seja afirmado não é a verdade. E o que quer que seja negado não é
verdadeiro. Como alguém poderá dizer com certeza o que aquilo possa ser
enquanto por si mesmo não tenha compreendido o que é? E, após tê-lo
compreendido, que palavra deve ser enviada de uma região onde a carruagem da
palavra não encontra uma trilha por onde possa seguir? Portanto, aos seus
questionamentos oferece-lhe apenas o silêncio. Silêncio – e um dedo apontando o
caminho.
O verso deixa muitas coisas bem
claras: quando um analisando pergunta ao analista o sentido de seu sintoma, o
analista não responde nem uma coisa (tipo “o gato está vivo”) nem outra (“o
gato está morto”). O analista também não compreende. Sua função é apenas
apontar para o analisando a experiência
de real, ou seja, a experiência do indizível “ou” (“o gato está undead”). E essa experiência é do analisando, não do analista, cuja
função é apenas a de apontar o caminho para (o analisando ‘compreender’) o impossível,
o indizível. O dizer de um analista tem que apontar para o Silêncio (do) real
do ‘horizonte desabitado do ser’: de lá dessa região o analisando traz na sua
carruagem simbólica as meias-palavras (já que a verdade só pode ser semi-dita –
ou o gato está “vivo” ou está “morto”) que digam dessa experiência – aí sim,
reabitando o horizonte do (seu) ser. Se a psicanálise é o tratamento que se
deve esperar de um psicanalista, como Lacan diz, a única coisa que se deve
esperar de um psicanalista é que ele aponte para esse caminho quando age. De
resto, só há psicologia. Poderíamos dizer que a diferença entre a psicologia e
a psicanálise é análoga à diferença entre física clássica e física quântica.
Dessa forma, se a interpretação
não é feita para ser compreendida, é porque a interpretação não se confunde com
compreensão. Isso concerne tanto analista quando analisando. O analista não
deve ‘compreender’ o analisando, interpretá-lo hermeneuticamente,
kleinianamente; nem o analisando precisa compreender uma interpretação propriamente
analítica, pois ela evoca justamente o real, o impossível de compreender. Lacan
mesmo já dizia: “uma das coisas que mais devemos evitar é compreender muito,
compreender mais do que existe no discurso do sujeito. Interpretar e imaginar
que se compreende, não é de modo algum a mesma coisa. Eu diria mesmo que é na
base de certa recusa da compreensão que empurramos a porta da compreensão
analítica” (LACAN, 1986, p. 90).
Na verdade, esse modo, real, de
conceber a intepretação torna a palavra ‘interpretação’ um nome “equivocado”
para a operação analítica, já que ‘interpretar’, no dicionário, significa
“traduzir [que é propriamente simbólico], ajuizar da intenção, do sentido [que
é propriamente imaginário], exprimir o pensamento” (LEXIKON, p. 442). Até
porque o próprio do real é justamente não poder ser interpretável, apenas
demonstrável: e, por isso, ao contrário, é
o real que interpreta, no que ele se demonstra – a interpretação parte do
real. Poderíamos então equivocar o nome “interpretação” seguindo a maneira pela
qual Lacan passa da intersubjetividade – enquanto a função de comunicação e sentido
da linguagem – para a intra-subjetividade – enquanto monólogo e equívoco: “a
linguagem não é, ela mesma, uma mensagem” (LACAN, 2007, p. 32). O ‘inter’, que
significa entre, implica o Dois, a
articulação S1 – S2 que produz o sentido, a mensagem a ser decifrada no
inconsciente; já o ‘intra’, que significa para
dentro, é da ordem do Um, do equívoco do Um consigo mesmo, sem sentido
latente, sem Outro significante. Isso equivale a passar da suposição de que se
fala com alguém, que compreende o sentido do que se diz, para a compreensão de
que “estou falando com as paredes. Nem com vocês, nem com o Outro maiúsculo.
Estou falando sozinho. É precisamente isso que lhes interessa. Cabe a vocês me
interpretar” (LACAN, 2011) – com todo o equívoco que a palavra ‘interpretar’
tem aqui: entre o hermenêutico e o psicanalítico. Assim, a operação analítica
bem poderia se chamar “intrapretação”,
pois não é uma função inter-significantes, de articulação e sentido, mas uma
função intra-significante, de desarticulação, indistinção e equívoco – não é da
ordem do Dois, mas do Une-bévue, da
superposição do Um consigo mesmo, do “caráter bífido do Um” (LACAN, 2012, p.
130). Não se trata de buscar o Outro significante latente, mas de intervir em
cada Um significante para equivocá-lo.
Dito isso, o fundamento real da 'intrapretação', analítica como tal, é uma intervenção que requer o qualificador
de “quântica”, ou “não-clássica”; a função da interpretação é uma função de
onda (Ψ) que incide no significante. “Com efeito, é unicamente pelo
equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no
significante que ressoe” (LACAN,
2007, p. 18 – grifo nosso). Ψ tem a estrutura de ressonância do equívoco, da
superposição ondulatória de sentidos do significante, tal como a escrita
poética para Lacan: “usar a escrita para equivocar pode servir... porque precisamos do
equívoco para a análise... Nós precisamos do equívoco, é a definição da análise” (Lacan, Sem. 25, 15/11/77). De modo que a
única intervenção que pode ser descrita como propriamente psicanalítica é
aquela que tem efeito de uma função de onda – seja isso na escrita, na fala, na
imagem, no som, onde quer que seja. Essa intervenção não é para ser
compreendida – e nem há como compreendê-la –, basta que demonstre, produza, a
hiância real do inconsciente, que faz o significante ressoar como uma onda
quântica. Em suma, a intrapretação é feita para produzir um gato de Schrödinger – como MC Escher sempre deixa muito claro em seus
trabalhos:
REFERÊNCIAS:
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.
FREUD, Sigmund. A interpretação dos Sonhos. ESB, Vol. V.
Rio de Janeiro: Imago, 2006.
SANTIAGO, Jésus. O Tempo como Contingência na Experiência
Analítica. In: O tempo, o Objeto e o
Avesso – ensaios de Filosofia e Psicanálise. Belo Horizonte: Autêntica,
2004.
CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico Lexikon. Rio de
Janeiro: Lexikon, 2007.
COUTINHO JORGE, Marco Antonio. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan,
vol 2: a Clínica da Fantasia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
PESSOA Jr., Osvaldo. Conceitos de Física Quântica, Vol. I.
São Paulo: Livraria da Física, 2003.
LACAN, Jacques. O seminário 1: o escritos técnicos de Freud.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
LACAN, Jacques. O seminário 19: ...ou pior. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2012.
LACAN, Jacques. O seminário 23: o sinthoma. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LACAN, Jacques. O seminário 24: L’Insu que sait de
l’une-bévue s’aile à mourre. Inédito.
LACAN, Jacques. O Seminário 25: O momento de Concluir.
Inédito.
______________. Estou falando com as paredes. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
NETO, Nelson Pinto. Teorias e interpretações da mecânica
quântica. São Paulo: Ed. Livraria da Física, 2010.