sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

O futebol psicanalítico do Barcelona

Falar do Barcelona: por quê? Muitos dizem por aí que futebol não acrescenta em nada, não te faz pensar, pois só se vê jogador repetindo as mesmas frases feitas, pegando as popozudas e etc. É claro que nem sempre futebol é interessante, e isso porque na grande maioria do tempo não se joga futebol, joga-se pelada. O futebol tem aproximadamente 160 anos e penso que só agora, após vermos o Barcelona ganhar um campeonato mundial da maneira que o fez, podemos dizer que estamos realmente aprendendo o jogo. E quando o futebol é jogado, ele pode ensinar alguma coisa para a vida - tal como mais normalmente falam do xadrez: é um jogo filosófico, "cabeça" e tals. Mais precisamente, quero sustentar que a conquista do mundial da FIFA pelo Barça foi o ápice de uma nova maneira de jogar futebol, promovida pelo clube, e que, a meu ver, na verdade re-inaugura o próprio esporte. E esse ato de reinauguração é um ponto de fim de uma concepção de futebol e o início de outra. De modo que esse corte com o significado, com o modo de jogar futebol que vigorava até o surgimento do evento Barcelona, mostra perfeitamente a direção indicada pela psicanálise para que haja a criação, ou seja, mostra para onde ela aponta sua própria eficácia enquanto prática. Se essa hipótese for adequada, a consequência é a de que o modo de jogo do Barcelona ocupou o lugar de analista no futebol e interpretou (no sentido psicanalítico) as pessoas envolvidas com o esporte. 

Mas vamos por partes. No ano de 2011, o Barcelona simplesmente foi disparado o melhor time do mundo, ou seja, o mais eficaz. Ganhou três dos quatro títulos que disputou: campeonato espanhol, campeonato europeu, campeonato mundial, mas não a Copa do Rei da Espanha. Além disso, muitos jogos foram ganhos por goleadas, com o Barça dominando completamente o jogo (em média o time mantém a posse de bola por 60, 65% do tempo de jogo), criando várias oportunidades de gol, além dos já marcados. É o time que tem a base da seleção espanhola, atual campeã da Copa do Mundo; tem três dos quatro melhores jogadores de futebol dos últimos três anos (Messi, Xavi e Iniesta); tem O melhor jogador do mundo há três anos (Messi), tem um dos três melhores jogadores de futebol de toda a história (ao lado de Pelé e Maradona, não saberia dizer em que ordem), e tem um dos três melhores times de todos os tempos (ao lado do carrossel holandês, em 1974, e da seleção canarinho campeã do mundo em 70). Porquê o Barcelona conseguiu tanta eficácia com o futebol nos últimos anos? Como eles jogam? Minha hipótese é a de que o time assumiu a postura psicanalítica com relação ao futebol, o que fez o time adotar um estilo de jogo que não havia sido executado até então. Os outros times (pois o futebol hoje é assim: existe o Barcelona e existem os outros times, é praticamente unânime), por não terem ainda conseguido se tornar analistas (bem entendido: "analista" é uma função psíquica, a ser explicitada adiante), não conseguiram encontrar uma maneira de neutralizar os movimentos do Barça. Assim, mesmo perdendo um ou outro jogo, o Barcelona sempre joga melhor do que seu adversário: tem mais posse de bola, mais chances de gol criadas, mais bolas roubadas, etc.

No entanto, o primeiro campeonato mundial que o time conquistou foi apenas recentemente, em 2009, e até então o time era criticado por não tê-lo conseguido. Na final de 2011 contra o Santos, os espanhois queriam aumentar sua quantidade de troféus na competição e fechar o ano conquistando todos os títulos que disputou. Houve uma grande expectativa da imprensa brasileira para o duelo "Neymar x Messi". Como se sabe, Neymar é aquele jogador do santos que alguns tiveram a audácia de comparar a Pelé, e, mais ainda, de falarem que ele seria melhor do que Messi. E a grande questão que animava a expectativa era: conseguiria o Santos de Neymar e Ganso (outro jogador de destaque na equipe, que já foi comparado a zidane) derrotar o melhor time do planeta? A verdade é que ninguém, talvez exceto o próprio time santista, cria ser possível a façanha. De qualquer modo, o mundo - do futebol brasileiro pelo menos - estava em polvorosa. Todos queriam ver o Barça e seu futebol revolucionário na competição de maior alcance internacional - contra um time brasileiro. 

Pois bem, chega o momento. O que se viu nos noventa minutos de partida foi um treino, e com apenas um time em campo. Não há estatísticas que mostrem o domínio absoluto do campo e do jogo por parte do Barça. Neymar e seus companheiros mal conseguiam acompanhar o que estavam assistindo (pois jogar, o Santos não o fez). O time catalão chegou a incríveis 76% de posse de bola no primeiro tempo e 72% no segundo. Demorou 16 minutos para marcar o primeiro gol em uma tabela entre três jogadores: Messi tocou para Fàbregas, que tocou de primeira para Xavi; o passe não foi dos melhores, obrigando Xavi a esticar a perna para dominar de chaleira, de maneira linda; daí lançou para Messi que, contando com uma falha do defensor santista que não cortou o passe, ficou de frente para o goleiro, mas com pouco ângulo para tocar rasteiro (como dizem, o goleiro 'cresceu' na frente dele). Solução de gênio: se não dá por baixo, encubra o goleiro. 1 x 0 barça.

Com a vantagem no placar, 99,9% dos times que disputassem a final do mundial parariam de atacar, pois que o adversário tende a correr atrás do resultado nos primeiros minutos após sofrer o gol, de modo a tentar esfriar os ânimos do oponente. Não o Barcelona. O time manteve a esmagadora posse de bola, pressionando muito o adversário quando não a possuía, para recuperá-la. Sete minutos depois do gol, outro. A meu ver, esse é o gol que melhor representa o que é o futebol do Barça. Após intensa troca de passes para conseguir um espaço, Daniel Alves avança pela direita enquanto três jogadores se apresentam dentro da área para receber a bola e finalizar. Daniel não passa para nenhum deles; tenta passar para um quarto jogador, Messi, que se apresentava na entrada da área e estava desmarcado porque os zagueiros estavam apenas preocupados com os jogadores que estavam dentro da área. No entanto, cercado, Messi recua mas a posse de bola fica com o Barcelona, que continua trocando passes, sem deixar o santos encostar na bola, até que, como num replay do primeiro lance, Daniel Alves recebe livre pela direita, avança, há três jogadores posicionados no meio da área, marcados, e um chegando por trás, na entrada da área, livre. Dessa vez tenta tocar para a posição do centroavante (que no momento estava ocupada por   Xavi), mas o passe foi interceptado, porém a sobra e a posse de bola seguiam com o barça. E ainda mais uma vez, após troca de passes, Daniel Alves recebe novamente na direita, livre, três jogadores na área e um chegando por trás: desta vez o passe saiu correto, e Xavi dominou a bola com a parte de dentro do pé, em seguida arrematando de bate-pronto (quando imediatamente após a bola quicar no chão, em seu movimento ascendente, dá-se o chute, como que num contratempo musical), indefensável: 2 x 0. No total, foi aproximadamente 1 minuto e meio entre a posse de bola e o gol, o Santos tendo apenas tocado duas vezes na bola, sem dominá-la. 

Era visível que o time santista se comportava como uma criança jogando futebol contra o pelé: assombrado, sem saber o que fazer quando tinha a bola, com o olhar completamente desorientado, quase que pedindo pro juiz terminar logo o primeiro tempo. O time do Santos virou o tímido Santos: os narradores criticaram a postura passiva do time como que hipnotizado pelo toque de bola espanhol. Era uma tourada: o santos ziguezagueado, atrás do pano vermelho que a pelota se tornava aos pés dos espanhois. Finalmente o apito encerra a primeira parte da tortura. 

No segundo tempo, esperava-se que o Santos pelo menos tivesse mais calma, mais posse de bola e que levasse algum perigo ao Barcelona. O que se viu foi um outro primeiro tempo, apenas com 4% a menos de posse de bola. O terceiro gol saiu após um lançamento que encontrou Messi na área. O argentino disputou a bola com o zagueiro, mas já estava sem ângulo para chutar a gol. Solução de gênio: tocar de calcanhar para Daniel Alves, que passou pela direita e cruzou para a pequena área. Após desvio do goleiro, Pedro cabeceou a sobra e o goleiro novamente defende; na sobra, Fàbregas tocou esquisito, mas macio no canto, sem goleiro. 3 a 0. O jogo já estava decidido. Mas ainda não havia acabado. O time santista teria que aguentar até o apito final.

O quarto gol também mostra a posição ética do Barcelona. O Santos tinha a posse de bola, porém, sem comodismo por já ter o resultado, o Barça continua a pressionar o adversário até que ele fique sem opção de passe. Com isso, a bola foi recuada para o goleiro, o único jogador que não estava marcado. Sem saber o que fazer com a bola, ele deu um chutão para frente e para o alto. Na dividida de cabeça, o jogador do Barcelona leva a vantagem e a bola vai na direção do campo do santos, quando Daniel Alves toca de cabeça para frente. Messi, que receberia a bola, estava impedido e não foi em direção a ela, o que pararia o lance e daria ao santos a posse. Quem continuou a correr atrás dela foi o próprio Daniel Alves, e conseguiu dominá-la. Ao perceber isso, Messi se deslocou para a área para recebê-la (uma vez que como Messi não foi pra bola o lance segue), deu um drible seco no goleiro e gol. Era isso. Barcelona quatro (gols, pois as chances claras de gol foram muito mais), Santos zero.

Ao final do jogo, todos estavam meio que assustados: foi praticamente um jogo de um time só, que mal deu chances de o adversário sequer tocar na bola. Um massacre. Os nomes que surgiram foram vários: futebol total, futebol extraterrestre, "choque de realidade"; até mesmo disseram que o Barcelona parece time de videogame, de tanto que é fácil a maneira que eles jogam. Barcelona era campeão do mundo: deste e de outros. Como eu disse, a questão era se seria possível ganhar do barça: era, mas não foi. O que chocou a todos os brasileiros foi a enorme superioridade técnica, tática, posicional dos espanhois. Pois esperava-se (ou melhor, sonhava-se) que, pelo menos, o Santos jogasse futebol contra o Barça. Nem isso. O jogo despertou o Santos e aqueles que 'acreditavam'. Só para se ter uma ideia da anormalidade desse time foram 768 passes trocados entre os jogadores, contra 233 dos alvinegros; Xavi e Iniesta deram 110 passes cada, acertando 108 e 107, respectivamente.

Ao saírem do campo, os santistas tentavam achar explicações para o que havia ocorrido: balbuciavam, completamente atônitos. Neymar, ícone do sonho santista foi o primeiro a ser entrevistado. Visivelmente transtornado, declarou, desperto: "hoje, aqui, aprendemos a jogar futebol". Não precisava ter falado mais nada. Era o sentimento de todos os que viram a partida. 

Já o técnico do Santos, Muricy Ramalho, como conhecedor do futebol que é, enfatizou o esquema tático do Barcelona na sua entrevista. "O Barcelona joga praticamente num 3-7-0. No Brasil seria um absurdo, viraria caso de polícia e mandariam prender o técnico. Temos o costume no Brasil de que o número de atacantes indica ofensividade, mas o Barcelona prova que é possível jogar bem e fazer gol sem nenhum atacante. Quem sabe aos poucos a gente não comece a aceitar isso no futebol brasileiro também..." declarou. É aqui que quero apontar a posição analítica do time catalão. Em futebol existem as posições dos jogadores: o goleiro, que defende; o zagueiro que fica lá atrás, apenas à frente do goleiro; os laterais, nos flancos do campo; os meio-campo; e os atacantes, que ficam lá na frente, poucas vezes fazendo qualquer função defensiva. Essa é uma organização simbólica de um time: cada um tem seu lugar na estrutura da equipe e do campo, cada um tem uma função e um lugar definidos: zagueiro não ataca, atacante não defende, ficam limitados a suas regiões do campo. Esse modo simbólico de definir posições acaba cristalizando um jogador, especializando-o demais: zagueiro no Brasil não sabe fazer um bom passe, pois ele só serve pra dar chutão e tirar a bola da sua área; atacante não sabe marcar, fazer passe para outrem, pois só sabe esperar na banheira pra dar um bicudo pro gol e correr pro abraço. Meio campo não sabe chegar bem no ataque e finalizar porque só se preocupa em ser garçon e servir os atacantes. Esse discernimento, essa distinção (que são o fundamento da lógica do simbólico) quanto ao que cada corpo deve fazer em campo (que é necessário para se obter um mínimo de organização das funções em campo) se torna aquilo que engessa o próprio corpo  dos jogadores em suas respectivas funções. É o que se chama de sintoma em psicanálise, essa organização simbólica que se decanta imaginariamente no ser: "sou um lateral-direito", "sou um atacante", etc, e não se sai disso. Daí surgem os cacoetes, as repetições, o que facilita para que o adversário atento anteveja os movimentos dos jogadores. De modo que o paradigma das posições dos jogadores de futebol é fundamentado na lógica do sintoma, ou seja, do isolamento e manutenção da ordem estabelecida. O jogador, então, passa a se comportar como um computador, com um programa instalado que só faz uma única e mesma coisa; ou mesmo como um animal, programado instintualmente. 

Ao passo que a crítica que o Barcelona faz é a de justamente tentar não permitir - claro que na medida do possível - uma estase na função de seus jogadores, para abrir espaço para a surpresa, para o imprevisto, enfim, para a mutação das coordenadas simbólicas dos atletas no campo. No Barcelona, jogadores excepcionais como Xavi e Iniesta são tão importantes porque apesar de terem uma função no campo (por exemplo, ambos são meio-campo), equivocam suas posições, ora atacando como centroavantes, ora na ponta direita, ora defendendo, enfim, distribuídos pelo campo. Vejam, o Barcelona entrou sem "atacantes" em campo contra o santos. Ou, melhor dizendo, entrou sem jogadores atacantes, pois as posições de ataque no campo (pequena área, grande área) são ocupadas por jogadores de qualquer "posição", sejam eles zagueiros, meio-campo, etc. A gente viu um Daniel Alves que não era lateral, mas muito mais um ponta, tanto pela direita como pela esquerda. De modo que um jogador, uma jogada, ficam muito mais imprevisíveis, menos sintomáticos, mais disponíveis para as diferentes situações do jogo. Eles não deixam de ter um  sintoma de base, uma posição fundamental em campo, mas fazem um uso equívoco de seus sintomas, de seu ser no gramado. Eles me lembram o time de basquete do Harlem Globetrotters, que tinham essa mesma característica. Era hipnotizante. "O Barcelona tem tudo para ser o melhor time da história do futebol. É muito complicado enfrentá-los. Quando você rouba a bola, já tem três em cima. Se vocês lembrarem o terceiro gol, eles chutam, eu defendo, ocorre um novo chute, eu defendo de novo e acontece o gol. Eles se multiplicam em campo. O Fàbregas é referência na área e, de repente, está na ponta. O Messi está na direita, na esquerda, no meio. Não conseguimos jogar no primeiro tempo porque não é possível fazer marcação individual no Barcelona", disse o goleiro do Santos. E como futebol é um jogo de tentativa de abertura de espaços para que um jogador tenha boa oportunidade para finalizar, jogar em uma postura sem posições fixas confunde a marcação do adversário, o que deixa os jogadores livres para fazer o lance mais apropriado para aquela posição em que ele se encontra - seja passar a bola para outro que está com espaço em um bom ponto do campo ou finalizar a jogada. Isso tudo aliado a um extensivo trabalho de lapidação do maior fundamento do futebol: chutar a bola de maneira adequada, seja para fazer um passe (na maioria das vezes), seja para finalizar após a construção de uma jogada pela troca de passes, seja inclusive para conduzi-la - é muito importante alguém sacar quando continuar com a bola... Os jogadores do barça têm muita precisão no toque de bola, de modo a ser eficaz quando os espaços se apresentam; todos, do zagueiro ao atacante têm muita precisão nas finalizações, metem goleadas o tempo todo; e falar de condução de bola, só preciso dizer uma coisa: Messi. Quê mais tem pra se fazer em futebol? (PS: nesse ponto, o texto tem um ponto aberto para a crítica)

Então, em oposição às diferenças das posições de jogadores em campo, a ética do Barcelona é saber que sim, existem diferenças de posições (pois não farei um gol do meio de campo, farei um gol entre a intermediária e o gol adversário: é preciso estar relativamente perto do gol para fazê-lo, pelo menos na maioria das vezes) no campo, mas  elas são indiferentes aos elementos (jogadores) que as ocupam, ou seja, são neutras, qualquer um e qualquer coisa pode ocupar o lugar do atacante, do meia, etc., além de poder transitar entre elas. Trata-se de criar esses lugares a partir da abertura de espaços no campo. Se eu sou um volante, mas vejo a oportunidade clara de ser atacante, porquê não agarrá-la? O que interessa é o time e o objetivo do jogo, quer dizer, o Bem maior, né? Essa postura de indiferença com relação às (o)posições - ditas simbólicas - é o lugar do real em psicanálise, lugar que o analista ocupa para conseguir fazer surgir alguma posição nova no psiquismo de alguém, quer dizer, ampliar suas possibilidades sintomáticas no trato com as coisas, os adversários, da vida. Como faz o Barça, indiscernindo as posições dos jogadores (que quando ocupam uma posição a sintomatizam) para criarem outras configurações, outros sintomas no campo, que lhes possibilitem chegar ao objetivo comum da sociedade (o time), que é o objetivo do jogo. Podemos chamar isso, como diz o psicanalista Célio Garcia, de lógica não-predicativa, pois os elementos em campo podem fazer vários usos predicativos de seu lugar nele; não há predicados, mas usos de predicações. Enfim, o que se quer chamar de psicanálise só acontece quando esse lugar é experienciado, tocado. E uma vez que se chega à indiferença, a diferença, o novo, surge. Foi isso que o Barcelona fez em relação aos outros times de futebol: deu um "passe", que em lacanês é o momento que uma pessoa submetida a análise passa a ser analista, ou seja, aprende a usar o recurso de indiferenciação dos sintomas por si só. E isso causou em grande parte do mundo futebolístico o que muitos chamaram de "choque de realidade", ou seja, o horror diante da realidade do futebol brasileiro: não deu nem pro cheiro contra um futebol assim. Aprendemos, sim, de uma maneira dolorosa, na experiência com o real do Barça: dá pra jogar melhor (quer dizer, diferentemente) do que temos feito. Foi uma interpretação analítica, quer dizer, algo que causou uma experiência de "derrelição" no outro, que mostra o equívoco de sua realidade atual, de seu sintoma (seu modo de jogar futebol), ao apresentar a nova possibilidade, que, para o sintoma em questão, se afigurava como impossível (o que o Barcelona faz é impossível... de agora em diante, temos que saber como isso foi possibilitado). Então, meu querido futebol brasileiro, comecemos a nos libertar desses nossos sintomas quando estivermos formando um jogador daqui pra frente: não formemos Pelés, Fenômenos, atacantes, zagueiros, ou o caralho a quatro. Formemos PESSOAS, que por algum acaso joguem futebol como seu lugar no mundo. Formemos humanos que possam fazer recurso à humanidade em qualquer atividade de que eles se ocupem: de futebolista a filósofo. O Barcelona resolveu fazer isso há trinta anos, quando reformulou toda sua estrutura futebolística, para formar craques nas categorias de base, com custo praticamente zero; mas, antes de tudo, para formar cidadãos, formar sujeitos que jogam futebol, e não meramente zagueiros e meias. Além de futebol, o clube Barcelona tem sucesso praticamente similar em outros esportes, como vôlei, basquete e outros. Como dizem os projetos com crianças e adolescente em situação de risco social no Brasil: através do esporte, formar cidadãos. E a cidadania se reflete na evolução do esporte. Lá no Museu do Futebol, em SP, há um quadro com uma frase de Nelson Rodrigues: "o futebol civiliza o pé". Se pelo menos nossos pés se civilizassem, já seria um grande 'passo' (ou 'passe') para certas mudanças sociais que desejamos. Concluo, então, com palmas para essa microsociedade: ela pode estar indicando um (interessante) caminho para os vínculos do novo século, do novo milênio. Vínculos que, por se perceberem cada vez menos iguais a si mesmos, suportem (no duplo sentido de aguentar e dar suporte) em maior grau as diferenças entre si mesmos.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A realidade e o Real no BBB, ou "A Vida Como Ela Sou"

Para aqueles que não sabem, (e com certeza não serão as pessoas a ler estas 'páginas') algo se passou com o BBB nesta semana do 16/01/2012. Após uma festa movida a álcool, dois participantes, um modelo e uma dentista, vão para 'debaixo do edredon' (sintagma popularizado pelo programa, que significa transar). A imagem mostra o rapaz se movimentando sexualmente sob o edredon e a rapariga aparentemente não está se movendo. E o nome dessa imagem nas redes sociais se tornou algo como "moça desmaiada de tanto beber sendo estuprada por homem bêbado", por motivos óbvios. 

No dia seguinte, Monique disse para um participante que "só se ele foi muito mau-caráter pra ter feito sexo comigo dormindo", indicativo de que ela não teve 'consciência' das investidas de Daniel. Até onde acompanhei (o caso, não o programa, rs), não fiquei sabendo de quaisquer declarações do rapaz. de modo que é razoável presumir que um crime ocorreu dentro do programa. O próprio envolvimento da polícia, que entrou na casa, se conecta aos outros fatos. Daniel foi expulso 3 dias depois do ocorrido.

Pois bem, aproveito o ensejo para fazer uma distinção no conceito do programa: reality show. Uma reportagem da R7,empresa de notícias do Edir Macêdo, o Bispo da Record, - com muita satisfação, diga-se de passagem - fala no título da matéria que "o Big brother não existe mais". Fiquei curioso sobre como ela explicaria essa frase. A reportagem explicita, adequadamente a meu ver, que TV globo (não a internet) não disse qual 'regra do programa' (!) havia sido infringida por Daniel, nem no Jornal Nacional, que noticiou o caso, nem no próprio BBB, numa clara censura em dizer o conteúdo sexual da infração. Ora, uma vez que a grande maioria dos telespectadores de BBB não têm acesso à internet (único meio em que a palavra "sexual" foi explícita), esse público não ficou sabendo do que se tratava: ficaram "boiando". Outro ponto citado é que nenhum 'brother' ou 'sister' comentou a expulsão, o que indica que foram instruídos a se calarem sobre isso. Segundo a R7, seria óbvio que a "a manipulação (da direção do programa) é total, afinal não se elimina alguém dessa maneira sem gerar a curiosidade das outras pessoas. Monique, diretamente envolvida no caso, ficou fazendo cara de paisagem o tempo todo". E, mais enfática ainda, conclui:  "o BBB perdeu completamente o sentido de existir do jeito que é hoje. A atração passou a ser assumidamente uma novela, com roteiro e um diretor comandando tudo, ocultando e mostrando o que deseja", porque "perdeu o seu conceito principal que é mostrar a realidade".

É precisamente aqui que quero fazer minha distinção entre realidade e real. Em psicanálise, os conceitos se entrelaçam, mas não se confundem. Freud mostrou que a realidade de alguém não é algo imparcial, neutro, exterior ao sujeito, mas pelo contrário, ela é impregnada de fantasias, conteúdos, morais, etc. Uma realidade não é "a vida como ela é", pois a vida (ou seja, a realidade) é moldada para atender nossas exigências (morais, est'éticas... enfim, pulsionais). Como se chegou a esse conceito? Justamente por que a psicanálise entende que para um ser humano, um fato é o que ele acha que o seja. Não há algo como interpretação da realidade porque uma realidade é um fato de quem interpreta a vida. Só dá pra tratar alguém em análise quando se entende isso: uma interpretação, uma versão de um fato (digamos um trauma) é um outro fato (o nome do trauma) se conectando ao primeiro. A nomeação de um trauma constitui o próprio trauma, numa temporalidade retroativa. Por isso, ambos são fatos, o acontecimento e o nome do acontecimento. São eles que constituem a realidade e a asseguram, pois realidade é algo muito frágil, apesar de sua força massiva; ela precisa de se impor, se insistir, se repetir, senão sua arquitetura rui instantaneamente ao menor equívoco. A psicanálise descobriu que só pode agir caso entenda que só há fatos, não há interpretações. O que alguém 'interpreta' da vida são os próprios fatos simbólicos da sua vida. Aí sim, poderíamos dizer "a vida como ela sou"... 

Já o real nada tem de realidade, pois é o que rompe com ela. Ele é o agente de modificação das realidades. Me explico: quando o fato "estupro" surgiu, a realidade tal como era no programa foi manchada, eternamente modificada, pois agora o BBB não é mais o mesmo: um crime ocorreu na casa, "chegamos ao fundo do poço", etc. Esse colapso de uma realidade anterior a um fato e sua reconstrução subsequente como outro fato é o denotativo do real. Cito (de novo, e ainda) um grande linguista, J.-C. Milner, que estudou muita psicanálise: "num instante fora do tempo, num espaço fora do espaço acontece como que uma escansão nua, cuja atestação reside apenas nos efeitos de dispersão que ela acarreta. Contanto que um sujeito consiga suspender a demanda das significações ligadas [realidades], um sinal é certo, e é o horror [olha o estupro aí]. [...] o horror instantâneo nasce de uma nomeação que ao mesmo tempo o suspende. [...] Nada aconteceu, senão que, nesse nada que separa um antes de um depois, ao sujeito aconteceu um real". Como nomear o que aconteceu na casa? "Violação de regras do programa?" "Estupro"? "Tentativa de estupro"?Virtualmente, o real se presta a qualquer nome, a qualquer realidade, mas seu nome será uma limitação a todos os outros que seriam possíveis; quer dizer, sempre uma realidade a cada vez, a cada nome.

O real é pura denotação, ou seja, o inexplicável, o susto, o próprio rompimento do estabelecido, enquanto a realidade é o conotativo, sempre fantasiado, sempre metafórico e sempre reconstruído: é a lenga-lenga nossa de cada dia. Digamos que realidade é um termo a ser usado no plural, já que cada um tem a sua, enquanto só há um real, pois que ele é o próprio Um (ou melhor, o próprio nome do Um)... "O que não tem nome, nem nunca terá". Todo mundo entende o que ninguém sabe...

Podemos ver, por exemplo, que, como bem colocou a Record, a 'manipulação' do acontecimento, ao dar o nome de 'violação da regra do programa', tenta constituir um outro fato, que não seja "estupro", ou "abuso sexual", fatos que trariam mais problemas para a emissora caso fossem pronunciados. E os participantes foram instruídos a não dar novos fatos, ou seja, se calarem para que o assunto seja encerrado. Claro que a Globo defendeu seus interesses nisso, e ocultou os outros (e não 'os verdadeiros') fatos. Imagina se os patrocinadores não ficariam putos de ver seu nome atrelado a "estupro"! A Globo perderia muita grana. Aliás, vai perder, mesmo assim. E o resultado foi que, para muitos brasileiros, os fatos (sem aspas!) foram: "o cara violou uma regra", e não questionaram sobre outros fatos possíveis: compartilharam a realidade da Globo, ao menos naquele primeiro momento de informação. É o famoso "pano quente". 

Daí que, ao contrário do que a R7 conclui, mas pelos mesmos motivos, digo que reality show é um nome bem adequado a um programa que quer esconder o real e o usurpa sob o termo realidade... como se mostrasse "a vida como ela é"... como se a vida fosse a mesma para as pessoas. O BBB sempre 'manipulou' o programa, desde a 'democrática eleição' dos 'herois' até as regras de comportamento do programa (a que os participantes se submetem para ganhar o $$), afinal, o programa é deles. E isso não é só na Globo, não. Tá nos jornais mais conceituados, tá em tudo e em todos: cada um criando sua realidade e querendo que outros a compartilhem. Nomeio disso tudo, os turbilhões do mal-entendido se matam e se criam... Sem saber o que fazem...