terça-feira, 3 de junho de 2014

A temporalidade quântica do inconsciente

Pobre velha música! 
Não sei por que agrado, 
Enche-se de lágrimas 
Meu olhar parado. 

Recordo outro ouvir-te, 
Não sei se te ouvi 
Nessa minha infância 
Que me lembra em ti. 

Com que ânsia tão raiva 
Quero aquele outrora! 
E eu era feliz? Não sei: 
Fui-o outrora agora

(Fernando Pessoa, "Pobre Velha Música" - grifo meu)


O campo aberto por Freud implica uma subversão das noções clássicas da Lógica. O mecanismo significante que ele descobre no funcionamento mental derroga categorias lógicas que até então pensávamos sólidas e definitivas. Uma dessas categorias é justamente a temporalidade entre passado/presente.

Em seu Projeto Para uma Psicologia Científica, Freud nos relata o caso de uma jovem, chamada Emma, que tinha ‘compulsão de não poder entrar em lojas sozinha’. Ao ser questionada sobre os possíveis motivos para tal sintoma, Emma apresentou uma lembrança da época de sua puberdade (12 anos), na qual entrou em uma loja para fazer compras. Ao reparar em dois vendedores que riam, foi tomada por um ‘afeto de susto’ e saiu correndo do local. Essa justificativa se apresenta incompreensível para Freud, que resolve investigar mais a fundo como esse sintoma se determinava.

No curso da investigação, Emma apresenta uma segunda lembrança, a qual, segundo ela própria, não havia passado em sua mente durante a cena da puberdade: aos 8 anos, ela estivera em uma confeitaria para comprar doces. O proprietário tocou-lhe os genitais por cima da roupa e sorriu. Emma saiu correndo. Apesar disso, ela retornou a esse lugar uma segunda vez, e ao relatá-lo, recriminou-se por tal. Após essa segunda vez, não voltou mais à confeitaria.

Freud, então, elucida o sintoma (não entrar em lojas sozinha) ao combinar as duas cenas (aos 12 e aos 8 anos). O riso dos vendedores associou-se ao riso do proprietário da confeitaria; além disso, em ambas as situações, ela estava sozinha. “A lembrança despertou o que ela certamente não era capaz na ocasião [da primeira cena], uma liberação sexual, que se transformou em angústia. Devido a essa angústia, ela temeu que os vendedores da loja pudessem repetir o atentado e saiu correndo” (FREUD, 2006, p. 408). Assim, através do riso, como vínculo associativo entre dois diferentes momentos, a segunda cena reativou a primeira, constituindo-a como o trauma que determina o seu sintoma. “Temos aqui um caso em que uma lembrança desperta um afeto que não pôde suscitar quando ocorreu como experiência, porque, nesse entretempo, as mudanças [trazidas] pela puberdade tornaram possível uma compreensão diferente do que era lembrado” (FREUD, 2006, p. 410 - grifo meu). O acontecimento, que era lembrado de uma determinada maneira, sofreu influência de outro acontecimento, posterior, passando a ser compreendido então de uma maneira diferente; a própria lembrança muda de significado, o que implica que o próprio acontecimento passa a ser outro em nível psíquico - o passado muda e sua verdade se altera.

Esse modo pelo qual a segunda cena determina, pela contingência do elemento riso, a primeira cena enquanto traumática “mostra uma estrutura temporal de ordem mais elevada” (LACAN, 1998a, p. 853) e logicamente não-clássica, em que um evento posterior determina (ou re-determina) um elemento anterior como sua própria causação. Lacan destaca no texto de Freud essa temporalidade do inconsciente e a conceitua como ‘a posteriori’, ou seja, como a retroatividade do efeito significante.

Freud exige uma objetivação total da prova quando se trata de datar a cena primária, mas supõe, sem mais aquela, todas as ressubjetivações do acontecimento que lhe pareçam necessárias para explicar seus efeitos a cada volta em que o sujeito se reestrutura, isto é, tantas reestruturações do acontecimento quantas se operem, como se exprime ele, nachträglich, a posteriori. Mais ainda, com uma audácia que beira a desenvoltura, ele declara considerar legítimo elidir, na análise dos processos, os intervalos de tempo em que o acontecimento permanece latente no sujeito. Ou seja, ele anula os tempos para compreender e em prol dos momentos de concluir, que precipitam a meditação do sujeito rumo ao sentido a ser decidido do acontecimento original (LACAN, 1998, p. 257-8 - negrito meu).

O período em que o acontecimento original permanece latente no sujeito (entre as duas cenas) significa que seu sentido, sua posição psíquica como trauma ou não, permanece indeterminada até que alguma contingência a posteriori decida se e o que realmente aconteceu. De modo que o passado se atualiza enquanto trauma na contingência em que um outro acontecimento no presente o determina. É como se o evento passado ficasse no limbo, suspenso em possibilidades (de ser trauma ou não), até que o presente constitua a significação do que se passou, determinando ou não o traumatismo de um evento. Assim, é num momento posterior que o que houve anteriormente se constitui como tendo ocorrido de determinado modo. Mas até que essa contingência no presente atualize o passado, não há uma localização espacial, topológica, para ele.

Lacan diz que “o que se produz no nível do significado tem sempre uma função retroativa” (LACAN, 1998a, p. 490), de modo que o presente constrói o passado enquanto significado, enquanto tendo um determinado lugar na estrutura psíquica - é de uma retrodeterminação que se trata. Se o riso dos vendedores não tivesse ressoado retroativamente em Emma, ela não teria usado a cena primária para constituir seu sintoma. Assim, essa cena primária não teria se constituído como um trauma para ela, ou seja, não teria ocupado o lugar que passou a ocupar em seu psiquismo; seu lugar teria sido outro. Antônio Teixeira nos mostra exatamente isso ao dizer que é “inútil buscar um meio de prever porque o riso dos vendedores assustava tanto a senhorita Emma” (TEIXEIRA), pois não era necessário que, por ter ocorrido a primeira cena, Emma ficasse assustada com o riso dos vendedores - poderia ter sido qualquer outro elemento em comum com a outra cena: o fato de ser uma loja, o fato de ela estar sozinha, etc. No entanto, foi esse significante (“riso”) que ressoou em sua mente, de maneira contingente, e determinou que a primeira cena desencadeasse o 'afeto de susto' e o sintoma. “A necessidade, portanto, dessa significação traumática nasce da contingência do encontro com a cena do riso que, por si só, não estava destinada a produzir esse sentido. Mas é somente por meio do dado material desse elemento contingente que a significação traumática se efetua” (TEIXEIRA, a). Slavoj Zizek tem uma maneira incrível de expressar a contingência da necessidade ao assinalar que "o processo pelo qual a necessidade surge da necessidade é um processo contingente" (ZIZEK, 2013, p. 320)

Essa lógica temporal implica que o significante, enquanto tal, não tem sentido algum até articular-se a outro significante; e na latência que precede essa articulação, não há discernibilidade simbólica para o primeiro evento, de modo que ele resta como indeterminado até que o segundo tempo venha dar-lhe posição no passado a partir do que ocorreu no presente. Um acontecimento psíquico retroage sobre um anterior para redeterminar o passado que o determina, assim como foi a segunda cena, que retrodetermina a cena primária. A primeira cena não tinha sentido (Emma não entendia a conotação sexual da cena) até se articular à segunda, e a partir dessa contingencial articulação é que ela adquire significação traumática (Emma entende que a primeira cena foi sexual).

Por exemplo, quando começo uma frase, vocês só compreenderão seu sentido quando eu a houver concluído. É absolutamente necessário – essa é a definição de frase – que eu tenha dito a última palavra para que vocês compreendam a situação da primeira. Isso nos dá o exemplo mais tangível do que podemos chamar de ação nachträglich do significante. É precisamente o que eu não paro de lhes mostrar no texto da própria experiência psicanalítica, numa escala infinitamente maior, quando se trata da história do passado. (LACAN, 1998a, p. 17).

Mas que tipo de lógica temporal é essa? Tudo o que conhecemos, por exemplo, fisicamente, implica que o tempo flui continuamente do passado para o presente e para o futuro, não havendo retroação, ou seja, uma modificação dos acontecimentos passados devido a eventos presentes. Mas seria esse um mecanismo temporal puramente psíquico ou haveria algum outro mecanismo que segue essa mesma lógica?

*             *             *

Da mesma maneira que as descobertas psicanalíticas subverteram noções clássicas da lógica, a mecânica quântica também o fez. As reações ocasionadas pelas descobertas que se desenvolveram nesse campo foram as mais estupefatas: Niels Bohr, um dos nomes mais importantes da física moderna, foi taxativo: “aqueles que não se chocaram ao entrar em contato com a teoria quântica não podem tê-la compreendido” (isso deveria também valer para a psicanálise, a propósito). Richard Feynman, prêmio Nobel, disse: “é seguro dizer que ninguém entende a mecânica quântica”. Roger Penrose: “A mecânica quântica não faz o menor sentido”. Não é preciso dizer mais para demonstrar que os físicos se depararam com aquilo que Freud chamou de Unheimlich, o estranho. O quê é isso?

Para compreender porque os físicos ficaram tão chocados com a lógica do que descobriram, comecemos por mostrar o paradoxo básico com o qual eles tiveram que lidar. O nome desse paradoxo é conhecido no meio como ‘dualidade onda-partícula’.

O que é uma partícula? Podemos pensar em uma bola bem pequena, indivisível em princípio, que se locomove pelo espaço seguindo uma trajetória bem definida de um ponto a outro do espaço.

O que é uma onda? Em física clássica (ou seja, toda a física existente antes do advento da mecânica quântica) ela é definida como uma perturbação que se propaga em um meio, tal como a água (‘como uma onda no mar’), e que se espalha pelo espaço (PESSOA JR., p. 2). Essa perturbação que se propaga é a energia, que é o próprio movimento das partículas do meio (no nosso exemplo, a água). De modo que uma onda, por ser espalhada, não tem uma trajetória definível (pois segue várias), nem posição determinada (ela está espalhada pelo espaço, ao contrário da partícula que se situa bem distintivamente).

Pois bem, o que a física quântica revela é que os objetos que ela descreve possuem as duas características! Ora, isso é uma contradição lógica, pois afirma-se que a mesma coisa (um objeto quântico) segue uma trajetória (no caso da partícula) e não segue (no caso da onda, porque a trajetória é espalhada, logo não é trajetória). Essa foi a primeira surpresa, demonstrada por um experimento que descreveremos dentro em pouco.

Antes, é preciso detalhar mais as características de uma onda. Como se sabe, uma onda é feita de oscilações, de perturbações. As oscilações são movimentos de ascendência e descendência, quer dizer, algo que sobe e desce ao longo de uma direção. A amplitude é a distância entre um pico e a linha mediana da onda (ver ilustração). Ora, se duas ondas ocupam o mesmo lugar no espaço e seus picos e vales estão alinhados, dizemos que as ondas estão em fase e a onda resultante dessa soma terá o dobro da amplitude (é só somar as duas amplitudes). Já se as ondas estiverem fora de fase, ou seja, se o pico de uma coincidir com o vale da outra, as ondas se destroem, anulando-se. De modo que essa interferência é uma propriedade típica das ondas, não das partículas. Sabemos que a luz tem características ondulatórias, pois já foram verificados padrões de interferência nelas (tanto construtivos, quando as ondas estão em fase, quanto destrutivos).



Isso nos ajudará a explicar outro fenômeno, que é o de divisão de ondas. Se jogarmos um feixe de laser (luz) em um espelho semi-refletor (que reflete metade da luz e deixa a outra metade passar) a onda se divide, e seus dois componentes ficam fora de fase. É possível recombinar os feixes que se originaram da divisão com um aparelho denominado interferômetro de Mach-Zehnder. São experimentos com esse aparelho que deram origem às questões profundas que a física quântica trouxe para o mundo.

No entanto, a luz também manifesta características corpusculares, de partículas; se reduzirmos sua intensidade suficientemente, veremos que a detecção da luz se dá pontualmente, ou seja, a luz incide no aparelho detector como pontos, partículas, denominadas fótons. Inclusive é por isso que Einstein ganhou o Nobel, e não por suas teorias da relatividade. Assim, mais uma vez o paradoxo quântico se manifesta na contradição lógica da dualidade onda-partícula exibida pela luz.

Sem mais delongas, então, analisemos o interferômetro para compreender melhor a origem desses paradoxos.

O interferômetro é um aparelho composto de um espelho semi-refletor (S1), que divide o feixe de luz (aqui considerado em seu aspecto ondulatório) em duas partes de igual amplitude. Sabemos que numa divisão assim, as ondas resultantes saem de fase; a onda refletida sofre um deslocamento de ¼ em sua amplitude. Em seguida, cada um dos feixes é refletido por um espelho (totalmente refletor), E1, E2, de modo a se cruzarem novamente em um espelho semi-refletor (S2), após o qual são colocados dois aparelhos de detecção (D1, D2), um para cada feixe (figura - desconsidere o aparato 'H').



Como cada componente do feixe de luz original incide em S2, era de se esperar que sua medição pelo detector mostrasse 50% de cada componente (pois que o espelho S2 divide o feixe). Mas não é o que acontece. O que se observa é a medição de feixe em apenas um dos detectores (D1), e o valor dessa medição é o mesmo valor do feixe original, antes de ter passado por S1!

Isso se explica pelo seguinte: o feixe que seguiu a trajetória A, ao incidir em S2, se dividiu em dois componentes, um dos quais foi refletido para D1, e o outro seguiu seu caminho rumo a D2. O feixe que seguiu o caminho B também é refletido em S2 rumo a D2 e seu outro componente segue seu caminho em direção a D1. Como a cada reflexão há uma alteração nas fases das ondas, o que ocorre é que ao incidir em S2 os componentes dos feixes A e B que vão em direção a D2 se interferem destrutivamente, se cancelando, por estarem fora de fase; e os componentes que seguem para D1 se somam, por estarem em fase. De modo que é perfeitamente lógico que um dos detectores meça a superposição construtiva e o outro não, pois os feixes se anularam de S2 a D2 devido ao padrão destrutivo de interferência das ondas, resultado do deslocamento de fases nas ondas devido a cada reflexão do feixe em cada espelho (PESSOA JR., 2003, p. 9).

Esse é um experimento arranjado para ondas, com comportamento clássico, ainda não é nada quântico. Para tornar o experimento quântico é preciso reduzir a intensidade do feixe de luz até que apenas um fóton incida em S1 por vez. Assim, o que ocorre é que uma partícula (um fóton) incide em S1 e lá pode ser ou refletida ou seguir seu rumo, de modo a incidir ou em D1 ou em D2, com 50% de probabilidade para cada incidência. No entanto, o experimento mais uma vez mostra que apenas o detector D1 mede a presença da partícula, com o mesmo comportamento de um experimento ondulatório! Ou seja, é como se a partícula tivesse chegado a S1, sido refletida e não, viajado pelos dois caminhos, e ‘interferido’ consigo mesmo em S2, de modo a criar um padrão de interferência destrutivo entre S2 e D2 e um construtivo entre S2 e D1! Como é que uma única partícula, que tem posição e trajetória definidas, pode ‘se espalhar’, como uma onda, e interferir consigo mesmo? Como é possível a uma partícula exibir propriedades de onda?

A grande questão é a seguinte: por qual caminho o fóton (que é uma partícula e é suposto seguir uma trajetória bem definida) rumou após passar por S1, antes de incidir em S2? A ou B? Os problemas começam a surgir.

Suponha que o fóton se encontre em A. Isso pode ser realizado experimentalmente com o próprio interferômetro ao se retirar o S1, de modo que o feixe incide em E1 e é refletido rumo a S2. Lá o feixe se divide e há uma probabilidade de 50% de incidência em D1 e 50% em D2, ou seja, não ocorreu o padrão de interferência. Isso é um comportamento clássico, não-quântico: ou ele incidirá em D1, ou em D2. O mesmo ocorre se arranjarmos o experimento de modo que o fóton percorra apenas o caminho B. 

No entanto, quanto ao interferômetro completo (com o espelho em S1), veja só que situação: “se o fóton estivesse ou em A, ou em B, continuaríamos a ter uma probabilidade de 50% de detectar o fóton em D2. Isso segue da própria definição do conectivo lógico ‘ou’: se em A é 50%, e em B é 50%, então ‘A ou B’ tem que ser 50%. No entanto, vimos que no experimento [interferômetro completo], para um único fóton, a probabilidade de o fóton atingir D2 não é 50%, é 0%! Logo, é falsa a afirmação de que o fóton está OU em A OU em B!” (PESSOA JR., 2003, p. 12, grifo meu). Essa situação é explicitamente paradoxal: o mesmo objeto passou por dois lugares diferentes ao mesmo tempo? Por onde ele foi? O que aconteceu com o fóton no intervalo entre as medições? Ele era partícula? Ou era onda? Essa é a essência da dualidade onda-partícula; assim, a teoria quântica estuda as propriedades ondulatórias que ela atribui às partículas.

Para falarmos mais rigorosamente sobre a dualidade, enunciemos o seguinte: um fenômeno quântico é um conjunto composto pelo objeto quântico e pelo aparelho de medição, que, dependendo de seu arranjo, determina se o objeto terá aspecto corpuscular ou ondulatório. Por isso, o aparelho de medição deve ser incluído no conceito de fenômeno quântico: nos dois tipos de experimentos com o interferômetro, um teve aspecto corpuscular e outro teve aspecto quântico. Daí que um fenômeno é corpuscular se, após uma medição, segundo certo arranjo do aparelho, para ele puder ser discernida uma trajetória, quer dizer, se for possível (mesmo que em apenas em princípio, sem de fato ocorrer uma medição) saber se ele passou por um ou por outro dos caminhos possíveis. E será um fenômeno ondulatório se uma trajetória não for possível de ser distinguida, devido a uma superposição de suas possibilidades, assim como ocorre com o fenômeno de interferência de ondas; a oposição entre os caminhos, representada pelo conectivo lógico ‘ou’, não se aplica nesse caso. Não se trata aqui de ter passado por um ou outro caminho. Mas como poderia ter o mesmo objeto passado por um e por outro caminho?

Apesar de todas essas perguntas, há um formalismo mínimo, uma equação, produzida por Erwin Schrödinger, que permite lidar com todas essas probabilidades, com todas essas incertezas, de maneira que funciona o suficiente para construir computadores, televisões, etc. E muitos físicos dizem que é só isso que importa, tanto faz se passou ou não passou por um ou outro lado: nós temos as equações e pronto! O problema é que eles se esquecem que foi a partir de respostas a perguntas de cunho interpretativo, como essas, que muitos passos foram dados até que se chegasse a tais equações preciosas, além da proposição de experimentos que confirmam ou refutam partes principais da teoria. De modo que investigar o campo não é supérfluo, e todos os grandes nomes da Física se detiveram nessas questões, procurando respostas, tentando simbolizar esse real que escapa à nossa compreensão. E nada garante que, ao ignorar a interpretabilidade da teoria, os físicos pragmáticos não estejam, justamente, interpretando-a.

Assim, temos vários ramos de interpretação das questões suscitadas pelas descobertas quânticas. Vários mesmo: pelo menos 50 interpretações estão correndo por aí. Cada uma delas tem alcance amplo, porque interpretam vários tipos de experimentos: a dualidade, o problema da medição, o princípio de incerteza, etc. Mas cada uma tem consistência consigo mesma. Para nosso propósito aqui, abordaremos apenas uma interpretação específica acerca de um problema que descreveremos agora: o chamado ‘experimento de escolha demorada’.

Imagine uma partícula que passe pelo interferômetro, sem o semi-espelho S2. Imagine o momento em que a partícula acaba de passar por S1. Então, nesse momento em que a partícula está entre o semi-espelho S1 e a posição do semi-espelho ausente S2, escolhe-se colocar ou não o semi-espelho em S2, e assim medir o aspecto ondulatório ou o corpuscular, respectivamente - pois se eu coloco o espelho em S2 o fenômeno observado será ondulatório; se eu não colocar, será corpouscular. Mas a pergunta que se formula é a seguinte: no intervalo de tempo em que a partícula estava entre os pontos S1 e S2, antes de atingir S2, havia uma onda ou uma partícula?

A interpretação de Niels Bohr, chamada de complementaridade (que fundamenta a interpretação que a maioria dos físicos aceita), propõe que só se pode afirmar a natureza do objeto quântico (onda ou partícula, mas nunca ambas) após alguma medição ser efetuada. Portanto, nesse período em que a partícula ainda não atingiu os detectores D1 e D2, nada pode ser dito, pois é apenas com a detecção da onda ou partícula, ou seja, com a compleição do fenômeno quântico, que há a confirmação do aspecto ondulatório ou particular do objeto quântico dentro do interferômetro. Mas quando o objeto é detectado, isso não altera seu estado no momento anterior, entre os semi-espelhos. De acordo com Bohr, o que muda no momento de detecção com relação ao momento entre S1 e S2 é apenas o nosso conhecimento sobre o objeto, e não o próprio objeto, o que faz essa interpretação ser classificada como epistêmica. O que ocorre num momento posterior não determina o que houve antes, que é inacessível de um ponto de vista epistêmico, de modo que, paraa essa interpretação, não faz sentido perguntar qual o estado do objeto quântico antes de efetuada a medição - não há como saber o que se passa no interferômetro (entre S1 e S2...), só sabemos o que podemos medir e detectar.

No entanto, muitos anos depois, um americano chamado John Wheeler andou repensando a lógica do experimento. Apesar de partir da própria ideia de Bohr, de que não se sabe o que ocorre no momento entre semi-espelhos, ele deu um salto para além dela. Wheeler propôs que, no instante em que se escolhe colocar o espelho em S2, a escolha determina retroativamente o estado do objeto quântico entre S1 e S2. Assim, se eu meço um fenômeno ondulatório agora, no presente, por ter escolhido colocar o espelho em S2 agora, a escolha retroage sobre o momento passado, mudando o próprio estado do objeto no passado, que passa a ter sido ondulatório então. Isso é o que ele chamou de “atualização” do passado no presente: “É errado pensar naquele passado como já existindo em todos os detalhes. O passado é teoria. O passado não tem existência enquanto ele não é registrado no presente” (WHEELER, 1978). Assim, não é apenas o nosso conhecimento sobre o passado que muda quando uma medição ocorre, tal como coloca Bohr; é o próprio passado. O passado é determinado como tal apenas no presente, no momento de colocar ou não o espelho em S2. Eis aí uma temporalidade que subverte a conceituação lógica clássica sobre o tempo: há um emaranhamento retroativo (e não apenas um vetor progressivo) entre o passado e o presente - o jargão é chamado de 'retrodição' Vale destacar que essa interpretação é consistente com o formalismo equacional da física quântica, de modo que é algo que muitos físicos levam realmente a sério.

*             *             *

Como já dissemos, esta não é a única interpretação para o experimento; porém, dentre as interpretações mais aceitas atualmente, é a única que se utiliza de uma lógica temporal reversa, compatível com a temporalidade desenvolvida pelas descobertas psicanalíticas. Pois tanto para objetos quânticos como para objetos psíquicos (significantes) há uma lógica em que objetos podem, num momento posterior, determinar suas próprias propriedades num momento anterior cronologicamente, tal como mostra a interpretação de Wheeler do experimento quântico. Assim, da mesma maneira que, para Lacan, é apenas na última palavra da frase que se entende a primeira, para Wheeler é apenas na medição do objeto, no presente, enquanto “última palavra”, que o seu estado passado ganha determinado significado, propriedade, posição física, enquanto “primeira palavra” da frase que é o fenômeno quântico. E isso precisamente ao modo do esquema gráfico que Lacan faz para mostrar o nachträglich:



A flecha que aponta progressivamente para a direita mostra a sequência cronológica dos eventos, ou seja, a cadeia significante, a frase: da esquerda para a direita, do passado para o futuro, da primeira palavra à última, de S1 a S2. No entanto, note que a seta que parte do ponto x tem orientação topológica contrária à primeira: ela é levogira, de modo que interage primeiro com o momento cronológico posterior (última palavra) para depois então chegar ao momento anterior (primeira palavra): é o depois determinando o antes, na estrutura de um “tempo reversivo” (LACAN, 1998, p. 853) no qual o passado "terá sido" (Ibid., p. 823), ao modo de um “futuro anterior” (Ibid.). Assim, se se pergunta qual era o fenômeno entre S1 e S2, pode-se responder que ele terá sido ondulatório se colocar-se o espelho em S2, e terá sido corpuscular se não se coloca o espelho lá.

Não nos importa aqui se a interpretação de Wheeler é a correta ou não para a Física, mas sim destacar como a lógica utilizada para compreender fenômenos psíquicos fundamentais, e que Freud propôs muito antes de Wheeler, antecipando assim essa própria lógica quântica, é também utilizada como uma proposta para compreender fenômenos físicos fundamentais. Com isso, podemos então dizer que há uma temporalidade quântica (no sentido da interpretação de Wheeler) no inconsciente, tanto quanto podemos dizer que há uma temporalidade psíquica (no sentido do nachträglich freudiano) nessa interpretação em particular da mecânica quântica, com a lógica de ambas as temporalidades sendo da mesma estrutura, ‘mais elevada’, como diz Lacan.


Para finalizar, indicamos uma decorrência clínica dessa articulação da psicanálise com a física quântica: ela fornece maiores subsídios lógicos para ratificar o que a psicanálise já havia trazido sobre a constituição da realidade psíquica. Pois se há um período de latência entre certo fato, certo acontecimento, e sua interpretação (a qual Lacan chamou de ‘ressubjetivação’), que decida sobre o que ‘de fato’ ocorreu no passado, a temporalidade quântica do inconsciente implica que uma 'interpretação' de um ‘fato’ constitui o próprio fato como tal: o fato é sua própria interpretação. De modo que, a rigor, não há ‘interpretações’ sobre fatos, como uma metalinguagem que quer decidir acerca do ‘fato real’, tal como ocorrido 'no passado'; há apenas fatos sobre outros fatos, fatos que constituem outros fatos, retroativamente, segundo a lógica quântica que opera no inconsciente. E são com esses fatos, sujeitos às futuras contingências que o presente reserva para o passado, que o psicanalista lida em sua clínica. Portanto, não se trata de procurar descobrir o ‘fato real’ sobre o que se diz, sobre o que se ‘interpreta’; não se trata de fazer qualquer hermenêutica das interpretações para se chegar a supostos fatos 'reais', mas de escutar os fatos no próprio dizer, ou seja, nas próprias ‘interpretações’. "Só há fato pelo fato de o falasser o dizer. Não há outros fatos senão aqueles que o falasser conhece como tais dizendo-os. Só há fato pelo artífício" (LACAN, 2007, p. 63), ou seja, só há fato significante, artifício humano por excelência. Não se trata se Emma foi ou não à confeitaria pela primeira vez, pouco importa se ‘de fato’ houve a cena primária do proprietário tocando-a, ou se ele estava realmente rindo nessa hora (as lembranças poderiam muito bem serem encobridoras, inclusive); o que interessa é o que se diz, a conotação denotativa que esse dizer tem na trama de determinações significantes do sujeito, e é a partir dela que o analista se orienta: são os arte-fatos, os fatos de artifício, que devem guiar sua escuta.



REFERÊNCIAS:

FREUD, Sigmund. Projeto para uma Psicologia Científica. In: Obras completas, vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
LACAN, Jacques. Função e Campo da Fala e Linguagem em Psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, Jacques. Posição do Inconsciente. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_____________. O seminário, livro 5. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998a.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23 - o Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
MAGNO, MD. AmaZonas: A Psicanálise de A a Z. Disponível em: http://www.tranz.org.br/1_edicao/pdf/md_magno_amazonas.pdf. Acesso em 14/07/12.
PESSOA JR, Osvaldo. O Sujeito na Física Quântica. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/Sujeito.pdf. Acesso em 11/07/12.
_____________________. Conceitos de Física Quântica, vol. I. São Paulo: Ed. Livraria da Física, 2006.
TEIXEIRA, Antonio M. R. La Prudence du Psychanalyste. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=ifz11zU6dAQ&feature=relmfu. Acesso em 11/07/12.
________________________, aO Sonho da Dessuposição de Fliess. Disponível em: http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/almanaque/06/textos/antonio.pdfAcesso em 11/07/12.
Wheeler, J.A., The ‘Past’ and the ‘Delayed-Choice’ Double-Slit Experiment, em MARLOW, A.R. (org.), Mathematical Foundations of Quantum Theory. Nova Iorque: Academic, 1978.
ZIZEK, Slavoj. Menos que nada. Rio de Janeiro: Boitempo, 2013.

Nenhum comentário:

Postar um comentário